O que podemos aprender com Kamala Harris sobre a Justiça Criminal no Brasil

Durante a campanha presidencial a vice-presidente denunciou a existência de “dois sistemas de justiça”: um para brancos e outro para negros/ Adam Schultz/Biden for President
Durante a campanha presidencial a vice-presidente denunciou a existência de “dois sistemas de justiça”: um para brancos e outro para negros/ Adam Schultz/Biden for President
Por aqui a presença desproporcional de homens e mulheres negros e periféricos nos bancos dos réus e nos presídios denuncia o mesmo racismo estrutural agora alertado também pela vice-presidente americana
Fecha de publicación: 20/01/2021

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Uma das maiores novidades na política internacional é a presença de Kamala Harris como vice-presidente de Joe Biden, eleito para ocupar a Casa Branca pelos próximos quatro anos. A escolha de Harris veio não apenas de seu gênero e ascendência étnica diversa enquanto mulher não branca – fatores importantes por sua representatividade, com potencial de arejar o jogo político após o traumático período Trump.

Seu destaque foi construído a partir da atuação, desde 2004, como district attorney em São Francisco (Califórnia, EUA), em instituição análoga ao nosso Ministério Público estadual. Em 2010 e 2014, foi eleita procuradora-geral da Califórnia, função na qual liderou o órgão responsável por acusar pessoas criminalmente. Em suma, Kamala Harris construiu sua carreira como promotora, antes de ser eleita senadora e, enfim, vice-presidente.

Embora possa ser considerada progressista em alguns aspectos, sua gestão foi marcada pelo pragmatismo e pela insistência no discurso da “Lei e Ordem”. Durante o período, seu gabinete obteve um aumento considerável nas condenações criminais. Em certos momentos, opôs-se ativamente a iniciativas de redução do encarceramento, além de ser contra a descriminalização da maconha e da prostituição. Destacou-se especialmente pelo amplo apoio às forças policiais no combate à criminalidade.

Também é especialmente alvo de críticas sua posição em relação a casos de condenações equivocadas, combatidas por grupos como o Innocence Project (organização que defende pessoas presas injustamente). O gabinete da procuradora-geral Harris se recusava a reconhecer as falhas do Estado na condução daqueles processos, sustentando as condenações mesmo em casos em que a inocência estava comprovada por provas materiais ou testemunhais.

Sua rigidez no combate ao crime foi uma das principais críticas recebidas por ela durante os anos no Senado e a campanha para presidência e encontra ressonância até hoje. Diversos grupos estadunidenses que denunciam o encarceramento em massa de jovens negros no país não a perdoam por suas posições do passado.

Seja por evolução em seu próprio pensamento ou pressão das circunstâncias, fato é que o discurso de Harris mudou ao longo dos últimos anos, e sua análise ilustra essa mudança. Em uma publicação de 2009, por exemplo, ela defendeu a necessidade de aumentar o policiamento nas ruas como medida de segurança pública. Já em agosto de 2020, questionou esse mesmo pensamento, apontando-o como um senso comum incorreto.

Desde que ocupou o Senado, Harris passou a defender ativamente a necessidade de reforma do sistema de justiça criminal, reproduzindo muitas das críticas às quais antes se opunha. Durante a campanha presidencial, em entrevista concedida à CNN em setembro de 2020, a vice-presidente denunciou a existência de “dois sistemas de justiça”: um para brancos e outro para negros.

No esforço de conciliar seu posicionamento público atual com algumas das posturas do passado, Harris acaba por fornecer elementos conciliatórios que podem nos ajudar a compreender o caminho a seguir na justiça criminal brasileira.

Assim afirmou Harris à CNN, em tradução livre: “Eu não acredito que a maioria das pessoas razoáveis, que estão prestando atenção aos fatos, negaria que existem disparidades raciais e um sistema engajado em racismo, em relação a como as leis vêm sendo aplicadas”.

Elucidando sua compreensão, a vice-presidente ressaltou que não se coloca contra a polícia, mas sim a favor da exigência por accountability, isto é, pela responsabilização de qualquer pessoa envolvida em crimes graves.

