Jair Bolsonaro e o Tribunal Penal Internacional

Entidades sindicais dos profissionais da saúde protocolaram representação criminal contra o presidente Jair Bolsonaro junto ao Tribunal Penal Internacional/Fotos Públicas
Entidades sindicais dos profissionais da saúde protocolaram representação criminal contra o presidente Jair Bolsonaro junto ao Tribunal Penal Internacional/Fotos Públicas
Como outros tribunais de direitos humanos, o TPI exige que a jurisdição doméstica tenha, de certa forma, “falhado” na análise penal dos fatos.
Fecha de publicación: 30/07/2020
Etiquetas: Brasil

Na última semana, foi divulgado que coalização de entidades sindicais dos profissionais da saúde protocolou representação criminal contra o presidente Jair Bolsonaro perante o Tribunal Penal Internacional (TPI). Concluído em 1998, o texto legal base do tribunal, o Estatuto de Roma, prevê que esse corpo judicial possui competência para investigar, processar e julgar crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e, mais recentemente, crimes de agressão.

A diferença fundamental do TPI para outros tribunais internacionais é que ele investiga, processa e julga indivíduos, já que, universalmente, a responsabilidade criminal se funda na responsabilidade subjetiva da pessoa humana. Ao lado da responsabilidade individual, pode haver também a responsabilidade internacional do Estado pelos crimes de competência do tribunal, devendo o Estado, se for o caso, ser processado em tribunais próprios, os quais, no mais das vezes, exercerão sua competência a depender de um ato do próprio Estado de aceitar a jurisdição do tribunal.

O TPI não é diferente nesse aspecto. Apesar de a responsabilidade ser individual, os Estados têm que aceitar a jurisdição do TPI, por meio da assinatura e ratificação do Estatuto de Roma, para que o tribunal investigue os fatos ocorridos em seus territórios. Na denúncia apresentada pela coalização, pede-se o exercício da competência do tribunal dado o Brasil ser parte signatária e ter ratificado o Tribunal.

Apesar dos já quase vinte anos do Tribunal, a prática jurídica brasileira (não a prática de moot courts, essas muito bem consolidadas e dignas de menções honrosas), ainda deve difundir melhor o funcionamento desse tribunal, entender seus requisitos básicos de jurisdição e dedicar mais atenção às decisões da corte, sobretudo àquelas sobre matérias processuais, que deveriam ser do conhecimento e da prática judicial doméstica, eis que tais decisões versam sobre temas fundamentais à compreensão e evolução do conceito de devido processo legal.

São vários os aspectos a serem ressaltados à vista da nova denúncia feita contra o Presidente Bolsonaro, mas vamos abordar apenas aquele que parece ser o mais central.  

Como outros tribunais de direitos humanos, o TPI exige que a jurisdição doméstica tenha, de certa forma, “falhado” na persecução penal dos fatos. Isso consta do artigo 17, inciso 1, alínea a. Nos termos do texto legal, a corte deve determinar que um caso é inadmissível se o Estado que tem jurisdição para apurar os fatos estiver investigando o evento criminoso.

O caso será admissível, por outro lado, se esse Estado estiver “unwilling or unable genuinely to carry out the investigation or prosecution”. No Decreto de promulgação do Estatuto de Roma na ordem interna, essa cláusula foi traduzida da seguinte forma: “salvo se este (o Estado) não tiver vontade de levar a cabo o inquérito ou o procedimento ou, não tenha capacidade para o fazer.” Essa cláusula consagra o princípio da complementariedade da jurisdição do TPI e manifesta a preocupação legítima de se respeitar a soberania das jurisdições domésticas e para evitar seja sobrecarregada com casos que deveriam ser, primeiro, lidados nas instâncias nacionais.

Portanto, são dois critérios que devem ser analisados: vontade de investigar e capacidade de investigar. Para esse segundo requisito, não parece haver dúvidas. Tome-se o exemplo da Operação Lava-Jato, a qual demonstrou a capacidade funcional e orçamentária de as instituições de investigação agirem de modo independente ao poder político em exercício (não que isso tenha ocorrido sem críticas merecidas, faça-se o registro). Assim, parece claro que o Estado brasileiro tem capacidade de sobra para eventual apuração de quaisquer fatos nas instâncias domésticas, de modo que qualquer denúncia contra um presidente brasileiro em exercício não deveria estar sujeito à inadmissão no TPI por esse primeiro aspecto.

