A nova era das sociedades anônimas de futebol

Lei permite (e não obriga) que os clubes passem a ser sociedades anônimas de futebol, atraindo investidores/Freepik
Lei permite (e não obriga) que os clubes passem a ser sociedades anônimas de futebol, atraindo investidores/Freepik
Legislação cria importante instrumento para atração de investimentos, melhoria da gestão e equalização das finanças pelos clubes de futebol.
Fecha de publicación: 18/08/2021

É lugar comum que os grandes clubes de futebol no Brasil passam por sérios problemas financeiros. Os dados estatísticos e balancetes deixam claro que a situação econômica vai de mal a pior. Em 2020, as 20 maiores dívidas de clubes de futebol brasileiros totalizavam R$ 10,2 bilhões, um aumento de 17% em relação ao ano de 2019.

 

O valor da dívida, embora assuste, não é suficiente para dar um quadro completo da capacidade de pagamento dos clubes e associações esportivas. Se a dívida é grande, mas a receita é maior, não haveria com o que se preocupar. “Dívida não se paga: se administra” é frase corrente no mundo empresarial. Mas esse também não é o cenário.

 

Muito embora o mercado brasileiro de futebol tenha tido um crescimento de 18% em 2019, passando de R$ 5,7 bilhões para R$ 6,8 bilhões, a concentração desse aumento de receitas foi grande e, na maioria dos casos, centrada na velha fórmula de venda de direitos de jogadores. Fortaleza (137%), Athletico-PR (100%), Santos (84%) e Flamengo (75%) obtiveram os melhores resultados, enquanto Vasco (-17%), Cruzeiro (-15%), Fluminense (-11%) e Corinthians (-9%), os piores. Ainda assim, no final, o déficit para o ano de 2019 foi de R$ 583 milhões, frente a um superávit de R$ 13,9 milhões em 2018.


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Estudo da Ernest Young revela que o endividamento líquido do Cruzeiro frente às suas receitas é de 7,81: a dívida é quase 8 vezes o tamanho de seu faturamento anual. Dos 22 times analisados, 9 possuem endividamento de pelo menos o dobro de seu faturamento, dentre eles Santos, Internacional, Corinthians, Vasco, Fluminense e Botafogo. A relação é de 1,1 para Flamengo e Palmeiras, que tiveram a gestão financeira e esportiva mais bem sucedidas no Brasil nos últimos 5 anos.

 

Com esses dados, agora sim, temos motivos suficientes para nos preocupar com a solvabilidade e continuidade dos grandes clubes de futebol brasileiros. E o abismo financeiro entre o mercado brasileiro e os principais mercados europeus só aumenta - e de forma exponencial. 

 

Foi por conta dessa apreensão que foi sancionada a Lei nº 14.193/2021, que viabiliza a criação da Sociedade Anônima de Futebol (SAF). A tentativa, como consta na exposição de motivos do Projeto de Lei de autoria do Senador Rodrigo Pacheco (PSDB/RJ), é de que a SAF favoreça a criação de um “novo ambiente, no qual as organizações que atuem na atividade futebolística, de um lado, inspirem maior confiança, credibilidade e segurança, a fim de melhorar sua posição no mercado e seu relacionamento com terceiros, e, de outro, preservem aspectos culturais e sociais peculiares ao futebol”.

 

A Lei é rica e parece ter sido muito bem pensada com relação às possibilidades para a reorganização societária e governança dos clubes de futebol.

 

Os clubes de futebol brasileiros são associações civis sem fins lucrativos, ou seja, não tem “dono”. Em regra, os associados, que elegem os dirigentes, não são minimamente representativos de suas imensas torcidas. Os últimos dirigentes de Corinthians e Flamengo, por exemplo, foram eleitos com 1.081 e 1.879 votos, respectivamente.  As associações civis também têm limitações para obter financiamentos e para remunerar dirigentes.

 

A Lei permite (e não obriga) que os clubes passem a ser empresas (SAFs), atraindo investidores. É assim na Inglaterra, por exemplo, onde boa parte dos clubes são empresas (e tem “dono”) desde a década de 90.

 

Em resumo, a SAF poderá receber quase que a integralidade dos ativos tangíveis e intangíveis dos clubes relacionados à exploração do “negócio futebol” e, sem responder pelas dívidas até então existentes, se tornará automaticamente na entidade de prática desportiva integrante do “organized football” (FIFA, Conmebol, CBF e federações estaduais). Os ativos relacionados aos clubes sociais (piscinas, dependências físicas em geral) e à exploração de outros esportes, historicamente deficitários, não precisam ser transferidos às SAFs, o que em nossa opinião é muito positivo.

