A Lei Maria da Penha representou um importante marco jurídico na defesa dos direitos das mulheres brasileiras, por tratar de forma integral o problema da violência doméstica. A norma criou instrumentos de proteção e acolhimento emergencial à mulher em situação de violência, isolando-a do agressor, e ofereceu mecanismos para garantir a assistência social e psicológica à vítima e preservar seus direitos patrimoniais e familiares. Além disso, sugeriu aperfeiçoamento e efetividade do atendimento jurisdicional e previu instâncias para o cuidado do agressor.
É importante relembrar que Maria da Penha Fernandez é uma mulher que se transformou em símbolo da luta das mulheres contra a violência após ter buscado justiça durante 19 anos e 6 meses em relação à violência que sofreu dentro do seu matrimônio. Nesse tempo, ela foi vítima de tentativas de feminicídio, praticadas pelo seu esposo Marco Antônio Heredia Viveiros, gerando consequências irreparáveis.
Infelizmente, Maria da Penha ficou paraplégica devido ao tiro que levou enquanto dormia, e após passar por várias cirurgias retornou para casa, onde seu agressor a esperava para uma nova tentativa de assassinato, posterior à cárcere privado e tortura. Ela procurou justiça durante esse tempo, entretanto, foi desacreditada pela polícia e negligenciada pelas leis que, até aquele momento, não consideravam a especificidade da violência praticada em relação às mulheres na sociedade brasileira.
Leia também: 15 anos de Lei Maria da Penha: quais os avanços e mudanças?
Segundo dados do IPEC (Inteligência em Pesquisa e Consultoria), em pesquisa publicada em fevereiro de 2021, pode-se contabilizar que a cada 1 minuto, 25 mulheres brasileiras sofrem violência. Esse dado significa que 15% das brasileiras acima de 16 anos tiveram experiências de violência física, psicológica ou sexual praticadas por homens de dentro ou próximos à família, o que equivale a 13,4 milhões de brasileiras.
A pesquisa pode ser considerada um retrato das desigualdades de gênero no país: os homens representem a grande maioria das vítimas de violência nos espaços públicos (95% das vítimas de homicídio são homens) e as mulheres as principais vítimas da violência doméstica.
Em estudo de avaliação da efetividade da Lei Maria da Penha, realizado por pesquisadores do IPEA, os resultados mostraram que a introdução da lei gerou efeitos estatisticamente significativos para fazer diminuir os homicídios de mulheres associados à questão de gênero.
Segundo os pesquisadores, a implementação da lei afetou o comportamento de agressores e vítimas por três canais: aumento do custo da pena para o agressor; aumento do empoderamento e das condições de segurança para que a mulher pudesse denunciar; e aperfeiçoamento dos mecanismos jurisdicionais, possibilitando ao sistema de justiça criminal que atendesse de forma mais efetiva os casos envolvendo violência doméstica. A conjunção dos dois últimos elementos seguiu no sentido de aumentar a probabilidade de condenação do agressor.
Esse tema ganhou ainda mais relevância no contexto da pandemia de Covid-19, trazendo novos desafios para o enfrentamento do problema. O relatório "Visível e Invisível, a vitimização de mulheres no Brasil", publicado em 2021 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, indicou um incremento do número de casos de violência doméstica em todo o mundo neste período, sendo as mulheres as principais vítimas.
Segundo o relatório, uma em cada quatro mulheres brasileiras acima de 16 anos afirmam ter sofrido alguma violência ou agressão nos últimos 12 meses. Tal aumento nas taxas de violência deve-se, ao mesmo tempo, ao maior convívio com o agressor relacionado às medidas de confinamento (72% dos agressores são conhecidos dessas mulheres); ao aumento do nível de estresse nas famílias oriundo das dificuldades econômicas e psicológicas decorrentes da pandemia e das políticas de combate a ela; e uma maior dificuldade no acesso à rede de proteção às mulheres devido à restrição de atendimento destes serviços durante a pandemia.
