A regulação do setor portuário brasileiro

Pelos portos, transitam cerca de 80% do comércio global, o que enfatiza a sua importância para o desenvolvimento econômico mundial/Canva
Pelos portos, transitam cerca de 80% do comércio global, o que enfatiza a sua importância para o desenvolvimento econômico mundial/Canva
Momento pode ajudar a alavancar desenvolvimento econômico da área.
Fecha de publicación: 25/01/2022

Os portos são estruturas essenciais ao fluxo de comércio exterior. A atividade portuária é considerada elemento estratégico para desenvolvimento das nações, especialmente porque, pelos portos, transitam cerca de 80% do comércio global, o que enfatiza a sua importância para o desenvolvimento econômico mundial. É evidente, portanto, que a expansão da economia brasileira passa pela gestão eficiente das estruturas portuárias, bem como por regras claras quanto à exploração e concorrência dos participantes desse segmento de mercado. Logo, regular esse valioso setor da economia é uma tarefa relevante.

 

Foi nesse contexto que, nos últimos anos, o legislador introduziu mudanças importantes no arranjo regulatório dos portos (desde a edição das Leis nº 8.630/1993 e nº 12.815/2013, até a publicação da Lei nº 14.047/2020). Em comum, as normas visaram, atrair o capital privado para o setor, flexibilizar e desburocratizar a gestão dos portos, permitir a modernização e expansão de estruturas, bem como incrementar a movimentação de cargas e a concorrência entre os agentes atuantes no mercado.

 

Contudo, nem sempre as preocupações estiveram relacionadas com o desenvolvimento do setor portuário, como um instrumento relevante à expansão econômica, ou com os aspectos de sua regulação, como se extrai do histórico das leis tratando do setor no país. Na verdade, os portos, inicialmente, atraiam as atenções apenas quanto à segurança nacional, preservação da soberania e arrecadação de tributos. Como explica o professor Egon Bockmann Moreira: “desde a Carta Imperial de 1824, o assunto [portos] foi alçado ao nível constitucional, a representar sua elevada importância. Contudo, nem sempre isso se deu sob o ângulo da atividade econômico-empresarial cujo desenvolvimento estratégico é cometido ao Estado”.


Inscreva-se no Debate LexLatin "Os desafios do mercado jurídico em 2022", no dia 15 de fevereiro às 10h, horário de Brasília.


Apesar de sua importância – nomeadamente porque o Brasil possui grande costa navegável e não dispõe de ligações, por via terrestre, com importantes parceiros comerciais –, o setor portuário permaneceu por longo período sem a devida sistematização.

 

A matéria era regida por uma série de leis esparsas e deficientes.penas em 1934, durante a Era Vargas (regime de Estado Novo), período marcado por forte intervencionismo e centralização de poder econômico estatal, elaborou-se a primeira regulação da atividade portuária brasileira e consolidou-se a legislação portuária.

 

As mudanças serviram, como aponta Itiberê Rodrigues, “para atualizar a matéria portuária em face da série de reformas político-econômicas (...) que visavam a uma ‘revolução industrial’ no Brasil”.

 

As constituições editadas posteriormente ao texto de 1934 pouco ou nada alteraram o regime de exploração de portos. O monopólio estatal seguiu praticamente inalterado, exceto para os terminais portuários rudimentares e os terminais particulares construídos para movimentação de cargas próprias. As instalações desses terminais foram autorizadas por meio da edição de decretos específicos (Decreto-Lei nº 6.460/1944 e Decreto-Lei nº 05/1966).

 

O modelo de exploração de portos fortemente concentrado no Estado (a operação dos portos e o desempenho dos serviços públicos a ele relacionados) durou por aproximadamente 30 anos. Tal característica devia-se ao forte influxo do modelo francês, centrado em uma administração piramidal, focada na supremacia do interesse público e na prestação estatal de serviço público. Na época, o ente estatal representava um provedor das demandas sociais, e, por isso, a sua intervenção na economia era justificada.

 

Com o crescimento da máquina estatal, a Administração Pública buscava se ocupar de praticamente todas as atividades relevantes em setores econômicos e sociais. Na atividade portuária, o retrato dessa participação estatal intensa ficou caracterizado com a criação, por meio da Lei nº 6.222/1975, da empresa pública “Empresa de Portos do Brasil S.A. – Portobrás”, vinculada ao Ministério dos Transportes.

 

A Portobrás passou a deter monopólio quanto à exploração e fiscalização dos serviços portuários. Suas atribuições consistiam, basicamente, na realização de atividades relacionadas à construção, administração e exploração dos portos e das vias navegáveis interiores, exercendo supervisão, orientação, coordenação, controle e fiscalização dessas mesmas atividades.

 

A viabilidade desse Estado intervencionista e provedor, contudo, passou a ser questionada. O elevado déficit fiscal, a inflação galopante, as crises econômicas, o predomínio de governos de ideologia neoliberais (especialmente nos EUA, com Ronald Reagan, e no Reino Unido, com Margareth Thatcher) levaram a crise desse modelo estatal. A grande máquina estatal mostrou-se ineficiente para atuar em diversas áreas da sociedade, inclusive na exploração das atividades portuárias.

