Receita Federal perde oportunidade de mudança em arrolamento de bens

Nova instrução normativa teve por objetivo adequar as regras do arrolamento e da medida cautelar fiscal à nova estrutura regimental da Receita Federal/Marcelo Camargo/Agência Brasil
Nova instrução normativa teve por objetivo adequar as regras do arrolamento e da medida cautelar fiscal à nova estrutura regimental da Receita Federal/Marcelo Camargo/Agência Brasil
Apesar do avanço, alguns pontos da nova instrução normativa trazem certa preocupação
Fecha de publicación: 07/07/2022

Quem milita no ramo do direito tributário sabe que, há pouco menos de uma década, a Receita Federal passou a adotar, de forma cada vez mais frequente, “ferramentas” que já eram previstas no ordenamento jurídico, mas que, até então, eram pouco utilizadas. Como uma forma de pressão à liquidação do crédito tributário, passou a ser cada vez mais frequente: (i) a aplicação da multa de ofício qualificada de 150%, muitas vezes não fundamentada e (ii) a imputação de responsabilidade tributária a diretores, sócios, administradores e empresas do mesmo grupo, em geral, com base nos artigos 124 e 135, do Código Tributário Nacional (CTN), sem que, em muitos casos, haja a demonstração das causas que sustentam a imputação de tal responsabilidade.

Acompanhada dessas medidas, é comum vermos não apenas a lavratura de termo de representação fiscal para fins penais, mas também a formalização de arrolamento de bens e direitos, para acompanhamento do patrimônio das pessoas físicas indicadas como responsáveis tributários, quando o débito constituído é superior a R$ 2.000.000,00 e a 30% do seu patrimônio conhecido.

Especificamente sobre o arrolamento de bens, é certo dizer que, de acordo com a legislação de regência, não representa uma efetiva constrição do patrimônio já que o sujeito passivo pode dispor dos bens arrolados, desde que efetue a devida comunicação, no prazo legal, à Receita Federal e não caia em insolvência, sob pena de ter contra si ajuizada medida cautelar fiscal.


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Porém, se de acordo com a lei, o arrolamento de bens não é propriamente uma constrição patrimonial, na prática, revela-se bastante diferente. Rotineiramente situações em que nos depararmos com pessoas físicas que tem bens arrolados e dificuldades na alienação de tais bens, em razão da desconfiança, desconforto, reticência e, até mesmo, do desconhecimento do instituto do arrolamento de bens, pelos potenciais compradores.

No que se refere a responsáveis tributários, a Lei nº 9.532/1997, em seu artigo 64, prevê que o arrolamento de bens e direitos deve ser efetivado na hipótese em que o sujeito passivo tenha créditos tributários de sua responsabilidade que sejam superiores a 30% do seu patrimônio conhecido. Não há uma referência expressa ao responsável tributário, todavia, como sabemos, o sujeito passivo a que se refere a Lei, pode ser tanto o contribuinte como o responsável, nos termos do artigo 121, do CTN.

A Instrução Normativa RFB nº 1.565, que, desde 2015, regulamentava a matéria, trazia dispositivo específico sobre o arrolamento de bens e direitos de responsável tributário, prevendo, em especial, a análise isolada do patrimônio de cada um dos corresponsáveis, para fins de aferição dos requisitos para lavratura do termo de arrolamento de bens, ao invés da análise conjunta do patrimônio de todos os sujeitos passivos (contribuinte e responsáveis).

A existência de tal previsão permitia a absurda situação em que o devedor principal (contribuinte), por possuir patrimônio suficiente para garantir o crédito tributário, não tem seus bens arrolados, enquanto os responsáveis, pessoas físicas, têm seus bens e direitos arrolados, mesmo quando o seu vínculo de responsabilidade ainda está sendo discutido na esfera administrativa.

No último dia 23 de junho, essa Instrução Normativa (IN) foi revogada, sendo substituída pela Instrução Normativa RFB nº 2.091/2022.  

De acordo com a Receita Federal, a publicação desta nova IN teve por objetivo adequar as regras do arrolamento e da medida cautelar fiscal à nova estrutura regimental da Receita Federal, além de “aprimorar sua clareza, objetividade, coesão e ordenamento lógico dos dispositivos, bem como de facilitar sua compreensão.”

De fato, verificamos alguns avanços, porém muito ainda precisa ser melhorado.

De início, a nova IN trouxe regras mais detalhadas e específicas com relação ao arrolamento de bens e direitos de responsáveis, de acordo com o fundamento legal que amparou a imputação da responsabilidade (artigo 124, 132, 133, inciso II, 134, todos do CTN e art. 5º do Decreto-Lei nº 1.598/1977).

A nova IN, no entanto, não tratou da hipótese de imputação da responsabilidade tributária com base no artigo 135, do CTN. Para esta hipótese, nos parece que as autoridades fiscais buscarão aplicar o regramento geral previsto na nova IN, ainda que seja possível discutir a legalidade do arrolamento de bens e direitos dos diretores, sócios e administradores, a depender do caso concreto.

