Os dilemas jurídicos causados pelas inovações durante a pandemia

A tecnologia proporciona benefícios claros, mas é preciso estar atento à segurança digital/Canva
A tecnologia proporciona benefícios claros, mas é preciso estar atento à segurança digital/Canva
Tecnologia traz mudança de cultura e comportamento, oportunidades e novos riscos.
Fecha de publicación: 27/10/2021

No último ano, o Brasil subiu cinco lugares no Índice Global da Inovação (IGI), o que o coloca no 57º lugar entre 132 países. Em primeiro lugar está a Suiça e, em terceiro, os Estados Unidos. Apesar da melhora, o Brasil ainda deixa a desejar considerando a sua extensão territorial e o fato de ser a 12ª economia do planeta. Nesse contexto, a inovação se torna uma ferramenta estratégica para superação da crise agravada pela pandemia de Covid-19. 

A pandemia trouxe diversos e significativos impactos para a sociedade brasileira, muitos deles resultantes de temas transdisciplinares como a tecnologia, a ciência, a economia e a cultura. Exemplos dos impactos são o expressivo aumento da demanda pelo ensino remoto, a prática da telemedicina, o avanço dos criptoativos, bem como o desenvolvimento do Pix, do NFT e do open banking.

Tudo isso traz questões jurídicas complexas e preocupações que envolvem a proteção de dados pessoais, a segurança digital e a proteção de direitos da propriedade intelectual, entre outros. Tendo isso em consideração, quais foram os principais reflexos de cada uma dessas inovações no campo jurídico?

No setor financeiro, por exemplo, o open banking – a possibilidade de clientes permitirem o compartilhamento de seus dados entre diferentes instituições financeiras – foi uma grande inovação durante a pandemia. Essa iniciativa iniciou no Brasil com a Resolução Conjunta nº 1, de 4 de maio de 2020, alterada pela resolução Conjunta nº 3, de 24/06/21, do CMN e BCB, e busca simplificar os processos entre bancos de dados de instituições financeiras no país, permitindo ao consumidor comparar mais facilmente as ofertas entre elas para escolher a opção de maior benefício. Desse modo, a concorrência entre os bancos é estimulada e o custo dos serviços para o consumidor é barateado. É um tema extremamente relacionado à segurança da informação e à proteção de dados pessoais.

Também no setor financeiro, o arranjo de pagamento Pix criado pela Resolução BCB nº1, de 12 de agosto de 2020 revolucionou a maneira de se efetuar pagamentos e transferências bancárias. Essa nova possibilidade trouxe mais agilidade, modernidade e eficiência para os processos de pagamento, entretanto, é fundamental que haja segurança jurídica.


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Lamentavelmente, o Brasil é um grande laboratório para fraudes e, criminosos têm praticado muitos golpes com o Pix, desde estelionatos até mesmo o roubo e furto de smartphones desbloqueados para permitir que façam transferências. Em razão disso, o Banco Central tem incorporado mudanças a fim de tentar aumentar a segurança dos usuários como a interrupção de transações das 20h às 06h e a estipulação de um valor limite para transferências. Também como consequência do Pix, percebe-se um movimento cada vez maior no sentido de diminuir a utilização de dinheiro físico.

E, falando em diminuição do dinheiro físico, o mercado de criptomoedas também tem crescido cada vez mais. Similarmente, é um mercado que também atrai criminosos que utilizam esses ativos para a realização de crimes financeiros como lavagem de dinheiro, sonegação fiscal e fraudes contra investidores. Por essa razão, o debate acerca da criação de uma regulamentação tem se tornado cada vez mais intenso, sob o argumento de que essa regulação traria mais segurança jurídica para os investidores diminuindo, assim, o risco desses ilícitos. Por outro lado, sem os criptoativos, o mercado permanece menos inovador e mais suscetível a autoridades centrais.

Já na esfera cultural, o assunto de destaque do momento são os NFTs (Non-Fungible Tokens), que utilizam a mesma tecnologia de blockchain para transformar qualquer mídia digital em algo único. Em outras palavras, o NFT é como um certificado que garante a autenticidade e a aquisição da propriedade de um ativo digital, a partir da tecnologia blockchain. Na maioria dos casos, NFTs são associados a itens colecionáveis, jogos eletrônicos ou obras de arte digitais. Essa nova tecnologia tem movimentado milhões de dólares e gerado muitos debates.

Um ponto de atenção com relação aos NFTs devem ser as questões relativas a direitos de propriedade intelectual. O maior benefício do NFT é tornar impossível a falsificação de um artigo digital. Contudo, não se pode esquecer que, a lei de direito de autor brasileira exige que a cessão de direitos autorais seja efetuada por meio de instrumento escrito e específico. Assim, é recomendável ao autor de obra derivada digital, que será disponibilizada em NFT, atenção às autorizações para uso de imagens, músicas ou fotos concedidas na obra anterior, expressamente, por meio de documento escrito.


