A natureza jurídica da ANPD e seu poder de fiscalização

ANPD foi transformada em “autarquia de natureza especial, dotada de autonomia técnica e decisória, com patrimônio próprio”/Canva
ANPD foi transformada em “autarquia de natureza especial, dotada de autonomia técnica e decisória, com patrimônio próprio”/Canva
Qual a real aplicabilidade da LGPD se não havia órgãos constituídos para fiscalizar o tratamento dos dados pessoais?
Fecha de publicación: 28/10/2022

Quando da entrada em vigor da Lei n° 13.709/2018 (LGPD), muito se comentou sobre o fato de as Seções I e II, do Capítulo IX – Da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade, que compreendem os artigos 55 a 59 da LGPD, terem sido vetadas do texto final. Ora, se havia uma legislação em vigor relativa à proteção de dados pessoais, qual a real aplicabilidade da LGPD se não havia órgãos constituídos para fiscalizar o tratamento dos dados pessoais e, eventualmente, aplicar as penalidades previstas para os casos de descumprimento?

 

Levando em conta a lacuna legal inicial da LGPD quanto aos órgãos de supervisão e fiscalização, em dezembro de 2018 foi editada a MP 869/2018, posteriormente convertida na Lei 13.853/2019. Ainda, foi estabelecida a estrutura regimental da ANPD por meio do Decreto 10.474/2020. Por meio desses dispositivos legais, entre outras alterações implementadas na LGPD, foram criados a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e o Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade (CNPD). 


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À ANPD coube a supervisão da atividade de tratamento de dados pessoais no Brasil, sendo responsável pelo estudo de normas internacionais aplicáveis, elaboração e informação ao público de políticas relacionadas à proteção de dados pessoais, comunicação com os agentes públicos e privados envolvidos e, ainda, fiscalização e punição dos infratores.

 

Já ao CNPD coube a fixação de diretrizes gerais e estratégicas para o funcionamento da ANPD e para a realização de estudos e audiências públicas relacionadas a privacidade e proteção de dados.

 

Ao tempo da edição da MP 869/2018, convertida na Lei 13.853/2019, muito embora os órgãos fiscalizadores da privacidade de dados no Brasil tenham sido criados, sua mera criação não significava exatamente a implementação efetiva dos mecanismos de controle e supervisão. Isto porque uma das principais características necessárias aos órgãos efetivos de controle e supervisão é a sua independência. E neste aspecto, a palavra “independência” deve ser interpretada como independência funcional e financeira (orçamento independente), sendo inclusive um dos requisitos funcionais para a criação de órgãos de supervisão de proteção de dados de acordo com legislações estrangeiras, notadamente o Regulamento Geral de Proteção de Dados europeu (GDPR). 

 

No caso da ANPD, esta autoridade nacional foi criada como órgão da administração pública direta, subordinada à Presidência da República, o que vinculava toda a sua atividade de supervisão e fiscalização. Em outras palavras, e para demonstrar o conflito existente, a ANPD, como ente da administração pública federal e sem independência funcional e financeira, por vezes estaria supervisionando e fiscalizando as atividades de tratamento de dados da própria administração pública. E quanto à aplicação das penalidades, qual seria a isenção da ANPD para desempenhar este papel?

 

Dadas as questões mencionadas acima, em mais um esforço legislativo na tentativa de resolver o problema da independência na supervisão e fiscalização das atividades de tratamento de dados no Brasil e completa implementação das regras da LGPD, foi editada a MP 1.124/2022, com a consequente edição posterior do Decreto 11.202/2022. De acordo com as novas regras fixadas pela MP 1.124/2022 a ANPD foi, então, transformada em “autarquia de natureza especial, dotada de autonomia técnica e decisória, com patrimônio próprio”.

 

O fato de a ANPD ter sido transformada em uma autarquia modifica bastante suas prerrogativas de atuação. As autarquias, na qualidade de entes da administração pública indireta, possuem patrimônio e receita próprios, e gestão administrativa e financeira descentralizada, o que lhes confere bastante independência em sua atuação. Ainda, considerando que as autarquias não possuem qualquer finalidade lucrativa, tais entidades não estão sujeitas a qualquer tipo de concorrência de mercado, agindo com a independência necessária ao desempenho de suas funções primordiais, tanto perante os entes públicos como perante os entes privados.


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Logo, o legislador apontou na direção certa ao determinar a autarquia como a pessoa jurídica adequada ao funcionamento da ANPD para exercer as funções de supervisão e fiscalização da atividade de tratamento de dados no Brasil. Porém, ainda não está expresso em lei que a ANPD possui autonomia funcional, administrativa e financeira, o que ainda pode causar alguma preocupação do ponto de vista de seu funcionamento pleno e efetivo. Além disso, embora a MP 1.124/2022 (que, como visto, atribui autonomia técnica e decisória e patrimônio próprio à ANPD) permaneça vigente até 24 de outubro de 2022 por força de sua prorrogação, perderá eficácia caso não seja convertida em lei.

 

Resta saber qual será o posicionamento do Congresso Nacional em relação à conversão da MP em lei. Atualmente, a MP 1124/2022 está para votação em plenário e há diversas emendas modificativas a serem votadas, o que ainda pode alterar de alguma forma sua estrutura e funcionamento. Em vistas das indefinições, a ANPD segue sem realizar, de fato, a fiscalização para a qual foi criada.

 

Espera-se que a situação atual não perdure por mais tempo, já que a agenda regulatória da ANPD para o biênio 2023–2024 está em fase de planejamento e dependerá de definição prévia das questões estruturais da autarquia para a sua implementação.

 

A Medida Provisória n° 1124/2022 foi convertida na Lei 14.460 DE 2022, promulgada em 25 de outubro e publicada no Diário Oficial da União no dia 26 de outubro. Todas as propostas de emenda foram rejeitadas.

 

*Mauricio Nicodemos é advogado sênior no escritório CSMV Advogados.

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