Quanto aos avanços, uma novidade bastante positiva é a possibilidade de substituição, a requerimento da parte, dos bens e direitos arrolados em nome do responsável tributário por bens e direitos do patrimônio do devedor principal, ainda que, com relação a este, não se verifiquem os requisitos para o arrolamento (art. 15, § 5º).

Esta possibilidade, de uma certa forma, minimiza a distorção prevista na própria IN (assim como na IN anterior), que autoriza o arrolamento de bens e direitos do responsável tributário, ainda que o devedor principal tenha bens suficientes para garantir o crédito tributário e não preencha os requisitos para o arrolamento. Porém, não resolve por completo a problemática, na medida em que a substituição dos bens e direitos arrolados de propriedade do responsável tributário por outros de propriedade do devedor principal dependerá da discricionariedade das autoridades administrativas, bem como da anuência do devedor principal, que nem sempre ocorrerá, por diversas razões.

Apesar deste avanço, acreditamos que alguns pontos da nova IN trazem certa preocupação, como é o caso da previsão contida no artigo 16, § 6º. Nos parece que, com base nesse dispositivo, as autoridades fiscais poderiam manter o arrolamento de bens e direitos (ainda que parcialmente), na hipótese em que sujeito passivo que teve seus bens arrolados, em determinado momento, deixe de preencher os requisitos para a sua formalização (seja em função da redução do valor dos créditos tributários sob sua responsabilidade e/ou do aumento do seu do seu patrimônio). Por outro lado, se essa for a pretensão, há uma clara violação da legalidade, dado que o o artigo 64, da Lei nº 9.532/1997, que fundamenta o arrolamento de bens e direitos, expressamente condiciona a sua formalização ao atendimento de requisitos objetivos. Logo se, em algum momento, esses requisitos deixam de ser observados, não há base legal para a manutenção do lançamento, o que acreditamos importaria também em violação aos princípios da igualdade, da razoabilidade e da proporcionalidade.   

Pontuamos, ainda, que esse avanço foi bastante tímido ante às efetivas necessidades de ajuste do instituto do arrolamento de bens e direitos, principalmente no que se refere a responsáveis tributários.


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A esse respeito, nos parece que algumas melhorias que ainda precisam ser implementadas na regulamentação do instituto:

1. análise dos limites estabelecidos pela Lei e pela IN para a formalização do arrolamento de bens e direito deve ser realizada considerando em conjunto (e não individualmente, como é hoje) o patrimônio de todos os sujeitos passivos (contribuinte e responsáveis). Isso porque, considerando que a responsabilidade solidária implica em todos os sujeitos passivos responderem igualmente pela dívida, sem qualquer benefício de ordem, é certo que o patrimônio conjunto desses sujeitos passivos deve ser avaliado para suportar a dívida tributária.

2. possibilidade de substituição do bem ou direito arrolado pelo oferecimento de uma garantia financeira (fiança bancária ou seguro garantia) como ocorre em ações judiciais. A IN nº 2091/2022 prevê apenas a possibilidade de substituição do bem ou direito arrolado por outros bens e direitos (próprios ou do sujeito passivo principal) ou por depósito judicial do valor integral da dívida. Porém, dada a proximidade em efeitos práticos que a garantia financeira tem com relação ao depósito, associado ao fato de que uma garantia financeira é muito mais líquida para assegurar o débito tributário do que um mero ato de acompanhamento do patrimônio do sujeito passivo (caso do arrolamento de bens), a nosso ver, não haveria razão para inexistir uma previsão acerca da possibilidade de substituição do arrolamento de bens e direitos pelo oferecimento desta garantia. Tal previsão estaria, inclusive, alinhada com o que prevê o atual Código de Processo Civil, em seu artigo 835, § 2º.

3. não computar, para efeito da comparação com o patrimônio do sujeito passivo, os débitos tributários discutidos administrativamente para os quais já haja garantia judicial. Uma vez garantido o débito, não haveria qualquer necessidade e utilidade de se arrolar bens e direitos para assegurar o futuro adimplemento da dívida. Esta situação implica, praticamente, em uma dupla garantia do débito, o que se mostra irrazoável e vai de encontro com o princípio da menor onerosidade ao contribuinte. 

Esperamos contribuir para discussão dessa temática, de modo que no futuro possamos ter melhorias mais efetivas na Instrução Normativa RFB nº 2.091/2022, objetivando afastar ilegalidades e/ou conferir maior segurança jurídica, equidade e eficiência ao arrolamento de bens e direitos. A Receita Federal teve a oportunidade de trazer estas melhorias na nova IN, mas a desperdiçou!

*Vivian Casanova de Carvalho Eskenazi e Natália Sirolli Ferro Cavalcanti, sócia e advogada da área tributária do BMA Advogados, respectivamente.

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