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Da mesma forma, para utilizar uma marca registrada de terceiro na criação de uma obra que será certificada em NFT, é preciso obter uma licença do titular da marca para não incorrer em violação de marca registrada. Por fim, a Lei de Direito Autorais institui o direito moral do autor como um direito inalienável, irrenunciável e imprescritível. Logo, a correta atribuição dos créditos ao autor da obra se faz necessária mesmo em caso de NFT.

Já na esfera da saúde, houve de fato um grande avanço, que não se via desde 2002 no país, causado principalmente pela pandemia. Em 16 de abril de 2020, visando proporcionar maior segurança jurídica e atendimento da população, o Congresso Nacional publicou a Lei 13.989/2020 autorizando a telemedicina em caráter emergencial.

Esse modelo de atendimento baseado na tecnologia passou a ser essencial para aumentar o acesso da população ao atendimento médico e alcançar regiões que não possuem cobertura de redes assistenciais. No entanto, é preciso muito cuidado com o sigilo dos dados pessoais dos pacientes, que são considerados dados pessoais sensíveis pela LGPD, pois esses dados também podem ser alvo de criminosos digitais e, podem expor muito a privacidade dos titulares.

Juntamente, vem acompanhando a transformação digital da saúde a questão do receituário, para aplicação de prescrição eletrônica de medicamentos, uma iniciativa conjunta do CFM, CFF e ITI. O que permite não apenas a facilitação de todo o processo junto aos pacientes como também maior controle de combate à fraude.

A tecnologia proporciona benefícios claros, mas é preciso estar atento à segurança digital. Os dados pessoais devem ser coletados, processados e armazenados de forma segura. Para evitar um incidente de segurança é importante a aplicação do privacy by design e privacy by default, isto é, respectivamente, considerar a privacidade e a proteção de dados pessoais desde a concepção do atendimento e limitar o tratamento dos dados ao mínimo necessário para suas finalidades. Além, é claro, da adoção de medidas eficientes de segurança da informação como a realização de backups, o uso de redes de wi-fi estáveis e seguras, o uso de criptografia e a troca de senhas com regularidade para acesso aos sistemas de hospitais e clínicas de saúde.

Similarmente, na área educacional, a pandemia transformou a sala de aula. Em 18 de março de 2020 o Ministério da Educação (MEC) publicou a Portaria 343 autorizando a substituição de disciplinas presenciais por aulas que utilizem meios e tecnologias de informação e comunicação em cursos que estão em andamento.

Desse modo, o uso da tecnologia e da internet foram instrumentais para a continuação dos cursos e das atividades escolares. Contudo, também aumentaram os incidentes envolvendo riscos e maus usos das tecnologias digitais na comunidade escolar, tais como casos de cyberbullying, acesso à conteúdos impróprios para a idade, exposição demasiada de intimidade de menores de idade, assédio, pornografia infantil, disseminação de fake news e golpes digitais. Para evitar essas situações, é muito importante o acompanhamento familiar das atividades digitais de crianças e adolescentes.

Os dados dos alunos agora estão ainda mais expostos e suscetíveis a vazamentos. Instituições de ensino costumam ter arquivados dados pessoais dos alunos não apenas de cadastro, mas também dados de saúde e até mesmo dados de seus familiares. Por isso, ressalta-se a necessidade de um sistema de segurança da informação confiável para evitar incidentes. Além disso, é importante realizar uma capacitação com todos os funcionários da instituição sobre a necessidade de proteção dos dados pessoais relacionados aos alunos, responsáveis legais e demais integrantes da comunidade escolar. Ademais, é primordial que as instituições estejam preparadas para gerir eventuais crises e saibam como devem agir em casos de incidentes de segurança da informação.


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Muitas vezes para inovar faz-se necessário que haja mudança das leis, é quando o Direito contribui para trazer segurança jurídica nas relações e permitir que uma inovação se consolide. Principalmente, quando há impactos sociais relevantes que exigem padronização de práticas, delimitação clara de responsabilidades das partes envolvidas, obrigações de disseminação de campanhas educativas.

Sendo assim, a inovação convive tanto com a lei já existente, a desafiando, quando é disruptiva, como também provocando a criação da lei que ainda não foi escrita, que possa permitir acomodar as novas expectativas da Sociedade. E também provoca que a própria lei fique rapidamente obsoleta.

A inovação traz mudança de cultura e comportamento, como muitas oportunidades, mas também traz novos riscos e é por isso que precisamos estar atentos para uso ético, seguro, legal e sustentável da tecnologia.

*Patricia Peck é sócia fundadora do Peck Advogados e conselheira titular do Conselho Nacional de Proteção de Dados. Marcelo Crespo é sócio e Helen Battaglini é advogada do escritório.

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