Novos desafios para a regulamentação do Marco Civil da Internet no Brasil

O objetivo real da regulamentação não parece ser melhorar ambiente de “direitos e garantias” de usuários da internet no Brasil/Unsplash
O objetivo real da regulamentação não parece ser melhorar ambiente de “direitos e garantias” de usuários da internet no Brasil/Unsplash
Alteração do Decreto 8771/2016 representa retrocesso para ambiente digital.
Fecha de publicación: 13/06/2021

Nas últimas semanas, estiveram sob os holofotes da imprensa e opiniões de especialistas as repercussões trazidas pela minuta de Decreto do Executivo para alterar a regulamentação do Marco Civil da Internet no Brasil. Originada pela Secretaria Nacional de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual (SNADPI), ligada à pasta da Secretaria Especial de Cultura (Ministério do Turismo) a proposta modificaria substancialmente o Decreto 8.771, de 11 de maio de 2016, atualmente vigente. Segundo os pareceres trazidos nos documentos do processo administrativo e consultoria jurídica do Ministério, a proposta estaria justificada por três motivações gerais. 

A primeira estaria na necessidade de responder à abordagem insatisfatória do Marco Civil quanto aos direitos e garantias dos usuários de internet em nosso país. A segunda estaria na oportunidade de corrigir supostas distorções e "lacunas normativas" aproveitadas pelos provedores de internet (conexão e serviços de aplicações) para fazer valer irrestritamente seus termos de uso e políticas, violando direitos de usuários e liberdades comunicativas e informativas no Brasil. A terceira é a que vincula a tomada de certas decisões com fundamento em regras de termos de uso e políticas de provedores à intervenção do Judiciário. 


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Se aprovado, o Decreto presidencial irá mais além de um objetivo de pretensamente “aprofundar” direitos e garantias relacionadas ao uso da internet no sistema legal brasileiro, pois segundo o próprio Marco Civil, democraticamente aprovado pelo Congresso Nacional em abril de 2014 (e em vigor desde 2015), o papel de seu Decreto regulamentador é o de regulamentar a lei vigente. Aliás, o Decreto 8771/2016 basicamente reflete o quadro legal já consolidado no direito brasileiro, abstendo-se de burlar ou elidir o que a Constituição da República e a lei infraconstitucional estabelecem.

A proposta, ao contrário, pode ser questionada sob várias perspectivas. Uma delas é a de impor restrições antes desconhecidas às atividades de empresas de Internet no Brasil, incidindo sobre a forma de prestação de serviços (conexão e aplicações), ao determinar ajustes textuais às políticas de plataformas e termos de uso em prazo de 30 dias, alcançando também os fornecedores de meios de pagamento digital, e fixar novas obrigações “legais” específicas a provedores e originalmente não estabelecidas no Marco Civil da Internet.

Entre elas destacam-se obrigações associadas a certas bases e critérios de remoção de conteúdo e exclusão de contas de usuários, inclusive remoções a pedido de usuário e a pedido de terceiros por mera notificação extrajudicial (reestabelecimento do modelo de 'notice and takedown', corretamente superado pelo Marco Civil e pela jurisprudência dos tribunais brasileiros [antes mesmo da entrada em vigor da Lei]).

A minuta de Decreto em nada aprofunda o conjunto de direitos e garantias de usuários. Ao contrário, ele mais enfatiza a criação de regime específico de aplicação de direitos de propriedade intelectual na internet por procedimentos administrativos– especialmente direitos autorais, com atribuição para SNADPI, para fiscalização e apuração de infrações praticadas por provedores de aplicação de internet “a conteúdos e contas protegidas por direitos de autor, na forma da Lei 9.610/96" (Lei brasileira de Direito de Autor).

Consideram-se, contudo, riscos mais sérios relacionados aos dispositivos do Decreto pretendido pelo Executivo e o modo como ele busca estabelecer essas novas diretrizes que afetam direitos de usuários e políticas e termos de uso dos provedores. 

