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O futuro do setor jurídico é um tema que vem ganhando cada vez mais relevância e expectativas, principalmente nos últimos meses, quando a Covid-19 colocou o mundo todo em tensão. Além da discussão sobre se haverá uma mudança abrupta ou não, é inegável que estamos testemunhando um momento histórico bastante particular que pode ser descrito com uma palavra: oportunidade.
A questão central não é tanto como será o futuro. Não adianta ficar obcecado em tentar ser um "Nostradamus" para o setor jurídico. É mais conveniente perguntar-se: de quem será o futuro? E responder a isto: daqueles que sabem identificar e aproveitar as oportunidades que surgem no nosso setor.
Identificar uma oportunidade implica muito mais do que perceber que uma mudança está ocorrendo, é preciso uma visão mais sofisticada para entender essa mudança e, a partir daí, saber o que fazer e agir de forma eficaz. Essa tarefa nem sempre é simples, portanto, neste artigo pretendo contribuir com um esquema que sirva para melhor entender o futuro do setor jurídico, considerando o que ou quem o produz (as causas ou motivadores) e onde mudanças ocorrem (em quê ou em quem). Por fim, destacarei alguns pontos importantes para conduzir a mudança.
Os motivadores ou causas da mudança
A mudança no setor jurídico é uma realidade complexa em dois sentidos: primeiro, por se tratar de um fenômeno que não é monocausal, ou seja, possui diversos motores; e, em segundo lugar, porque tais motores são, por sua vez, complexos e nem sempre previsíveis (quando não imprevisíveis).
Alguns desses impulsionadores são tecnologia, mudanças geracionais, economia e Covid-19. Os motivos de sua relevância estão descritos a seguir.
- Tecnología: os avanços tecnológicos têm mostrado, ao longo da história, que são capazes de gerar imenso impacto social. Atualmente, tecnologias como blockchain, inteligência artificial, 5G, IOT, entre outras, prometem um impacto significativo, além disso, os avanços parecem não parar e tornar tais ferramentas cada vez mais potentes e acessíveis.A tecnologia tem múltiplos pontos de impacto no setor jurídico e pode influenciá-lo direta ou indiretamente. Diretamente criando novos desafios regulatórios e novas formas de prestar serviços jurídicos e moldar o setor. Indiretamente, ao afetar o tecido social, o indivíduo em seus hábitos, expectativas, sua forma de conceber o mundo; e, para a sociedade (permitindo novas formas de relacionamento).
- Mudanças geracionais: as novas gerações têm valores, expectativas e aspirações diferentes. Para o direito, em geral isso implica que se dê ênfase a certas preocupações sociais (igualdade e sustentabilidade, por exemplo) e à prestação de serviços jurídicos (negócios jurídicos). Neste último ponto, tem consequências na gestão de talentos, liderança, relacionamento com clientes, entre outros. Muda a forma de atrair, satisfazer e reter talentos, bem como de atrair e satisfazer o cliente. “Tenho um advogado excepcional que não tem o menor interesse em ser sócio”, “hoje um cliente perguntou-me sobre as nossas políticas de cibersegurança dentro da empresa ”.
- Economia: este aspecto afeta tanto o cliente quanto a própria firma. A conquista e retenção de clientes torna-se algo mais complexo. Os escritórios de advocacia passarão por falta de liquidez ou mesmo extinção, questão que está ligada - pelo menos nas pequenas e médias empresas - ao fato de seu mercado-alvo ser, em grande medida, o cliente PME.
- Covid-19: a pandemia traz consigo implicações sociais e políticas, além do inevitável surgimento de um desastre econômico e financeiro. Em tempos de crise, clientes e talentos ficam mais sensíveis, por isso o grande desafio é poder apoiá-los e dar-lhes confiança.
