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Julgado no início de setembro, o crime sofrido por Mariana Ferrer voltou aos comentários diante de uma matéria do jornal The Intercept Brasil, cuja manchete dizia que, em “sentença inédita”, o juiz teria acatado a tese de “estupro culposo” trazida pelo Ministério Público.
Além de incorreta, esta informação não é a parte mais importante da reportagem, razão pela qual será tratada só ao final. Primeiro, o que mais importa.
Segundo as informações divulgadas até o momento, o caso revela o machismo estrutural das instituições, que viola a dignidade humana de meninas e mulheres. Isso está escancarado no trecho da audiência exibido pela matéria, na qual o advogado de defesa realiza exposição pública e vexatória de fotografias da vítima, além de ridicularizá-la e humilhá-la, sem conexão com os fatos.
Que fique claro: é dever do advogado sustentar tese jurídica que corrobore a hipótese do seu constituinte, respeitando a Lei e a Constituição. Não há problema em questionar uma suposta vítima a respeito de detalhes sobre os fatos, mesmo que isso seja desconfortável. Pode-se inclusive questionar sua credibilidade, explorando possíveis interesses escusos na acusação, porque esta é uma possibilidade encampada pelo direito. Portanto, o foco deve estar no julgamento do crime, e não da pessoa.
Assim, o comportamento moral ou sexual da vítima de nada interessa à apuração dos fatos. Trata-se de uma interpretação misógina arcaica, baseada na consideração do estupro como crime contra a honra, como era denominado até 2009. Então, alguns defensores atacavam a honra da vítima como método para exclusão do crime – e por muito tempo, lamentavelmente, obtiveram sucesso.
Felizmente, o direito evoluiu para que o estupro fosse considerado um crime contra a dignidade sexual, não restando qualquer espaço para discussões sobre honra ou moral sexual da vítima como forma de alegar a inocorrência de estupro. Portanto, nem mesmo o princípio da ampla defesa permite ao advogado agir para humilhar ou revitimizar uma possível ofendida. Igualmente, não pode servir de pretexto para a aparente ausência de intervenção imediata do Ministério Público e do Judiciário naquela hipótese.
É por isso que, desde ontem, a maioria das mulheres está em choque. Cada violência a uma de nós reverbera em todas, como um trauma coletivo que se revive a cada novo gatilho. Foi assim no caso da menina de dez anos que interrompeu a gravidez, é assim no caso de Mariana Ferrer. Sofremos juntas cada uma dessas violências porque sabemos que ela sujeita a todas nós, algumas mais vulneráveis, outras menos, mas todas rotineiramente humilhadas, tratadas como menos que humanas.
Esse caso revela a necessidade de caminharmos muito em direção a um sistema de justiça capaz de, simultânea e equitativamente, proteger a ampla defesa e a dignidade humana de todos, vítimas e acusados – sobretudo aqueles já massacrados por estruturas sociais machistas, racistas e classistas.
Tratemos, então, da questão técnica. Por que André Aranha foi absolvido se, em tese, há provas de que o estupro aconteceu?
Inicialmente, o MP ofereceu denúncia pelo crime de estupro de vulnerável, quando alguém tem conjunção carnal ou pratica ato libidinoso com pessoa que não pode oferecer resistência. A vítima não tem capacidade de expressar sua vontade livre e consciente de se relacionar sexualmente, ou seja, para esta figura penal, há impossibilidade de consentimento válido, e não negativa.
A diferença deste delito para o crime de estupro comum é que, neste, a vítima é coagida por violência ou grave ameaça a suportar a prática do crime contra si. No caso de Mariana, que relata não se lembrar do ocorrido, o acusado teria se aproveitado do seu estado de vulnerabilidade para cometer o ato sexual.
Portanto, a análise do juiz focou-se especificamente nas provas sobre o estado de vulnerabilidade da vítima e, na fundamentação, na probabilidade de o réu ter ou não conhecimento disso. Em síntese, havia no processo comprovação robusta sobre o nível de consciência de Mariana? Seria possível que Aranha não soubesse que Mariana estava dopada?
É evidente que isso não afasta o horror do sofrimento da vítima, que, mesmo sem se lembrar do fato em si, teve seu corpo invadido e sua história marcada para sempre por um ato alheio a seu controle. Ela merece todo acolhimento e respeito. A análise dessa segunda parte do texto é puramente jurídica. Queiramos ou não, manter-se racional diante de fatos que nos causam repulsa é exigência do Estado Democrático de Direito – o que não significa que não haja lugar para a justa revolta, mas sim que também deve haver espaço para uma análise técnica, até para que esta possa ser criticada dentro da própria racionalidade.
As provas materiais – DNA, filmagens dos envolvidos descendo as escadas etc. –, embora provem o contato sexual, não foram consideradas suficientes para atestar o estado de vulnerabilidade, nem sua percepção pelo acusado. Com base em relatos testemunhais contrários e um exame toxicológico negativo, MP e Judiciário questionaram o nível de consciência da vítima, levando à absolvição.
Neste ponto, cabe tratar sobre a questão do suposto “estupro culposo” supostamente aceito pelo Judiciário. O MP considerou ter ocorrido “erro de tipo”, tese fundada na incompreensão, pelo autor do fato, de alguma questão essencial à caracterização do crime.
Para o Código Penal, essa figura exclui o dolo, a intenção ou manifestação direta de vontade de cometer o crime. Em razão disso, a lei equipara o erro cometido à conduta de quem produz o resultado por culpa, ou seja, por negligência, imprudência ou imperícia. Porém, só é possível punir alguém por uma atitude culposa (descuidada) caso haja previsão expressa dessa possibilidade na lei, como é o caso da lesão corporal, homicídio, entre outros.
Não é o caso do estupro, que não admite a modalidade culposa. Ou seja, caso a prova indique ter ocorrido erro de tipo (por exemplo, se o acusado não teria como saber que a vítima estava entorpecida), com consequente afastamento do dolo, a absolvição é tecnicamente possível, justamente por não existir discussão sobre descuido ou negligência do autor do fato.
O entendimento nada tem de inédito, possuindo previsão legal e ampla referência na doutrina.
No caso de Mariana, poderíamos não concordar com essa interpretação ou fazer outra avaliação das provas, caso as analisássemos. Porém, pela sentença, não houve alegação de “estupro culposo”, muito menos essa tese foi aceita pelo juiz. Essa confusão deve ser deixada de lado para que discutamos a real necessidade de combate ao machismo estrutural.
Certos crimes são tão abjetos que naturalmente perdemos de vista a racionalidade. Porém, quanto mais grave o crime, mais importante é manter o rigor teórico e prático na apuração do caso. Ele terá mais probabilidade de chegar à verdade dos fatos e à responsabilização do agressor do que a prática nublada por raivas e paixões, ainda que justas e necessárias para promover mudanças.
*Fernanda Peron Geraldini é sócia e Marcella Meira Rezende é associada do Jacob Lozano Advocacia Criminal.
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