O uso da cloroquina e o crime de responsabilidade

Uso da cloroquina no combate à Covid-19 é questionado por especialista/Pixabay
Uso da cloroquina no combate à Covid-19 é questionado por especialista/Pixabay
Especialista defende que estímulo ao uso do remédio atenta contra todos os direitos dos cidadãos e dos usuários do sistema de saúde.
Fecha de publicación: 25/05/2020
Etiquetas: Brasil

Inúmeras foram as discussões acerca das manifestações ocorridas nas últimas semanas, em frente ao Palácio do Planalto, cuja participação mais notória, e contundente, foi a do presidente República.

Apesar das pautas dispersas, alguns assuntos eram voz corrente entre os presentes:

  • Intervenção nos Poderes Judiciário e Legislativo, a pretexto destes não mais atrapalharem o “andamento” do Poder Executivo;
  • Em um cenário mais radical, uma intervenção militar, a pretexto de fazer valer os preceitos da Constituição Federal (por mais dicotômica que seja a inserção dos termos intervenção militar e Constituição Federal em uma mesma frase);
  • A defesa da utilização da “cloroquina” como meio capaz de curar os afetados pela Covid-19, e o consequente ataque aos cientistas contrários à utilização desta (mesmo que os argumentos dos cientistas seja a falta de pesquisas suficientes que justifiquem a eficácia da substância e a ausência de efeitos colaterais).

À partir disso, queremos analisar as implicações penais existentes, especialmente as que decorrem da defesa intransigente do uso da “cloroquina”, e a eventual tipicidade das condutas perpetradas, quais sejam, os atos atentatórios a separação e a harmonia entre dos poderes, os atentatórios ao Estado democrático de direito e as suas consequências à estruturação da saúde pública e do sistema único de saúde.

A Constituição Federal no seu artigo 2º a separação entre os poderes, à partir de um sistema de freios e contrapesos, onde cada qual possa exercer as suas funções típicas, sem qualquer subordinação ou dependência em relação aos demais, sem lançar mão, contudo, da possibilidade do exercício de mecanismos de controle mútuo, a fim de evitar excessos e tiranias pelos exercentes de cada um deles.

O responsável intelectual pela construção do princípio, o iluminista Montesquieu, dispõe que: “tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas, e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos”

À partir disso, está consagrada a independência de cada um dos poderes, cuja principal consequência é o exercício das suas funções institucionais, mesmo que seus atos e decisões sejam contrários aos dos demais poderes.

Em resumo. o Poder Legislativo não é uma mera extensão do Executivo, o mesmo valendo em relação ao Judiciário.

E mais, em relação ao Poder Legislativo, todos os seus representantes são eleitos pelo voto direto da população, em um sistema proporcional, onde parcela considerável das ideologias será contemplada, de forma a que todos os pensamentos tenham espaço em um ambiente diverso.

Dada a importância deste preceito, a própria Constituição Federal resolveu tipificar os atos atentatórios perpetrados pelo Presidente da República, conforme disposto no seu artigo 85, inciso II (uma norma de eficácia contida, cuja complementação ocorre através da Lei 1.079/50).

Importante ressaltar que o preceito constitucional citado é de aplicação exclusiva ao presidente da República, por tratar-se de dispositivo de accountability democrática, onde as infrações perpetradas por este, exclusivamente no exercício da sua função, reverberarão no impedimento (em um sentido etimológico mais próximo ao da palavra interrupção) do mandato, sem atingir eventuais coautores ou partícipes.

Sobre referida tipificação, alguns parênteses são necessários, especialmente quanto a natureza jurídica de infração político-administrativa desta, ou seja, apesar da denominação crime este conduzirá a cassação do mandato, o famoso “impeachment”.

Apesar da maior relevância da infração acima, outras circunstâncias também conduziram ao cometimento de um provável crime de responsabilidade, sem que os meios de comunicação tenham captado a sua gravidade: a defesa intransigente do uso da “cloroquina”, independentemente das determinações dos pesquisadores e cientistas da área, e, mais grave, a determinação por parte do Presidente da República para a produção do produto pelo exército brasileiro em escala muitíssimo mais elevada que a tradicional.

