Quebra de patentes de vacinas ajuda a combater pandemia?

Pauta é prioritária nas discussões na OMC e envolve grandes interesses humanitários/Pixabay
Pauta é prioritária nas discussões na OMC e envolve grandes interesses humanitários/Pixabay
Medida alia esforços governamentais e privados para beneficiar toda a população.
Fecha de publicación: 06/05/2021

Recentemente aprovada pelo Senado brasileiro, a questão da licença compulsória de patentes da vacina contra a Covid-19 recebeu nesta quarta-feira (5) apoio do governo americano, após intensa pressão internacional.  A medida, também conhecida como “quebra das patentes”, é pauta prioritária das discussões na Organização Mundial do Comércio (OMC) e envolve grandes interesses humanitários e, é claro, econômicos. 

 

E não faltam influenciadores engrossando o coro para que as farmacêuticas percam o “monopólio” da fabricação, na expectativa de que esse ato torne as vacinas acessíveis a toda a população mundial.


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Se a licença compulsória é um belo instrumento de Lei que autoriza os Estados, em caso de emergência nacional ou interesse público, a conceder a licenças “forçadas” de patentes, obrigando o detentor da patente a licenciá-la a terceiros para garantir a suficiência da produção, a licença compulsória não é uma panaceia, nem traz resposta automática às deficiências de mercado, merecendo implementação de forma planejada e eficiente por parte do governo brasileiro.

  

Primeiro, porque ela não é gratuita. A licença compulsória, por lei, deve ser remunerada e o licenciado não fica eximido de pagar pela licença “adequadamente” ao detentor da patente.  Segundo, porque não garante a disponibilização dos insumos e materiais de produção.  Em terceiro lugar, e não menos relevante, há a questão do know-how, sobre o qual tivemos uma lição importante no passado.

 

Em 2007, o Brasil já esteve no centro dessa mesma discussão e foi protagonista ao decretar a licença compulsória para as patentes referentes ao medicamento antirretroviral Efavirenz para o tratamento de HIV/Aids, do laboratório Merck Sharp & Dohme. A decisão foi comemorada por José Gomes Temporão, que comandava a pasta do Ministro da Saúde do governo Lula à época.

 

Por discordância sobre o preço praticado pelo laboratório aqui no Brasil para o antirretroviral, e após várias tentativas malsucedidas de negociação para redução de preço do medicamento, foi assinado o Decreto nº 6.108/07, que concedeu o licenciamento compulsório, por interesse público, das patentes referentes ao Efavirenz para fins de uso público não comercial.

 

O Decreto determinou o licenciamento não exclusivo, pelo prazo de cinco anos, “sem prejuízo dos direitos do titular”, o que significava que tal continuaria a receber remuneração pela exploração da patente, todavia, em valor reduzido. E o próprio governo poderia fabricar o antiviral.

 

Ocorre que não há instrumento legal na licença compulsória que obrigue o detentor da patente a transferir ao licenciado as informações necessárias para efetiva exploração da patente e fabricação do produto. Faz-se necessário que o licenciado disponha de capacidade técnica e econômica para a produção e exploração do objeto da patente. 

 

Como nessa época não detínhamos know-how nem capacidade técnica plena para a produção local do medicamento, a alternativa para o abastecimento foi a importação de versões genéricas indianas do Efavirenz para o Brasil até que fosse possível desenvolver o setor nacional para esse fim.  Passados dois anos da concessão da licença compulsória, apenas em 2009 que a Farmanguinhos iniciou a produção e disponibilização do Efavirenz para o Ministério da Saúde.

 

Assim, pode ser ilusório pensar que a licença compulsória em território brasileiro, no caso da Covid-19, traria resultado eficaz para a melhoria do quadro atual em tempo hábil, diante da urgência da demanda. Para a produção de vacinas e dos tratamentos disponíveis sob os processos hoje patenteados, seria importante considerar a hipótese de negociação para transferência de tecnologia, sob pena de, assim como no caso do Efavirenz, levarmos anos para atingirmos o know-how e cadeia produtiva apropriada.  Isso porque tais processos são, em sua maioria, ligados a metodologias biotecnológicas que não são dedutíveis do simples descritivo da patente objeto da licença compulsória.

 

Enquanto o licenciamento compulsório pode ser um marco histórico positivo para garantir acesso a medicamentos e vacinas, é inegável que tal instrumento deve ser utilizado com adequação e diplomacia para que não se rompa os laços com a indústria a troco de nada.  Afinal, enquanto dependermos dos investimentos privados para alcançar soluções em casos emergenciais dessa monta (o que não é o caso dos EUA), há de se manter um mínimo de diálogo com a iniciativa privada. 

 

E ainda: alguém acredita que a indústria farmacêutica estará novamente disposta a investir em soluções para salvar o mundo (caso, por exemplo, surja uma nova cepa do próprio Sars-CoV-2 ou algum novo vírus que demande soluções em massa em curto prazo), sem que tenha obtido retorno financeiro dos bilionários investimentos feitos no último ano?  Melhor pode ser, na visão deles, seria investir em Viagra ou outras fórmulas que tragam retorno financeiro real e livre do risco da licença compulsória. Essa é uma triste realidade.

 

A história ensina que o investimento na ciência e na capacidade produtiva brasileira, para dependermos cada vez menos da importação de insumos e produtos acabados, parece ainda ser o melhor, mais rápido e mais viável caminho para o controle de qualquer emergência pública.

 

Em termos humanitários e comerciais, a licença compulsória pode ser um instrumento de negociação para aliar esforços governamentais e privados que beneficiem toda a população mundial.  E, se bem executada, pode aumentar o escopo da importação da vacina para o Brasil, ainda em tempo para solucionarmos os problemas atuais.


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Entretanto, deve ser utilizada com instrumentalidade negocial e técnica, ou o país pode “queimar um cartucho” com a iniciativa privada - que já se provou indispensável para solução de problemas futuros dessa grandeza - sem que, em troca, tenhamos uma resposta eficaz e efetiva para o controle da pandemia que hoje nos assola, colocando em jogo o já intrincado cenário das negociações internacionais, para o qual o diálogo e a diplomacia seguem indispensáveis.

 

*Leticia Provedel é sócia e Sinara Travisani consultora do escritório Souto Correa Advogados.

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