Um primeiro risco é setorial, pois pretende converter plataformas digitais em fiscais ou monitores dos usos da internet, contrariamente ao espírito do Marco Civil da Internet e tratados e convenções de que o Brasil é parte. O formato vislumbrado acompanha outras propostas de regulamentação já inadequadas no ambiente brasileiro. Isso porque elas buscam tratar empresas de Internet como meios de comunicação social, instituições de arrecadação de licenças de acesso a conteúdo online, ou de recomposição de receitas no segmento editorial (no caso de remuneração compulsória de conteúdo de notícias). 

Em segundo lugar, há risco associado à confusão entre poderes de regulamentação e polícia por parte de órgãos administrativos, sem garantias de controle judicial. O Decreto apresenta caráter vago para as atribuições conferidas à SNDAPI – fiscalizar e apurar “infrações praticadas por provedores de aplicações de internet a conteúdos e contas protegidos por direitos autorais”. Não se sabe qual o sentido dado a “contas” protegidas por direitos de autor, ou se o Decreto, caso aprovado, conteria ou limitaria eventual regulamentação ministerial feita para a Secretaria, a quem competiria processar administrativamente as demandas de infração a direitos de autor online envolvendo usuários e provedores de aplicações. 

Por fim, existiria um risco de transferência de imputação de responsabilidade civil por violação de direitos de autor. Seriam plataformas ou usuários de internet os eventuais infratores? Provedores de aplicações seriam responsáveis solidariamente em casos de violação de direitos de autor por usuários? Ainda assim, a proposta não seria adequada e proporcional, do ponto de vista da regulamentação infraconstitucional, particularmente porque o próprio Marco Civil da Internet faz referência à lei específica – a Lei de Direitos de Autor (Lei 9610/98) – para regular aspectos do uso da internet relacionados à proteção de direitos de autor e conexos.

Esse regime conta, inclusive por força de obrigações assumidas pelo Brasil nas Convenções de Berna de 1886 e Acordo TRIPS da Organização Mundial do Comércio (Decreto 1355/1994), com salvaguardas específicas para certos usos de obras protegidas por direitos de autor internet, além de exceções e limitações (direitos de citação, referência, comentários, paródia etc.), que se aplicam para acessos na internet.  

Com todas essas modificações, o objetivo real da regulamentação não parece ser melhorar ambiente de “direitos e garantias” de usuários da internet no Brasil, mas sim o de limitar direitos à informação e acesso a conteúdo online e alterar a base das obrigações legais de provedores. Igualmente, não seria isonômico, do ponto de vista do desenvolvimento da atividade econômica constitucionalmente protegida, que provedores de serviços de internet, incluindo de serviços de pagamento, fossem impedidos de aplicar disposições previstas em termos de uso de serviços. Importante observar que os termos e políticas não estão excluídos do controle judicial em casos de violação de direitos previstos no Marco Civil, como parece supor a minuta originada na SNADPI.


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A proposta, por sua vez, condiciona ações e atividades de provedores a determinações judiciais, como em casos de certas remoções de conteúdo infrativo, baseadas nas políticas. A técnica, inclusive, de listar bases de remoção de conteúdo mediante simples notificação de usuário estimulará mais litigiosidade na internet. Isso porque o Judiciário será chamado praticamente a intervir em todas as situações ali contempladas, em contrariedade a importantes políticas estabelecidas em nível nacional, como nos Enunciados adotados nas Jornadas de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios de 2016, do Conselho da Justiça Federal.

A proposta de alteração do Decreto 8771/2016, da forma como está, representará enorme retrocesso para o ambiente digital brasileiro. Passados mais de cinco anos de vigência, o Marco Civil merece não mutilação, mas antes uma revisão setorial de aplicação e efetividade. Ela deve levar em conta estudos de impacto e monitoração, combinado a modelos inteligentes de redução de litigiosidade.

*Fabrício Bertini Pasquot Polido é professor associado de Direito Internacional, Direito Comparado e Novas Tecnologias da UFMG. Doutor em Direito Internacional pela USP. Sócio da área de Inovação e Tecnologias e Solução de Disputas de L.O.Baptista.

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