É demais sabido que os entes públicos enfrentam sérios problemas na arrecadação de tributos de sua competência, além de encontrar dificuldades em manejar e executar o orçamento aprovado pelo Poder Legislativo.
Diante dessas dificuldades, excessos são cometidos, quase sempre fruto da interpretação equivocada da lei por esses entes públicos com o objetivo de aumentar a arrecadação dos tributos de suas competências.
A mais recente interpretação equivocada da lei tributária foi julgada no final do ano de 2021 pelo Superior Tribunal de Justiça e teve como alvo a cobrança de IPTU pelos municípios.
O STJ teve que decidir sobre quem é o contribuinte do tributo, em caso de imóvel alienado fiduciariamente, se o banco (credor fiduciário) ou o adquirente (devedor fiduciante).
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Segundo a Lei n.º 9.514/1997, alienação fiduciária “é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel”.
Então, em palavras simples, o indivíduo (pessoa física ou jurídica) contrata um empréstimo com a instituição financeira (credora fiduciária) para aquisição de um bem imóvel. Empréstimo aprovado, o devedor fiduciante transfere a propriedade resolúvel ao credor fiduciário para que o próprio imóvel sirva de garantia do empréstimo.
Além do mais, constituída a alienação fiduciária há o desdobramento da posse, ficando o devedor com a posse direta e o credor com a posse indireta da coisa.
Em caso de inadimplência do empréstimo, a propriedade, que antes era apenas resolúvel, consolida-se nas mãos do credor fiduciário que terá trinta dias para promover o leilão público para alienação do imóvel e pagamento do saldo devedor da operação de alienação fiduciária, além de poder se imitir na posse do bem imóvel.
O grande problema que gerou toda a discussão em torno da responsabilidade pelo pagamento do IPTU diz respeito ao fato do credor fiduciário deter a propriedade resolúvel do bem imóvel como garantia do pagamento da dívida.
Os municípios passaram a utilizar da transferência da propriedade resolúvel (direito real de garantia) ao credor fiduciário como fundamento para eleger este como responsável pelo pagamento do IPTU. Isto pelo fato da redação do artigo 34 do Código Tributário Nacional estabelecer que é contribuinte do imposto (entre outros) o proprietário do imóvel, não distinguindo sobre propriedade plena, resolúvel ou fiduciária.
Diante dessa suposta falta de distinção da lei sobre propriedade plena e resolúvel, e aproveitando da brecha legal, os municípios, na tentativa de dar maior efetividade às execuções fiscais, começaram a propor tais medidas judiciais em face do credor fiduciário, quase sempre grandes instituições financeiras, e não só isso, a adaptar as leis municipais para incluí-los como sujeitos passivos da exação.
Há uma lógica um tanto quanto oportunista nesta escolha dos municípios e diz respeito precipuamente ao direito processual.
Em primeiro lugar, é muito mais barato promover o bloqueio de ativos financeiros do credor fiduciário do que efetuar a penhora, avaliação e posterior leilão do imóvel. Em segundo lugar, o bloqueio, sendo em face da fiduciária, tem maior probabilidade de sucesso, diante da notória liquidez dessas empresas, na maioria das vezes instituições financeiras e grandes construtoras. Em terceiro lugar, as hipóteses de impenhorabilidade de bens constantes do artigo 833, CPC, no que tange à penhora em dinheiro, torna-se muito mais difícil de ser arguida por uma empresa de grande porte que seja credora fiduciária. Em quarto lugar, o bloqueio de ativos financeiros é consideravelmente mais célere do que a penhora, avaliação e leilão de um bem imóvel.
Vale à pena citar que, mesmo a dívida tributária sendo propter rem, a penhora sobre dinheiro tem preferência em relação à penhora sobre bem imóvel, conforme ordem prevista no artigo 835 do CPC.
Porém, em dois recentes julgados, ambos figurando a prefeitura de São Paulo, o STJ decidiu excluir do polo passivo da exação o credor fiduciário e estabeleceu limites para a interpretação da Súmula 399/STJ.
Segundo a Corte, o artigo 34, CTN, ao contrário do que alegado pela municipalidade, não autoriza a inclusão do credor fiduciário como contribuinte do IPTU, diante das peculiaridades da propriedade e da posse por ele detida.
