A Lei Maria da Penha completou mais um ano de vigência, oportunidade em que são retomadas as reflexões sobre os avanços e desafios que ainda permanecem para a sua efetividade. A lei é fruto de uma demanda antiga dos movimentos de mulheres e feministas no Brasil e busca responder ao problema da violência doméstica e familiar, a partir da compreensão de que se trata de uma questão estrutural, que afeta mulheres e meninas no país, ou seja, decorre da desigualdade de gênero que estrutura a sociedade brasileira.
Reconhecida como uma das melhores legislações do mundo, sua principal inovação é propor o enfrentamento das violências contra as mulheres por meio de uma atuação integrada, com a criação de políticas públicas voltadas à prevenção desses casos, ao acolhimento e atendimento humanizado das mulheres e – não somente e nem como principal objetivo – a responsabilização dos agressores.
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De acordo com a lei, o acesso à justiça qualificado e a existência de um Sistema de Justiça atento às demandas das mulheres e capaz de atuar de forma multidisciplinar e em rede deixa de ser algo desejável, e passa a ser obrigatório e exigível.
No entanto, estamos longe de ter a aplicação da Lei Maria Penha plenamente realizada. Permanecemos como o 5º país do mundo que mais mata mulheres no contexto doméstico e familiar e a pandemia da Covid-19 evidenciou o déficit de políticas públicas, a ampliação de barreiras no acesso às redes de proteção pelas mulheres e o aumento dos índices de feminicídio.
Do ponto de vista do direito, a proteção efetiva das mulheres e a contribuição das instituições do Sistema de Justiça para cessar ou romper as violências não são vistas na prática cotidiana da advocacia: é comum que os seus relatos sejam desacreditados, há inúmeras exigências desnecessárias para concessão de medidas protetivas (como a lavratura de boletim de ocorrência ou a existência de inquérito policial ou ação penal em curso), assim como é quase inexistente a competência híbrida dos Juizados de Violência Doméstica – de acordo com a lei, em um único juizado, as mulheres deveriam poder endereçar suas demandas de família, cíveis, medidas protetivas e criminais decorrentes da situação de violência (art. 14).
São evidentes as distâncias existentes entre os dispositivos legais e as rotinas de aplicação da lei, que permanecem bastante orientadas por estereótipos de gênero, reduzem a eficácia da Lei Maria da Penha e chancelam diferentes violações às mulheres.
E assim, mesmo após 15 anos, algumas perguntas e inquietações permanecem: como avançar na correta aplicação da Lei Maria da Penha? Como garantir com que o Sistema de Justiça se proponha a ser parte da solução e deixe de validar as violências que cotidianamente marcam a vida das mulheres?
O Sistema de Justiça está longe de ser a principal e única solução para o enfrentamento de um problema complexo e estrutural. Mas, diante do fato de que as instituições jurídicas ainda são reprodutoras de diferentes formas de discriminação e resistem a seguir alguns dos parâmetros previstos em lei – que já tem 15 anos de vigência –, a existência de uma advocacia atenta às questões de gênero, que se entenda como instrumento e não protagonista das soluções, é essencial.
Mais que isso, uma advocacia que se proponha, a partir da escuta das mulheres, a construir teses jurídicas que efetivamente auxiliem o rompimento de situações de violência e atendam aos seus anseios e necessidades pode contribuir para a construção de espaços de diálogo, tensão e reflexão capazes de promover a devida atuação estatal.
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Neste sentido, a atuação das defensorias públicas, de advogadas e da advocacia pro bono pode oferecer uma contribuição eficaz para a efetividade da lei, não como única ou principal solução, mas como parte de um conjunto de estratégias necessárias para o real enfrentamento da violência contra as mulheres no Brasil.
*Flavia Regina Oliveira é sócia; Bianca dos Santos Waks e Letícia Ueda Vella são advogadas do escritório Mattos Filho.
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