Limites da jurisdição brasileira delineados em recente disputa

Como inexistia cláusula de eleição de foro em favor das cortes brasileiras, a empresa brasileira se apoiou no artigo 21, II e III, do Código de Processo Civil / National Cancer Institute - Unsplash
Como inexistia cláusula de eleição de foro em favor das cortes brasileiras, a empresa brasileira se apoiou no artigo 21, II e III, do Código de Processo Civil / National Cancer Institute - Unsplash
Esse tema foi central em litígio entre empresa norte-americana de desenvolvimento de medicamentos para combater o câncer e empresa brasileira de biotecnologia.
Fecha de publicación: 07/06/2023

Cada país é soberano para fixar a sua própria jurisdição quanto a ações que lhe são submetidas. Para evitar receber toda e qualquer demanda, os países fixam regras e princípios, de modo a restringir sua jurisdição àquelas demandas que efetivamente merecem a atuação do Poder Judiciário.

O aumento da complexidade das disputas que apresentam com mais frequência elementos de conexão com uma pluralidade de territórios torna a definição do país apto a julgá-las tarefa que passa longe da trivialidade. Analisando o cenário local, questiona-se até onde vai a jurisdição das cortes brasileiras para decidir disputas transnacionais. Essa questão se mostra importante especialmente na hipótese em que inexista acordo prévio das partes sobre o foro competente para dirimi-las. 

Esse tema foi objeto central do litígio encerrado no início de 2023 entre empresa norte-americana, líder mundial no desenvolvimento de medicamentos para combater o câncer, e empresa brasileira de biotecnologia (processo nº 1083669-56.2022.8.26.0100, em trâmite perante a 4ª Vara Cível do Foro Central da Capital do Estado de São Paulo). 


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Em 2016, as partes comprometeram-se, por contrato de colaboração, a empenhar “esforços comercialmente razoáveis” para desenvolver, fabricar e comercializar anticorpos utilizados em tratamento de câncer. Ocorre que, em agosto de 2022, a empresa brasileira iniciou o mencionado processo na 4ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo, pedindo a rescisão desse contrato pelo seu suposto inadimplemento substancial e buscando, assim, obter para si os direitos de patente de propriedade da contraparte no mundo. 

Como inexistia cláusula de eleição de foro em favor das cortes brasileiras, a empresa brasileira se apoiou no artigo 21, II e III, do Código de Processo Civil, e no artigo 12, caput, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, para justificar o ajuizamento da referida ação. Em síntese, tais dispositivos determinam que cabe ao juiz nacional o julgamento de demandas que versem sobre obrigações que devam ser cumpridas no território nacional ou sobre fatos ali ocorridos.

Em manifestações apresentadas nos autos, para o que interessa ao tema em análise, a empresa norte-americana, representada pelo BMA Advogados, apontou a inexistência de jurisdição das cortes brasileiras, demonstrando que as principais obrigações assumidas por si, bem como os fatos e atos a elas relacionados, eram cumpridos ou ocorreram integralmente em território estrangeiro. 

Subsidiariamente, mesmo que se entendesse que alguma norma de conexão com a jurisdição brasileira incidisse em princípio, a ação deveria ser ainda assim extinta, por força do clássico princípio da efetividade (STJ, REsp nº. 1.168.547/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 11.5.2010). Seguindo esse princípio, como eventual sentença condenatória posteriormente proferida não seria efetivada no Brasil, não faria sentido a mobilização do Poder Judiciário brasileiro para processar tal disputa. 

De fato, a empresa americana, que sequer possui ativos no território nacional, demonstrou que eventual futura condenação dependeria, em última análise, da inclinação das cortes dos EUA para reconhecer tal decisão e cumpri-la.  Porém, diversos elementos apontavam para a resposta negativa. Por exemplo:

i. Antes do início do processo iniciado pela empresa brasileira no Brasil, a americana já havia ajuizado demanda nos Estados Unidos com o mesmo pedido de rescisão (porém, por culpa da brasileira), que, por sua vez, já se encontrava em fase de produção de documentos;

ii. O pleito mais importante da empresa brasileira, qual seja, a transferência de todos os direitos de patente de propriedade da norte-americana, não poderia ser efetivado pelas cortes brasileiras, porque referida tecnologia estava registrada em órgãos localizados em países estrangeiros. 


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Reconhecendo o pleito da empresa americana, a sentença extinguiu o processo por ausência de jurisdição das cortes brasileiras. Nas palavras do juiz da 4ª Vara Cível, não estariam caracterizadas as hipóteses de jurisdição concorrente, pois o suposto “descumprimento das obrigações contratuais assumidas pela [empresa americana são] relativas a fatos ou atos que deveriam ser praticados fora do território nacional”. E, mesmo no cenário em que se tivesse comprovado fato ou ato praticado no Brasil, o “reconhecimento da jurisdição brasileira não resistiria à análise da conveniência para as partes envolvidas”. Em outras palavras, à luz do princípio da efetividade e das características da disputa, seria mais fácil a produção de provas nos EUA e o título judicial constituído no Brasil não seria efetivo. Esse entendimento foi preservado liminarmente pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

Referida decisão ― uma rara aplicação dessas regras e princípios sobre possíveis jurisdições concorrentes ― é de extrema importância para os negócios desenvolvidos internacionalmente, à medida que traceja contornos à jurisdição brasileira em demandas envolvendo contratos internacionais em que não há pactuação de cláusula de eleição de foro. De um lado, esclarece que, para fins de aplicação do art. 21, II e III do CPC, o local de cumprimento da obrigação principal (bem como o território onde ocorreram os seus fatos e atos relacionados) é o que deve ser levado em consideração. De outro lado, mostra que o princípio da efetividade é reconhecido no ordenamento pátrio, apesar de decorrer de uma construção doutrinária e jurisprudencial, sem haver dispositivo legal expresso, o que pode impactar de forma relevante discussões futuras sobre o mesmo tema.

*André de Albuquerque Cavalcanti Abbud, Gustavo Santos Kulesza, Renan Frediani Torres Peres são sócios e Aécio Filipe Coelho Fraga de Oliveira é advogado da área de Solução de Conflitos do BMA Advogados.

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