Em relação a estes fatos, primeiro há a necessidade da sua correlação com os já citados artigo 85, da Constituição Federal, e a Lei 1.079/50 e, conforme já indicado, a referida disposição constitucional dispõe de sete incisos, cujos conteúdos são dos mais diversos.

No que diz respeito a defesa intransigente do presidente ao uso da substância, torna-se crível a correlação com os incisos III e V, da carta magna, e, consequentemente, com os artigos 7°, item 6 e 8, da Lei 1.079/50.

Há no contexto da Constituição Federal a chamada tipicidade constitucional, onde os elementos são mais abertos e aptos à interpretação, que na tipicidade penal. Diante disso, torna-se possível a correlação da conduta indicada – estímulo ao uso de substância médica sem as devidas confirmações médicas e de efeitos colaterais – aos dois incisos citados, uma vez que há atentado aos direitos individuais e sociais (saúde pública) e a probidade administrativa (prejuízo ao erário e inobservância aos princípios da honestidade, legalidade e lealdade às instituições.

Ou seja, em primeiro lugar, a indicação e a defesa de uma substância cuja a eficácia e os efeitos colaterais são desconhecidos e a sua colocação como remédio infalível atenta contra todos os direitos dos cidadãos e dos usuários do sistema de saúde, fazendo com que medidas certeiras, e cientificamente embasadas, sejam desprezadas pela população e, consequentemente, põe a prova a credibilidade do sistema.

Além disso, há ofensa aos princípios da honestidade – seja ela com o povo, seja com os cientistas e estudiosos do tema-, ofensa ao princípio da lealdade às instituições – uma vez que o Sistema Único de Saúde, conforme o artigo 200, inciso I, da Constituição Federal, tem a prerrogativa institucional de fiscalizar procedimentos de interesse da saúde, especialmente a produção de medicamentos e, por último, ofensa à própria legalidade, uma vez que confronta a estruturação do sistema único de saúde, estabelecida entre os artigos 196 e 200, da carta magna.

Há também a discussão acerca do aumento da produção de cloroquina pelo laboratório do Exército, em escalas muito superiores aos índices anteriores.

Isso porque, além das circunstâncias citadas, há a oneração do orçamento de forma abrupta e descontrolada, em virtude da produção de um medicamento, cuja eficácia não está cientificamente comprovada, ou seja, destina-se parcela considerável do orçamento de um ente público para uma finalidade que, provavelmente, não reverterá em qualquer benefício à população, e ainda condicionará  o não cumprimento de outros direitos.

Em face disso, o artigo 85, inciso VI, cuja previsão tem como objetivo a tutela dos aspectos inerentes a manutenção do orçamento, e dos seus regramentos, pode ser correlacionado aos fatos, especialmente à partir das disposições do artigo 10, e itens, da Lei 1.079/50.

Alguns recentes registros feitos pelo próprio governo federal indicam preocupação com a transposição destes itens, conforme podemos extrair do teor da própria Medida Provisória 966/2020, cuja finalidade é isentar os agentes públicos que cometam infrações legais durante o período da pandemia, a pretexto de combatê-la.

A esse respeito, tivemos a oportunidade da falar: “Mesmo agora, os atos do poder público precisam ser minimamente guiados por critérios técnicos e objetivos. Determinar a produção exacerbada de um produto cuja eficácia não é comprovada pode caracterizar crime de responsabilidade”.

Diante de todo o exposto, restam evidentes as infrações perpetradas pelo presidente da República no exercício de atos, supostamente, destinados ao combate da pandemia.

E quando feita a análise destas infrações, resta evidente a sua perfeita consecução com as hipóteses de crime de responsabilidade, do artigo 85, da Constituição Federal.

*Acácio Miranda é especialista em direito constitucional e mestre em direito penal internacional pela Universidade de Granada (Espanha).

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