Quando algo trivial como um simples tweet é vendido por US$ 2,9 milhões (R$ 15,42 milhões em 19 de maio) é possível perceber o que tem atraído tanto a atenção da mídia nos últimos meses.
Em menos de três anos já se noticiou cerca de 500 milhões de dólares movimentados por meio dos tão falados NFTs, em operações tais como uma obra avaliada em US$ 95 mil que quase quadruplicou de valor na sua conversão para o meio digital ao ser destruída, uma imagem de artista digital vendida por R$ 382 milhões, uma edição especial de um novo disco de banda de rock por R$ 11 milhões e um vídeo de uma jogada de basquete por R$ 1,1 milhão.
A própria Bolsa de Nova York lançou uma coleção de NFTs para comemorar IPOs marcantes e o jornal New York Times transformou uma de suas colunas em um NFT.
Nestes recentes exemplos, os NFTs têm permitido colocar um poder impressionante na mão de artistas e criando verdadeiros “museus virtuais”. Para os entusiastas da arte, estes criptoativos são uma nova forma de acumular colecionáveis exclusivos. Para os criadores de conteúdo intelectual, essa é uma nova forma de fazer dinheiro e ganhar o devido reconhecimento pelo trabalho nas redes. Para os especuladores e early adopters, uma grande oportunidade. E para a maioria da população, um mundo fantástico, mas ainda desconhecido.
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Mas o que muitos não sabem é que os NFTs, a nova febre viabilizada pelo uso da tecnologia blockchain e que foi antecedido pelas criptomoedas popularizadas pelo pioneiro bitcoin, começa a tornar ainda mais palpável o promissor mundo da tokenização.
Os usos dessas tecnologias passam a marcar cada vez mais presença nas pautas de temas jurídicos, indo além das discussões envolvendo direitos autorais para atingir até investimentos imobiliários.
Ao mesmo tempo, os altos valores movimentados acionaram o radar das autoridades governamentais, devido ao risco de sua utilização em condutas ilícitas, e do mundo dos crimes cibernéticos onde hackers alvejam e atacam sistemas de entidades e indivíduos que armazenam criptoativos.
Mas afinal, os NFTs são revolucionários ou apenas uma histeria coletiva? O fato que se pode afirmar é que estes tokens têm alterado a projeção de valor dos bens digitais, bem como a aplicabilidade dos direitos sobre eles.
Com isso, ganhamos mais uma pista de qual será o cenário de um futuro próximo, movido pela digitalização do “mundo real” em todos os seus aspectos e um esforço jurídico para acompanhar esta evolução.
O que são os NFTs e como são utilizados?
Os NFTs, sigla que significa Non-Fungible Tokens ou tokens não fungíveis, são títulos digitais que representam direitos sobre determinado bem material ou digital. São ativos relacionados a quaisquer bens, desde que sejam únicos, exclusivos e não possam ser substituídos por outro da mesma espécie.
Basicamente qualquer bem tem o potencial de ser tokenizado e comercializado por NFTs: patentes e licenças de uso, artigos, carros colecionáveis, certificados, músicas, obras de arte físicas e digitais e até mesmo direitos sobre imóveis.
Os NFTs são registrados em plataformas que façam uso da tecnologia blockchain, como Etherum, Nifty Gateway, MakersPlace, Rarible, OpenSea, sendo imprescindível a utilização das criptomoedas como forma de pagamento pelo ativo digital.
Estas plataformas funcionam como um grande livro-razão onde todas as transações são registradas por meio de uma sequência criptográfica, que é disponibilizada para o acesso público.
O mecanismo criptográfico do blockchain garante que cada NFT registrado receba um código único e imodificável, ou seja, não é possível registrar os mesmos bens na plataforma e não é possível desfazer os registros de sua origem e das posteriores transferências, ficando tudo registrado no blockchain.
Repercussões jurídicas dos NFTs
A grande diferença da compra de um token para a compra e venda tradicional de um bem material é que um indivíduo que adquire um NFT pode estar adquirindo os direitos sob um determinado bem ou o bem propriamente dito.
Com ele, o comprador de um token não fungível passa a ser publicamente reconhecido como seu legítimo detentor, o que permite maior transparência no exercício do direito de onerar, ceder, vender e dar o NFT em garantia, e eventualmente até permitir o uso e gozo daquele bem a que o token se refere conforme regra que for definida para o NFT, mas não é garantia de segurança quanto ao uso indevido por terceiros.
Isso pode ser visto, por exemplo, na seara da propriedade intelectual, onde a aquisição de um NFT referente a uma obra por si só não garante sua legitimidade (alguém pode se declarar autor (titular do direito moral) ou legítimo titular do direito patrimonial e negociá-la em uma plataforma de NFTs, sem realmente sê-lo.
Ou ainda, mesmo possuindo o NFT e a comprovação via registro dessa titularidade na plataforma, ainda ter a obra amplamente copiada e usada indevidamente diante da facilidade de se replicar o conteúdo digital.
