A negociação com empregados hipersuficientes e os precedentes jurídicos

As empresas têm maiores elementos para defender as negociações com seus executivos/Canva
As empresas têm maiores elementos para defender as negociações com seus executivos/Canva
Regra geral é que as pactuações realizadas diretamente entre empregados e empregadores serão inválidas se a negociação atinge direitos trabalhistas previstos em lei
Fecha de publicación: 01/07/2022

Desde a entrada em vigor da Reforma Trabalhista (Lei 13.467/17), muito se discute a respeito da interpretação a ser conferida ao artigo 444, parágrafo único, da CLT, que permite a livre negociação das condições de trabalho diretamente entre empregado e empregador. A discussão é levantada principalmente quando a negociação envolve empregados denominados "hipersuficientes". Chamam-se assim aqueles colaboradores com diploma de nível superior e que recebem salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social (hoje  R$ 14.174,44) e trata de temas que podem ser objetos de negociação coletiva segundo o rol do artigo 611-A da CLT.

A regra geral é que as pactuações realizadas diretamente entre empregados e empregadores serão inválidas se a negociação atinge direitos trabalhistas previstos em lei. Entretanto, essa disposição pode ter interpretação diversa em se tratando de pactuação realizada com os ditos empregados hipersuficientes. Essa diferenciação tem por objetivo permitir uma maior liberdade de negociação das regras contratuais de trabalho para esses trabalhadores, privilegiando-se a autonomia da vontade das partes e aplicando-lhes uma presunção relativa de que sua manifestação se deu de forma livre e desimpedida ao negociar com seu empregador. Esse entendimento é completamente diferente daquele usualmente aplicado aos trabalhadores, pois regra geral eles são considerados hipossuficientes, ou seja, em posição de desvantagem frente ao empregador e sem capacidade de negociar as cláusulas contratuais.

A lei, na verdade, assume que esses profissionais, pela formação e capacidade financeira, negociam com maior liberdade com a empresa. Essa presunção legal, contudo, não impede eventual e futura nulidade da negociação se comprovada fraude ou vício de consentimento na manifestação de vontade.

Todavia, há quem entenda que essa classificação entre empregados hipossuficientes e hipersuficientes pode ser considerada discriminatória, e que a negociação com um colaborador dessa categoria apenas teria validade na hipótese de se estabelecer condições mais benéficas do que as já garantidas pela lei e pelas normas coletivas. Há, ainda, críticas a própria conceituação de hipersuficientes, considerando que o critério remuneratório deveria ser mais alto para, de fato, abarcar somente os altos executivos que efetivamente têm capacidade de livre negociação com a empresa.


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Discute-se também a constitucionalidade da previsão sob o argumento de que mesmo a diferenciação do empregado hipersuficiente em relação aos demais não o torna livre para negociar com seu empregador, porque permanece o caráter de subordinação jurídica da relação de emprego.

A despeito dessas críticas, a possibilidade de ampla negociação dos direitos trabalhistas, notadamente quando de fato se está diante de altos empregados e executivos, possibilita a efetiva adequação do contrato à realidade dessa prestação de serviços, do patamar remuneratório e dos pacotes de benefícios altamente específicos dessa categoria, muitas vezes atrelados às políticas de controladoras estrangeiras.

Nessa linha, a decisão recente do Supremo Tribunal Federal no julgamento do ARE 1.121.633, no começo de junho, trouxe um possível indicativo do posicionamento daquele tribunal a respeito da constitucionalidade e da interpretação a ser conferida a essa previsão legal e pode ser um argumento importante para sustentar as negociações com os hipersuficientes.

Nesse julgamento, o STF apreciou o tema 1.046 da Repercussão Geral para reconhecer que é constitucional a pactuação, por meio de normas coletivas (ou seja, com a participação do sindicato da categoria profissional dos trabalhadores), de "limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis".

Essa prevalência dos acordos coletivos e das convenções coletivas de trabalho sobre o previsto em lei, resguardados os direitos constitucionalmente assegurados e absolutamente indisponíveis, pode sugerir que a mesma interpretação será dada quando as negociações envolverem empregados hipersuficientes. Isso porque a lei refere expressamente que a livre estipulação das relações contratuais de trabalho com esses colaboradores pode se dar em relação às matérias que são negociáveis por meio de norma coletiva, podendo inclusive ser preponderantes sobre os acordos e convenções coletivas aplicáveis à categoria profissional desses trabalhadores.

Considerando-se que, segundo o entendimento do STF, as normas coletivas são consideradas constitucionais mesmo promovendo afastamento ou renúncia de direitos trabalhistas previstos em lei, é possível concluir que o mesmo racional poderá ser aplicado aos acordos individuais com hipersuficientes, podendo abranger, ainda, os direitos previstos em acordo e convenção coletiva.


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Trata-se de uma interpretação que amplia sobremaneira quais temas podem ser abordados na negociação direta entre empregador e empregado que se enquadrar nessa classificação, pois sendo resguardados os direitos previstos na Constituição Federal, os demais seriam passíveis de negociação entre as partes.

Evidentemente que a decisão do STF não permite uma efetiva segurança jurídica sobre essa interpretação, visto que o Tema 1.046 que foi julgado pela corte se limita à análise da prevalência do negociado coletivamente (com participação do Sindicato) sobre o legislado, e não trata da negociação direta entre empregador e empregado hipersuficiente.

Entretanto, trata-se de um indicativo do entendimento do Supremo Tribunal Federal que pode ser adotado como base para critérios interpretativos e de aplicação da negociação individual, visto que se trata da Corte Suprema reconhecendo que os direitos trabalhistas previstos em lei não são absolutos e podem ser objeto de negociação. Levando-se em conta esses parâmetros, as empresas têm maiores elementos para defender as negociações com seus executivos.

*Carolina Fay e Julia Pereira Salerno, associadas da prática trabalhista do Trench Rossi Watanabe.

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