O debate sobre o marco temporal da modulação de efeitos

Divergências em relação a datas vêm transformando discussões já definidas em contenciosos quase que eternos/Canva
Divergências em relação a datas vêm transformando discussões já definidas em contenciosos quase que eternos/Canva
Dependendo de como é usado, instituto garante direitos, oferece previsibilidade e resguarda a segurança jurídica.
Fecha de publicación: 13/05/2022

Foi-se o tempo em que, para interpretar adequadamente uma decisão do Supremo Tribunal Federal, deveríamos ter em mãos somente um exemplar da Constituição. Não é de hoje que o calendário ou a popularmente chamada “folhinha” passou a ser item obrigatório para aplicarmos com correção as decisões do STF e compreendermos seus efeitos. E, ainda assim, algumas divergências em relação a datas vêm transformando discussões já definidas em contenciosos quase que eternos.

Um fiel exemplo da situação a que me refiro envolve o entendimento em torno da adequada interpretação do parágrafo 7º, do artigo 150, que estabelece que: “A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido”.

A dúvida aqui sempre foi o alcance da expressão “caso não se realize o fato gerador presumido”: estaria o legislador constitucional a pretender alcançar somente as situações em que a saída posterior da mercadoria não ocorreu ou, como sempre defendemos, a norma igualmente contempla os casos em que a saída da mercadoria se deu por valor inferior ao presumido, oportunidade em que é direito do contribuinte a recuperação de parte do imposto pago indevidamente?


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Pois bem. Depois de muitos anos de discussão, o STF entendeu que a aplicação do parágrafo 7º deve alcançar ambas as situações acima descritas, reconhecendo como direito do contribuinte a apropriação de crédito, nas hipóteses em que, em função da sistemática da substituição tributária, o pagamento antecipado do imposto foi maior do que o efetivamente devido.

Resolve-se, finalmente, um problema que há muito se encontrava sem solução, pois, até então, alguns (a maioria) Estados negavam o crédito nessas circunstâncias (saída da mercadoria a valor inferior ao presumido) e outros o permitiam, mas sob o argumento de que seria mero benefício fiscal concedido e, como tal, passível de revogação à conveniência do Estado.

Em 19 de outubro de 2016, o STF pôs fim à polêmica, quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 593.849/MG, ao qual foi atribuída repercussão geral. Ocorre que o Relator Edson Fachin, por entender que o STF estaria alterando jurisprudência precedente (premissa que, por si só, enseja controvérsia), decidiu por modular os efeitos da decisão, determinando que ela só alcançaria os períodos posteriores ao julgado. A exceção – leia-se, a recuperação dos créditos passados – somente seria permitida aos contribuintes que ajuizaram ações anteriormente.

E foi justamente a partir da fixação do termo para a modulação de efeitos que começaram a surgir inúmeras controvérsias, as quais, inegavelmente, colocam em risco a definitividade da decisão. Explico: o próprio Ministro Edson Fachin, ao decidir os embargos de declaração opostos, textualmente esclareceu que o marco temporal a ser considerado é a data de publicação da ata de julgamento (27/10/2016). Apesar disso, há inúmeras decisões de tribunais estaduais (Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais são exemplos) – e, pasmem, de Ministros do próprio STF – que consideraram a data do julgamento efetivamente ocorrido (19/10/2016) com o “divisor de águas” para a recuperação do indébito.

Essa diferenciação é fatal para um número considerável de contribuintes, pois, se ingressaram com ações para a apropriação de créditos passados entre o julgamento do recurso (19/10/2016) e a publicação da ata de julgamento (27/10/2016), poderão receber entendimentos distintos em seus casos e até mesmo divergentes daquilo que foi claramente dito pelo Ministro Fachin na decisão em embargos de declaração. Alguns terão sucesso nessas ações, outros não necessariamente. Faz sentido perpetuarmos essa indefinição?


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Aparentemente, os equívocos irão se resolver., ainda que leve (mais) tempo. As mais recentes decisões monocráticas no STF já reconhecem a data da publicação da ata de julgamento como o marco adequado para a modulação de efeitos no caso. Assim como as decisões do STJ, que vão pela mesma linha. Entretanto, enquanto os tribunais estaduais não se curvarem a esse entendimento, veremos esse contencioso se arrastar por mais alguns anos, causando enorme imprevisibilidade aos contribuintes que, depois de décadas, imaginaram que a questão estaria decidida. Ledo engano, como visto.

A modulação de efeitos, quando corretamente aplicada, é um instituto precioso, que garante direitos, oferece previsibilidade e resguarda a segurança jurídica como valor supremo. Por outro lado, como no caso acima mencionado, pode provocar efeitos totalmente opostos: traz insegurança, imprevisibilidade e certa descrença em relação ao Poder Judiciário.

Considerando que a aplicação do instituto vem se tornando algo bastante frequente – ainda que, nem sempre, vemos o cumprimento das condições para tanto – é urgente, imperioso e necessário que o Supremo Tribunal Federal defina os marcos temporais e os deixe muito claros, caso a caso, sob pena das discussões tributárias, em vez de longevas, se tornarem praticamente intermináveis. Não é bom para os contribuintes, não é bom para o fisco, não é bom para o país.

*Glaucia Lauletta é sócia da área de tributário do Mattos Filho.

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