Esses motores são “inexoráveis”, isto é, sua dinâmica e efeito não são detidos pela resistência a que os atores do setor jurídico possam se opor, não dependem de sua vontade, mesmo quando é verdade que podem retardar essa mudança. Quando consideramos os motores da mudança, entendemos que é um fenômeno complexo, com direções e velocidade imprevisíveis, mas em última análise inexorável.
Onde a mudança ocorre?
É importante conhecer as frentes em que ocorrem as mudanças, pois cada uma é particular e é afetada de forma diferente, por isso exigem uma abordagem específica do advogado e do escritório em cada caso. As frentes são: setor público, setor privado e academia-educação.
- Setor público: aqui consideramos o Estado nas várias entidades que exercem jurisdição (administração da Justiça); atividades de controle (polícia administrativa); os que têm poderes regulatórios e de emissão de políticas públicas; e registros públicos. Neles, pode haver alteração nos produtos (documentos legais ou regulamentares), processos (sistema de convocação de réus), sistemas (administração da Justiça ou registros públicos) e organizações. Por meio da implementação de tecnologia ou outras ferramentas, como design. Em geral, a novidade introduzida pode ser total ou parcial (otimização do que já existe). Um exemplo interessante é o desenho de políticas públicas com "desenho legal comportamental" (Ciências do Comportamento + Direito + Desenho).
- Setor privado: considere aqui especialmente aqueles que prestam serviços jurídicos. Primeiro, leve em consideração o surgimento de novos atores (além de advogados) oferecendo soluções jurídicas. Um exemplo interessante é a plataforma “Kleros”, fundada por Federico Ast (economista e filósofo), que usa Blockchain, teoria dos jogos e “crowdjury” (crowdsourcing de júris) para a resolução de conflitos em qualquer parte do mundo como parte de um serviço de contrato inteligente mais amplo.
No entanto, o impacto mais direto sobre os escritórios de advocacia está no departamento jurídico e nos negócios jurídicos.
- Assessoria jurídica: em matéria de assessoria, há cada vez mais consultas relacionadas aos desafios colocados pelo uso das novas tecnologias. Além disso, o cliente corporativo deseja que sua linha de negócios seja compreendida e agregue valor, ao mesmo tempo em que oferece preços competitivos. A forma de prestar assessoria também é afetada, seja por uma inclusão mais ampla do teletrabalho, seja pelo uso de tecnologia legal ou pela automação de tarefas repetitivas.
- O negócio jurídico: com esta expressão quero apontar os aspectos que dentro da firma estão ligados à operação e administração do negócio. Esse ponto é fundamental e, talvez, o menos explorado. É aqui que você pode fazer a diferença, analisando o modelo de negócio e a dinâmica da firma para, entre outros aspectos, estabelecer objetivos, restringir a um segmento de mercado mais específico, identificar ineficiências e otimizar recursos. O planejamento estratégico é fundamental e deve estar associado à promoção de uma cultura corporativa saudável.
É aqui que se implementam as mudanças que respondem à atual dinâmica do setor que, resumidamente, se descreveu. Vendo a mudança geracional, adota-se uma estratégia inteligente de gestão de talentos, além de programas que visam garantir que os membros do escritório possam estar atualizados sobre os novos desafios já mencionados.
De forma a ter em consideração as necessidades e o estado de crise do cliente, o serviço é pensado mantendo-o no centro para que a sua experiência seja satisfatória e se sinta apoiado. Ao identificar a necessidade de preços competitivos e desafios financeiros internos, são detectadas ineficiências internas nos processos para reduzir o dispêndio de recursos e estabelecer custos mais competitivos (é preciso ser mais eficiente para baixar custos, caso contrário, torna-se suicídio )
A identidade corporativa também é importante. Cada vez é mais relevante ter clareza sobre o propósito e os objetivos da firma, uma vez que atuam como um norte que orienta as mudanças. Em torno dessa identidade, deve ser gerada uma cultura que é internalizada pelos membros da firma.