No campo contratual a formalização da venda dos NFTs pode ser feita usando-se de um contrato inteligente (smart contract) na própria plataforma do blockchain no qual ele (o NFT) for negociado. Estes contratos digitais permitem ser programados para que suas obrigações, benefícios e penalidades sejam autoexecutáveis por meio de códigos de programação, como algoritmos, módulos e regras, que garantem que as exigências contratuais sejam ativadas automaticamente.
Ainda, quanto à natureza jurídica desta relação contratual, trazem o potencial reconhecimento como termos de adesão, com cláusulas já pré-estabelecidas pelo vendedor do ativo, inclusive sujeitos às análises de legalidade diante da hipossuficiência e vulnerabilidade de uma das partes, ou em caso de má redação das cláusulas, serem passíveis de revisão pela justiça.
Em operações envolvendo imóveis a tokenização permitiria a divisão da propriedade deste bem material em múltiplos títulos digitais para que possam ser negociados virtualmente, ou seja, comprar um token imobiliário seria como adquirir uma fração digital deste bem material como forma de investimento. Mas esta aquisição não daria o direito real sobre o bem imóvel, nem permitiria, por si só, exercer o direito de ocupar o bem (posse).
Entretanto, a possibilidade de realizar a tokenização pode reduzir intermediários para negociação, garantir maior facilidade e rapidez nas transações e gerar maior liquidez no mercado. Além disso, este método de investimento é mais acessível, uma vez que o valor do imóvel pode ser diluído em um número de tokens bastante fracionado, reduzindo os investimentos mínimos em comparação ao formato tradicional de investimentos imobiliários.
No campo do direito societário, além do próprio reconhecimento de um NFT como ativo da empresa em operações de M&A, o entendimento consolidado pelo DREI nos dá a pista de uma possível utilização por exemplo na integralização do capital social de sociedades empresárias.
Isso porque a legislação brasileira prevê que as contribuições podem ser feitas em dinheiro ou bens de qualquer espécie, contanto que sejam passíveis de avaliação em dinheiro. Fazer essa opção envolve todo cuidado com a variação de preço que os NFTs podem sofrer, bem como a formalização do ato societário adequado e elaboração dos documentos contábeis necessários.
Na esfera do direito penal, os grandes valores que têm sido negociados estão no radar de autoridades públicas, que estão levantando a possibilidade de utilização destes ativos para fins ilícitos tais como lavagem de dinheiro e esquemas pirâmide, assim como ocorre com criptomoedas.
Um exemplo seria um indivíduo que compra o seu próprio token, por meio de contas secundárias, para gerar a valorização artificial do bem, movimentação esta que é de difícil identificação pelos órgãos fiscalizadores, uma vez que os preços se baseiam exclusivamente no que algum comprador está disposto a pagar.
Por fim, no rol exemplificativo explorado neste texto, na seara do direito tributário abre-se repercussões, por exemplo quanto à tributação sobre o ganho de capital, da mesma maneira que ocorre com as moedas digitais a exemplo do bitcoin e do ethereum, e quanto ao local da tributação, quando se tratar de transações internacionais.
Nesse sentido, a própria Receita Federal já criou código específico para declaração de “demais criptoativos, como tokens”, sinalizando que apesar de novo o novo mercado não passa desapercebido.
A grande versatilidade da utilização dos NFTs aponta para a grande revolução que temos potencialmente à frente. Sob o olhar jurídico, é possível dizer que o tema traz grandes incertezas, não apenas por ainda não haver uma regulamentação específica, o que é compreensível e esperado devido à impossibilidade de o legislador acompanhar as evoluções tecnológicas.
Vale direcionar, como cautela, a atenção para os riscos da utilização desta tecnologia, cercando-se sempre que possível de medidas de caráter multidisciplinar – direito e tecnologia - que possam afastá-los ou ao menos mitigá-los, sob as óticas das mais diversas áreas do direito aqui abordadas de forma superficial.
Isso inclui não apenas a análise e a redação de cláusulas contratuais bem elaboradas e que não deixem dúvida sobre as obrigações que forem determinadas, a formalização de procedimentos, a devida verificação jurídica da aplicabilidade e do alcance das legislações relacionadas à operação envolvendo o NFT, mas também técnica da representação das obrigações e limitações estabelecidas contratualmente e na legislação, na própria plataforma que gerar o registro do NFT – e a segurança por ela (a plataforma) adotada para evitar ataques e fraudes.
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Assim, a atuação preventiva, lado a lado com profissionais especializados e multidisciplinares para garantir a segurança das operações e evitar prejuízos decorrentes fraudes ou o recebimento de sanções por descumprimento da legislação aplicável, ganham a relevância exigida por aqueles que querem aproveitar da atual onda do momento trazido pela revolução que os NFTs representam, sem sofrer as consequências de quem se deixa levar apenas pela histeria da novidade.
*Márcio Chaves é sócio do escritório Almeida Advogados e especialista em direito digital e propriedade intelectual. Gabriela Cardoso Carvalho assistente jurídica do escritório.
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