Na mesma entrevista, concedida em agosto de 2020, Harris tratou sobre a importância de responsabilizar criminalmente policiais acusados de homicídios contra jovens negros, destacando casos que ganharam repercussão, como o assassinato do Jacob Blake, ocorrido naquele mês em Kenosha (Wisconsin, EUA). Em 5 de janeiro desse ano, procuradores locais decidiram não apresentar acusação criminal contra o policial que atirou sete vezes nas costas do jovem negro, causando nova revolta popular.

A evolução nos posicionamentos de Harris sobre a questão da justiça criminal e sua demanda por responsabilização nos casos de violência policial foram essenciais para que alcançasse o cargo que agora ocupa, e podem servir para questionar as posturas de outros operadores do sistema de justiça, tanto nos EUA como em todo o mundo.

No Brasil, a presença desproporcional de homens e mulheres negros e periféricos nos bancos dos réus e nos presídios denuncia o mesmo racismo estrutural agora alertado também por Harris. Denunciada há décadas por especialistas, ONGs e coletivos que atuam pela justiça racial, a seletividade na persecução penal pelo Estado vem fazendo cada vez mais vítimas.

Aqui, como nos EUA, instrumentos jurídicos que poderiam proteger a população mais vulnerável são utilizados como ferramentas para o massacre. Prisões forjadas recebem aparência de legalidade nos autos policiais. Torturas e extorsões por policiais são ignoradas. Relatos de vítimas e familiares são abafados por ameaças ou simplesmente desacreditados. Comunidades inteiras são expostas e mantidas na miséria, sem acesso aos seus direitos básicos, e aqueles que lutam recebem pouco ou nenhum apoio estatal, quando não são ativamente perseguidos.

Essa realidade é apagada nos processos criminais, nos quais a construção da verdade parte da versão da polícia que, encampada pelo Ministério Público, tenderá a ser acolhida pelo Poder Judiciário. Em geral, esse destino apenas não ocorrerá caso o réu tenha a grande sorte de encontrar alguma prova concreta e fidedigna de sua inocência, como uma filmagem ou perícia.

As dificuldades enfrentadas pelo sistema de persecução penal, ao invés de promoverem seu aprimoramento, resultaram no oposto: com padrões e práticas falhos mas amplamente aceitos, baseados na presunção de culpa de réus vistos por muitos como bandidos em potencial.

Somando-se a isso, a letalidade policial, que já era crescente no país nos últimos anos, atingiu níveis insuportáveis em 2020, como vêm alertando diversas organizações e movimentos sociais. Para especialistas, o aumento tem relação direta o incremento da lógica repressiva homicida que ganhou mais repercussão desde 2018, com a eleição de representantes como Bolsonaro, Dória e Witzel.

Porém, o fator preponderante nos altíssimos índices de letalidade estatal é a negação desse problema estrutural, a despeito de provas reiteradas de sua existência e gravíssimas consequências. A cada nova prisão forjada na periferia, a cada jovem negro torturado ou assassinado por policiais, a cada autoridade que, sabendo da realidade, recolhe-se no conforto de seus privilégios, o sistema de justiça se enfraquece. É isso que precisa mudar – rápido.

Nesse sentido, a lição dada pela vice-presidente dos Estados Unidos, ex-procuradora-geral de Justiça da Califórnia, às autoridades que compõem e lideram os órgãos de persecução penal é esta: “Não nos faz qualquer bem negar [o racismo no sistema de justiça]. Vamos apenas lidar com isso. Vamos ser honestos. Essa pode ser uma conversa difícil para alguns, mas não é uma conversa difícil para líderes; não para líderes de verdade.”

A todos que atuam e tomam decisões no sistema de justiça criminal, é imperioso que levem a sério essa demanda, cumpram suas funções institucionais e combatam com vigor, prioridade e honestidade o racismo estrutural que vigora no Poder Judiciário, no Ministério Público, nas Polícias, nas Secretarias de Segurança, na Administração Penitenciária, nas Guardas Municipais – e, necessariamente, nas pessoas que integram essas instituições.

*Fernanda Peron é advogada criminalista e em direitos humanos do Jacob Lozano Advogados.

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