Constantemente é possível observar nos jornais do país manchetes referentes à Guerra Fiscal entre Estados. Entretanto, o título que estampa tantas notícias, se apresenta, em geral, desacompanhado de qualquer tipo de explicação acerca de sua natureza, legalidade ou até mesmo consequências. Deste modo, resta o questionamento: o que é a Guerra Fiscal?
Antes de desenvolver maiores considerações, faz-se necessário diferenciar o aspecto fiscal e extrafiscal dos tributos, vertentes igualmente importantes e que coexistem em qualquer espécie. A fiscalidade nada mais é do que as disposições normativas inerentes a determinado tributo, intrinsecamente ligada a finalidade arrecadatória; ao passo que a extrafiscalidade consiste em objetivos mais amplos, sociais, econômicos e até mesmo políticos.
Nas palavras do Professor Doutor Roque Antônio Carrazza, a extrafiscalidade apresenta-se sempre que: “O legislador, em nome do interesse coletivo, aumenta ou diminui as alíquotas e/ou base de cálculo dos tributos, com o objetivo principal de induzir os contribuintes a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa”.
A extrafiscalidade confere aos tributos, portanto, um fim além da mera manutenção da máquina estatal, portando-se como instrumento capaz de interferir na economia, incentivando ou desestimulando determinadas condutas e favorecendo certas regiões. Se dentro dos ditames constitucionais, a extrafiscalidade é plenamente lícita, de modo à somente disciplinar a conduta dos contribuintes.
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Entretanto, a extrafiscalidade pode vir a tornar-se ilícita, nos casos de concessão de isenções, anistias, remissões, imposição seletiva de alíquotas e créditos presumidos, sem a devida observância dos requisitos formais e materiais previstos na Constituição da República e no Código Tributário Nacional. Logo, é possível inferir que a Guerra Fiscal é a personificação material da extrafiscalidade ilícita, sendo resumida nas palavras de Osvaldo Santos de Carvalho como:
“A concessão unilateral de incentivos ou benefícios fiscais pelos Estados, à margem da Lei Complementar nº 24/75, e por corolário jurídico à margem da Constituição Federal, com o intuito de atrair investimentos, gerando, por conseqüência, a retaliação de outros Estados, das mais diversas formas possíveis, seja glosando os créditos gravados de incentivo, lançando autos de infração e imposição de multas aos contribuintes, seja batendo as portas do Judiciário, almejando a retirada do ordenamento da medida que concedeu o benefício inconstitucional”.
Perante o excerto, imperioso apontar as três frentes de batalha da Guerra Fiscal: i. Estados que glosam créditos gravados de incentivo; ii. A proposição de Ações Diretas de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal; e iii. Disputa de qual Estado concede o melhor incentivo, à margem da lei e de regulamentos.
Em relação ao primeiro ponto, infere-se que a glosa de créditos nada mais é que um óbice ao direito, o impedimento por parte do fisco ao contribuinte de utilizar determinado crédito para abater seus débitos fiscais. Tal situação ocorre, a título de exemplo, com empresa sediada no Estado de São Paulo, que ao comprar certo produto produzido na Zona Franca de Manaus teve abatimento no ICMS de tal bem (em razão de benefícios fiscais concedido pelo Estado do Amazonas), abatimento este posteriormente cobrado pelo governo paulista perante a chegada do produto em seu território.
No exemplo citado, observa-se que o Estado não trava a Guerra Fiscal com outro ente federativo, mas com o próprio contribuinte. A questão parecia pacificada com o julgamento do Tema 490 de Repercussão Geral pelo Supremo Tribunal Federal, fixando a seguinte tese: “O estorno proporcional de crédito de ICMS efetuado pelo Estado de destino, em razão de crédito fiscal presumido concedido pelo Estado de origem sem autorização do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), não viola o princípio constitucional da não cumulatividade”.
Contudo, no que tange especificamente a Zona Franca de Manaus, a controvérsia gira em torno da aplicabilidade do art. 15 da Lei Complementar nº 24/75, que estabelece que a exigência de celebração de convênios para a concessão de isenções “não se aplica às indústrias instaladas ou que vierem a instalar-se na Zona Franca de Manaus, sendo vedado às demais Unidades da Federação determinar a exclusão de incentivo fiscal, prêmio ou estimulo concedido pelo Estado do Amazonas”.
Assim sendo, mesmo com uma suposta pacificação ainda persistem rusgas entre os entes federativos, como é possível observar com a Câmara Superior o Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT), que na sessão de julgamento monotemática de 24 de março, decidiu que o Estado de São Paulo não é obrigado efetuar a manutenção dos créditos de ICMS destacados nos documentos fiscais de aquisição de mercadorias, nos casos em que o fabricante se utilize do benefício concedido pelo Estado do Amazonas e não realize o pagamento dos impostos no Estado de origem.
O segundo front, por sua vez, mostra-se perfeitamente legal, nos moldes do art. 103, inciso V da Constituição da República. O dispositivo em pauta confere legitimidade a governadores para o ajuizamento de remédios constitucionais do controle concentrado de constitucionalidade, desde que devidamente demonstrado o interesse do Estado que representam. Por não haver encalço relevante, tal ponto não possuirá maiores aprofundamentos.
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Já a terceira linha exposta, também teria sofrido suposta pacificação com o Convênio ICMS nº 190/2017, norma que convalida todos os atos normativos relacionados a benefícios fiscais concedidos sem autorização do CONFAZ, publicados até 08 de agosto de 2017, ou que foram ou estão em discussão judicial, desde que haja a sua desistência nos âmbitos administrativo e judicial.
Todavia, insta-se que o referido Convênio apesar de cumprir a primeira vista o fim que lhe foi proposto, não é de fato revolucionário no que diz respeito a um suposto fim da Guerra Fiscal. Isso porque ao traçar um aspecto temporal frente a disposições formais acerca da condução da concessão de benefícios pelos Estados, o Convênio já tem data de vencimento, não agregando de modo relevante a discussões que transpassem seu tempo de duração.
A recente discussão acerca da redução do ICMS-combustível pelos Estados membros reacendeu o debate envolvendo a Guerra Fiscal, ao expor a potencial criação de um Imposto de Valor Agregado (IVA), modelo que englobaria o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), o PIS (Programa de Integração Social), a COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), o ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços) e o ISS (Imposto Sobre Serviços).
Ao concentrar a arrecadação de todos os tributos citados em um único imposto federal, os Estados receberiam repasses da União, de tal maneira que não seria mais possível a concessão de benefícios ou isenções pelos Estados Membros. Ademais, denota-se a impossibilidade de glosar créditos, bem como a extinção de legislações estaduais no que concerne ao ICMS, extinguindo também a cadeia de ações que questionam a sua constitucionalidade.
A instalação do IVA mostra-se assim, como uma conclusão quase milagrosa para a Guerra Fiscal. Entretanto, como já se denota da solução dada pelo Convênio ICMS nº 190/2017, não há resolução tão simples para a Guerra Fiscal, situação que há anos causa desacordo entre os Entes Federativos, e que se comporta como uma das raízes tributárias do país.
*Flávia Sant’anna Benites, sócia do escritório Ernesto Borges Advogados.
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