O artigo 1.228 do Código Civil enumera os elementos constitutivos do direito de propriedade que são usar, gozar, dispor e o direito de sequela. Esses elementos constitutivos são autônomos, não se confundindo entre si. Do conhecimento da existência desses elementos, chegamos à conclusão que a propriedade plena só é possível se todos estiverem reunidos nas mãos de um único titular.
Essa autonomia dos elementos constitutivos da propriedade é o que viabiliza a alienação fiduciária, pois o credor pode, com a propriedade resolúvel, manter o bem imóvel como garantia da operação financeira.
Se ao credor fiduciário resta a propriedade resolúvel e a posse indireta, conforme preconiza o artigo 22 da Lei 9.514/97, ao adquirente cabe o domínio útil e a posse direta do imóvel.
A propriedade resolúvel não é plena, de acordo com os artigos 1.231 e 1367 do Código Civil, pois alijada dos poderes de domínio (uso, gozo e disposição) e, diante disso, segundo entendimentos anteriores da Corte Superior, não se consideram como contribuintes do IPTU os proprietários que não detém o domínio útil do imóvel.
Quanto ao fato do credor fiduciário não ser o detentor do domínio útil sobre o bem há previsão legal (arts. 1361, § 2º e 1.363 do CC/2022) que atribui ao devedor fiduciante tal espécie de domínio.
A única hipótese do credor fiduciário figurar como contribuinte do IPTU ocorre se, na hipótese do leilão público por inadimplemento, a propriedade ter sido consolidada em suas mãos e ter sido imitido na posse do bem conforme preceitua o § 8º do artigo 27 da Lei 9.514/1997.
No entanto, a redação da súmula 399/STJ (“cabe à legislação municipal estabelecer o sujeito passivo do IPTU), ao que parece, foi o estímulo que os municípios tiveram para incorporar como sujeito passivo do tributo o credor fiduciário.
Houve uma interpretação ampliativa do artigo 34, CTN, baseada na súmula citada, no sentido de não se fazer distinção sobre qual o tipo de propriedade e posse que qualifica a pessoa a ser contribuinte do imposto.
Os municípios tiveram então a suposta fundamentação jurídica para poder escolher quem era o sujeito passivo da exação, sem esbarrar em possíveis discussões sobre qualificação da propriedade ou da posse.
Sobrou, então, para o credor fiduciário, que apenas detém a propriedade resolúvel e a posse indireta do imóvel, figurar no polo passivo das execuções fiscais para cobrança do IPTU.
No entanto, segundo a 1ª Turma Julgadora do STJ, no que tange à utilização da súmula 399/STJ, não há como incluir como sujeito passivo da obrigação tributária do IPTU o proprietário despido dos poderes de propriedade, o que não detém o domínio útil sobre o imóvel ou o possuidor sem ânimo de domínio.
O credor fiduciário encontra-se despido dos poderes de propriedade, pois apenas detém um mero direito real de garantia (propriedade resolúvel), que existe apenas para garantir o adimplemento do contrato de financiamento.
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Da mesma forma, a posse também não é qualificada para os termos do artigo 34. CTN. Não há, no exercício desse direito, vontade de ter o bem como se seu fosse. A posse indireta, exercida pelo credor, também é voltada para a garantia do pagamento do débito.
E conforme já explicitado, o credor fiduciário não detém o domínio útil do bem por expressa disposição legal (art.1361, § 2º da Lei n.º 9.514/97 e art. 1.363 do CC/2002).
Dessa forma, o legislador municipal não pode, sob o manto da súmula 399/STJ, eleger como contribuinte do IPTU o credor fiduciário pois, despido dos poderes de propriedade, não detém o domínio útil sobre o imóvel ou e apenas detém a posse indireta do bem (sem o animus domini).
Pode-se a princípio pensar que é o devedor fiduciante que perde com essas decisões, porém, sua sujeição passiva é decorrente de lei e o STJ já vem decidindo assim desde 2009 com a edição da súmula 399.
Quem realmente perde são os municípios, pois não poderão incluir no polo passivo das execuções fiscais, para cobrar débito de IPTU, os credores fiduciários que, geralmente, possuem muito mais liquidez do que os devedores fiduciantes. Isso tornará muito mais dispendiosa a recuperação desses ativos tributários, via execução fiscal.
*Gustavo Campos Mauricio é advogado da Advocacia Ruy de Mello Miller.
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