 

A SAF poderá ser constituída por transformação do clube, pela cisão do departamento de futebol ou por iniciativa de pessoa natural, pessoa jurídica ou fundo de investimento. Nas duas primeiras hipóteses, a SAF sucede o clube em suas relações contratuais com os atletas de futebol e tem o direito de participar de competições em substituição ao clube. No caso de cisão, a SAF emitirá ações ordinárias ‘classe A’ que deverão ser subscritas exclusivamente pelo clube constituinte, detendo poderes especiais de voto para os casos de alteração da denominação, modificação de símbolos da SAF e mudança de sede (art. 2º). Uma espécie de “Golden share”.

 

Por outro lado, o art. 3º da Lei destaca a forma de integralização pelo clube do capital social da SAF pela transferência de ativos (tais como nome, marca, símbolos, patrimônio, ativos imobilizados e mobilizados, além de registros, licenças, direitos desportivos sobre atletas e sua repercussão econômica), bem como estabelece restrições à transferência ou alienação de ativo ou desfazimento de participação acionária enquanto o clube detiver obrigações anteriores à data de constituição da SAF.

 

Mas como ficam as dívidas atuais dos clubes? A Lei concede aos clubes de futebol a possibilidade de endereçar as suas dívidas “por meio de recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos da Lei nº 11.101/2005” - LRF (art. 13, II, da Lei).

 

Embora a recuperação judicial e extrajudicial fosse até então exclusiva à “sociedade empresarial” (art. 1º, da LRF), a Lei prevê que “o clube, (...) por exercer atividade econômica, é admitido como parte legítima para requerer a recuperação judicial ou extrajudicial, submetendo-se à Lei nº 11.101/05”. Em outras palavras, agora é legalmente possível aos clubes de futebol requererem a recuperação judicial ou extrajudicial e proporem, naquilo que for condizente com sua estrutura societária, a apresentação de plano com meios de recuperação que contemplem as hipóteses do art. 50 da LRF.

 

A SAF, por sua vez, nascerá isenta das dívidas pregressas, ou seja, das enormes dívidas atuais dos clubes de futebol. Isso porque a Lei estipula que a SAF “não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição” (art. 9º).

 

Para tranquilidade dos credores, a Lei não dá um salvo conduto ao clube, que permanecerá “responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da SAF, por meio de receitas próprias”, angariadas a partir da exploração do patrimônio que não foi transferido para a SAF (clube social/outros esportes) e com parte das receitas da SAF que, obrigatoriamente, deverão ser repassadas ao clube: 20% das receitas correntes mensais auferidas e 50% (cinquenta por cento) dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida desta, na condição de acionista (art. 10).

 

Para o pagamento das dívidas do clube, poderá ainda ser adotado um Regime Centralizado de Execuções (“RCE”), que consiste em procedimento para “concentrar no juízo centralizador as execuções, as receitas e os valores arrecadados [do clube], (...) bem como a distribuição desses valores aos credores em concurso e de forma ordenada” (art. 14). O RCE poderá ser adotado para o pagamento integral das dívidas pelo prazo de até 6 anos (art. 15), prorrogável por outros 4 anos em caso de adequado cumprimento das metas, com diminuição dos repasses da SAF em favor do clube para 15% (art. 15, §2º).


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Nessas circunstâncias, caso adotada a SAF para restruturação dos clubes, imagina-se que a utilização de recuperação judicial ou extrajudicial pelo clube parece ficar bastante reduzida, ante a transferência de seus ativos relevantes para a SAF, a limitação de futuras receitas e, principalmente, a possível adoção do sistema RCE para pagamentos. Ou seja, não nos parece recomendado que o clube crie uma SAF e, concomitantemente, socorra-se da recuperação judicial.

 

Caso o clube se utilize dos instrumentos previstos na LRF – seja de forma exclusiva ou juntamente com a SAF -, deve atentar para os fatos de que a rejeição de plano de recuperação judicial poderá viabilizar a apresentação de um plano pelos credores e o seu descumprimento, na convolação da recuperação em falência, com consequências inimagináveis para a perpetuação de clubes que são instituições centenárias.

 

Em suma, a Lei é muito boa e dá um novo passo para a profissionalização do futebol, cabendo agora conferirmos se haverá interesse por parte dos clubes (e, principalmente, de seus dirigentes e associados/sócios atuais) em ceder grande parte de seu atual poder diretivo em prol de uma nova forma de gestão do futebol. O tempo irá dizer.

Há muito mais a ser dito sobre a Lei e seus potenciais efeitos. Mas, nessa primeira análise, fica evidente que a legislação cria importante instrumento para atração de investimentos, melhoria da gestão e equalização das finanças pelos clubes de futebol, para salvaguardar um esporte pentacampeão mundial.

 

*Renata Oliveira, Ivandro Maciel Sanchez Junior e Cesar Roenick são, respectivamente, sócios e advogado do Machado Meyer Advogados.

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