Restaria saber o que é o requisito “vontade genuína” para investigar. Esse requisito deve ser interpretado com a leitura da cláusula seguinte que dispõe ser um caso inadmissível se “O caso tiver sido objeto de inquérito por um Estado com jurisdição sobre ele e tal Estado tenha decidido não dar seguimento ao procedimento criminal contra a pessoa em causa, a menos que esta decisão resulte do fato de esse Estado não ter vontade de proceder criminalmente ou da sua incapacidade real para o fazer." Ou seja, se o Estado não deu seguimento ao procedimento criminal por razões legítimas, o TPI não deve exercer sua jurisdição, exceto se esse não seguimento ocorreu por falta de vontade para a investigação.

Segundo a denúncia brasileira recém apresentada no TPI, ao que se depreende das informações publicadas, traz um histórico de declarações e medidas administrativas e legais do presidente em exercício que seriam contrarias às orientações básicas e consensuais no âmbito internacional para evitar a disseminação da Covid-19, que causou pandemia, fatos que, em tese, e segundo a argumentação desenvolvida, poderiam configurar crimes de genocídio e contra a humanidade.

Ainda segundo as publicações, as entidades sindicais têm buscado a proteção judicial dos trabalhadores, a fim de lhes garantir condições seguras de trabalho, mas sem sucesso, o que denotaria a fraqueza da proteção de seus direitos básicos no âmbito nacional. Quanto à investigação criminal do presidente em exercício, pode-se suscitar que procuradores da República solicitaram ao procurador geral da República que iniciasse uma investigação criminal contra o presidente em exercício, tendo esse pedido recebido solução de arquivamento em março. A alegação de ausência de proteção cível e criminal na jurisdição doméstica denotaria falta de vontade para investigar?

Por uma intepretação do Estatuto de Roma, se ninguém, nenhum Estado começou uma investigação, então pelo menos esse óbice não deveria entrar em lugar, pois a ausência de procedimento deixa o caminho aberto para o TPI exercer sua jurisdição (se nem sequer uma averiguação foi instaurada, objetivamente não deve ter havido vontade institucional).

O que ocorre é que, a fim de evitar desgastes e incentivar o cumprimento do Estatuto, o gabinete da Promotoria, órgão no TPI responsável pela investigação, pode muito bem questionar o Estado a respeito da falta de apuração (artigo 15, 2, do Estatuto) e este então decidir iniciar seus procedimentos, o que é muito mais desejável.

Caso os procedimentos domésticos não sejam instaurados, o TPI pode, por exemplo, começar a analisar a independência do sistema judicial do país e verificar se ele está impregnado de interferência política, se há julgamentos com scrpits prontos, enfim, realizar uma análise exaustiva a partir de diversas fontes, oficiais e não oficiais desses aspectos e de outros. Assim, em resumo, por falta de vontade, deve-se entender um ânimo institucional de proteger a pessoa que deveria ser investigada, seja por atrasos indevidos, seja por falta independência e imparcialidade.

À vista disso, tem-se que a apatia até o momento das instituições de investigação brasileiras não deve ser considerada falta de vontade para investigar eventuais crimes do presidente em exercício, não nos termos enquadrados pelo TPI. O lapso de tempo decorrido desde o início desses atos até o presente momento ainda é curto, mormente quando comparado aos casos sob investigação no TPI.

Ainda há tempo, independência, possibilidade de coleta de provas, tudo a indicar espaço livre de manobra para as autoridades brasileiras tomarem ação contra a pessoa do presidente, seja pelo processo de impeachment por crime de responsabilidade, seja pela sua responsabilização individual logo depois de ele deixar o cargo de presidente.

A problemática deve ser endereçada com vistas a diminuir o longo histórico de impunidade brasileira para crimes grosseiros do Estado e de seus agentes. O exemplo das tentativas ministeriais de punição dos oficiais da ditadura está presente para ser estudado. No momento, por mais que se considere faltar vontade política e institucional para apurar eventual responsabilidade do presidente, esse juízo é temporário e não definitivo. O tempo definirá.

*Fernando Barboza Dias é sócio do escritório De Paula Ribeiro Dias Sociedade de Advogados.

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