A violência doméstica é uma ameaça para a vida destas mulheres, para as famílias e a sociedade como um todo e representa um grande entrave na garantia do direito de mulheres em viverem com saúde e em condições de dignidade. Estudos internacionais revelam, de forma consistente, a associação entre a exposição à violência doméstica e a experiência de sofrimentos mentais e comportamentais nas mulheres e em seus filhos, tais como transtornos depressivos, ansiosos, abuso de substâncias, agressividade, problemas escolares, entre outros.
Faz-se importante ressaltar a natureza das condutas que são consideradas como violência praticada contra a mulher. Segundo o Instituto Maria da Penha, a violência física é a mais conhecida, se caracteriza por qualquer comportamento que prejudique a saúde corporal da mulher, como episódios de agressão ou espancamento que envolva atirar objetos, sacudir, apertar o braço, bem como práticas de estrangulamento, sufocamento, lesões com objetos cortantes, ferimentos causados por queimadura, armas ou ainda qualquer tipo de tortura.
Por sua vez, a violência psicológica tem sido divulgada com mais frequência, embora a população muitas vezes não tenha clareza quanto as práticas que causam danos emocionais ou diminuição da autoestima da vítima. Qualquer ato usado para degradar ou controlar ações, crenças e comportamentos podem ser classificados como violência psicológica, como exemplos poderíamos citar ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, vigilância constante, perseguição, insultos, chantagem, exploração, limitação do direito de ir, vir, viajar ou falar com amigos, ridicularização, ou ainda, a prática conhecida por gaslighting (que se caracteriza por distorcer e omitir fatos para provocar dúvida da mulher sobre sua sanidade mental e memória).
Apesar de a violência sexual ser bastante discutida pelas políticas de prevenção, muitas vezes ela ainda é vista de forma restrita, como a prática associada a situações que envolvem pessoas desconhecidas da vítima, raramente ela é associada a pessoas conhecidas ou dentro da relação conjugal, como no estupro marital. Esse tipo de abuso pode ser entendido como qualquer comportamento que provoque intimidação da mulher a participar de relação sexual ou prática que cause desconforto ou repulsa.
Também é considerada violação as práticas de impedir o uso de métodos contraceptivos, forçar a mulher a abortar, forçar matrimônio, gravidez ou prostituição, seja pelo uso da coação, chantagem, suborno ou manipulação. A violência patrimonial pode ser considerada como a menos conhecida dentre as violências perpetradas contra a mulher, embora seja bastante recorrente, principalmente em casos de divórcio ou conflitos conjugais. Essa prática se caracteriza por atos de retenção, subtração e destruição de objetos da mulher, como instrumentos de trabalho e documentos pessoais.
Alguns exemplos dessa conduta são controlar o dinheiro da mulher, deixar de pagar pensão, furtar objetos ou dinheiro, e ainda, praticar extorsão ou estelionato. E por fim, a violência moral configura ações de calúnia, difamação ou injúria, como acusar a mulher de traição, fazer críticas mentirosas ou expor a vida íntima. Também são considerados atos abusivos os xingamentos que incidam sobre sua índole ou desvalorizem a mulher pelo seu modo de se vestir.
As causas da violência doméstica são complexas e envolvem dimensões pessoais, conjugais, familiares, sociais e programáticas. Diversos fatores devem ser considerados no enfrentamento da violência doméstica, pois ela coloca em cena uma série de experiências emocionais difíceis de serem elaboradas pela mulher, tais como o medo, a vergonha, o desamparo, o luto pela quebra dos vínculos conjugais e familiares, entre outras. É uma questão tanto familiar quanto social, que muitas vezes necessita de intervenções externas, seja de alguém de fora da família, seja do poder público.
Veja também: Lei do Stalking: avanço ou retrocesso para as mulheres?
A denúncia da violência esbarra em inúmeras dificuldades. Nem sempre é simples identificar o que é violência, inclusive pela própria vítima, que, muitas vezes demora em dar este sentido ao vivido. Outra dificuldade é o medo das consequências da denúncia como o receio de que ela destrua os laços familiares, ou mesmo que intensifique as agressões. Quando a denúncia é realizada, nem sempre ela é acolhida de forma eficaz e a partir de escuta qualificada para as suas demandas.
*Fernando da Silveira, Julia Garcia Durand e Aline Souza Martins são professores de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Add new comment