Formação acadêmica: O treinamento de graduação, pós-graduação e autoformação é diretamente impactado:
a) Nos conteúdos: desenvolvimento de novos perfis de advogados (não só é necessário conhecer direito mas também outras disciplinas) e, ainda, profissionais com perfis híbridos (combinações como designer jurídico ou engenheiro jurídico); desenvolvimento de respostas do meio acadêmico aos diversos desafios colocados, entre outros aspectos, pela tecnologia (por exemplo, o debate sobre a necessidade de desenvolver ou não uma teoria geral do direito e da tecnologia). Isso, sem descartar que uma academia jurídica inovadora possa ser feita de forma transversal em todos os setores.
b) Nas formas: nas universidades existem cada vez mais laboratórios de experimentação ligados à inovação, tecnologia e design, sem falar na possibilidade de aceder a cursos de alto nível online e gratuitos (ver, por exemplo, o curso de Introdução à Ciência da Computação para Advogados Harvard “CS50 for Lawyers”)
O que fazer?
Uma vez que a magnitude da mudança foi percebida e melhor compreendida, surge a questão prática: o que fazer? As atitudes que podemos assumir diante da mudança são: resistir a ela, simplesmente sobreviver a ela ou procurar liderá-la. Resistir é uma tarefa fadada ao fracasso, enquanto apenas sobreviver é absolutamente medíocre. A única resposta razoável é procurar liderá-la.
Fazer um esforço para liderar a mudança é razoável por três razões: do ponto de vista do mercado, liderar a mudança implica uma vantagem competitiva; do ponto de vista social, dá-nos a possibilidade de orientar essa mudança para um resultado inclusivo e promotor do bem comum; e, do ponto de vista pessoal, pode ser a porta para uma carreira profissional mais gratificante. Para isso, é preciso treinar, colaborar, ousar e perder o medo do risco.
Formar-se, porque como advogados não fomos formados para ter uma mentalidade empresarial e desenvolver outras competências necessárias. Não podemos esquecer que o caminho da inovação é sofisticado, não um mero impulso compulsivo de criatividade. Colaborando, tanto com advogados quanto com não advogados, essa diversidade pode contribuir imensamente.
Ouse, porque não basta ler um artigo aqui e ali ou participar de um ou dois eventos, é preciso dar o salto para tomar medidas significativas e claras. Perder o medo do risco porque, embora sejamos treinados para evitá-lo a todo custo, o caminho que devemos percorrer atualmente é apenas “abri-lo”, somos nós que vamos responder aos novos desafios que se apresentam. Portanto, é inevitável que haja risco e até mesmo fracasso.
Para quem dirige uma firma, um primeiro passo importante seria reservar um tempo para uma reunião com os sócios para estabelecer o propósito da firma (o que a inspira, além da lucratividade) e compartilhar os propósitos de cada um. Com esta primeira noção, uma reunião com o resto da equipe pode ser replicada.
A ideia central é gerar empatia, conhecer e se conectar com os integrantes. No final do dia, as pessoas são a base do sucesso do escritório. Se houver um propósito compartilhado e uma cultura corporativa saudável, o resto das mudanças jurídicas do negócio podem ser adotadas com maior sucesso e facilidade.
Conclusão:
O futuro do setor jurídico é marcado por uma mudança complexa, quase imprevisível, inexorável e transversal (todas as áreas do direito e todas as dimensões da prestação de serviços jurídicos). No entanto, a mudança no setor jurídico não será repentina ou abrupta, mas sim incremental, em grande parte devido a uma certa resistência de seus atores que moldam as instituições e as relações existentes no setor.
Em última análise, o importante é mudar de uma mentalidade de mera sobrevivência para uma de liderança com propósito e não simplesmente perguntar como faço para sobreviver? Mas o que devo fazer para liderar a mudança no setor jurídico? Pensando não só em rentabilidade, mas também em um negócio com foco social.
*Pablo Arteaga, presidente de The Smart Lawyers
Email: [email protected]
Site: www.thesmartlawyers.org
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