 

A partir da Constituição de 1988, experimentou-se um processo de alteração dessa estrutura administrativa (o que também se verifica em relação aos portos e à sua exploração econômica, disciplinada pelos arts. 21, XII, f e 22, X). O Estado brasileiro deixou de prestar diretamente muitas das atividades econômicas e passou a assumir um novo papel: uma função regulatória para formular orientações, editar normas de perfil preponderantemente técnico e implementar políticas estratégicas para setores da sociedade de forma sistêmica.


Leia também: A MP do voo simples


Nesse contexto de mudança de paradigmas, explica Sérgio Guerra que “buscou-se, no Brasil, no início da segunda metade da década de 1990, um novo marco teórico para a administração pública que substituísse a perspectiva burocrática weberiana até então seguida”. Segundo o autor, impôs-se “uma reforma administrativa para a renovação de estruturas estatais absorvidas do modelo burocrático francês”.

 

O Programa Nacional de Desestatização – PND foi criado nessa linha de ideias e representou um marco no processo de reestruturação estatal. A transferência das atividades exploradas pelo setor público à iniciativa privada foi acompanhada pela criação de entidades autônomas em relação à Administração Direta, e tecnicamente estruturadas para regulação dessas atividades: as agências reguladoras. Nesse mesmo período, a Lei nº 8.029/1990 que dispôs sobre a extinção e dissolução de diversas entidades da Administração Pública Federal autorizou a dissolução ou privatização da Portobrás.

 

Conforme comentam Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara, “o primeiro setor a experimentar uma alteração legislativa, durante esse período [de transformações de diversos setores relacionados à infraestrutura], foi justamente o de portos”. Isso se deveu, em grande parte, ao nível da precariedade das instalações portuárias, o que levou os particulares a se organizarem para propor mudanças para modernização do setor.

 

Em 1993, afastou-se o monopólio estatal da exploração portuária com a edição da Lei nº 8.630, com a finalidade de abrir o setor à iniciativa privada. Instituiu-se um novo modelo de regulação com relevantes mudanças nos portos, com a adoção de conceitos para viabilizar a concorrência (como, por exemplo, o arrendamento portuário e os terminais de uso privativo misto), o desenvolvimento e a atração de investimentos. O setor portuário passou a ser tratado como peça-chave para as políticas de desenvolvimento, compreendido como parte importante do sistema econômico do país.

 

Assim, os terminais privados, que antes somente eram admitidos pelo Estado em situações excepcionais, segundo critérios da lei, passaram a ser permitidos a operar e, para alguns autores, concorrer com os portos organizados (os terminais públicos). A Lei nº 8.630/1993 representou, de fato, uma mudança radical no setor, reduzindo o papel do Estado como gestor e operador portuário e permitindo o ingresso de agentes privados no setor, criando um ambiente de competição entre os terminais. Os níveis de investimento se elevaram e, em decorrência disso e da modernização na gestão, ganhos de eficiência foram obtidos.

 

Para a continuidade do desenvolvimento do setor portuário, era essencial estabelecer um ambiente regulatório neutro e imune às influências políticas, aumentado o grau de estabilidade e segurança jurídica, de forma a atrair investimentos privados. Por essas razões, foi editada a Lei nº 10.233/2001, que criou a Agência Nacional de Transportes Aquaviários – ANTAQ, autarquia federal com objetivo de estabilizar o setor, promover concorrência, fomentar o seu desenvolvimento, elaborar e editar normas, entre outras atribuições descritas, detalhadamente, no art. 27 do aludido diploma legal.

 

Embora a Lei nº 8.630/1993 tenha permitido avanços nos portos, havia uma grande discussão a respeito da competição entre atores do setor portuário (terminais que exploravam estruturas de portos públicos questionando os terminais privados, sobretudo no que diz respeito ao tipo de carga movimentada por eles – “cargas próprias” e “carga de terceiros”).

 

Desse modo, em 2013, com a intenção de melhorar o ambiente regulatório, fomentar e ampliar a concorrência entre os participantes do mercado, atrair investimentos privados, modernizar os terminais e, por consequência, expandir a atividade portuária no país, o legislador publicou a Lei nº 12.815/2013, que revogou expressa e integralmente a Lei nº 8.630/1993.

 

Algumas das alterações trazidas pelo modelo regulatório foram: a delimitação das atribuições da Antaq e da Secretária dos Portos; a centralização de competências normativas em favor da Administração Pública federal; as definições dos critérios de licitações para concessões ou arrendamentos; o processo seletivo público para as hipóteses nas quais existam outros interessados na obtenção de autorização para instalação portuária na mesma região e com características semelhantes; a mudança das características da autorização concedida aos terminais privados (Terminais de Uso Privado TUPs); a definição de que a área do porto organizado é um bem público o que, para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, teria sido uma inovação da Lei nº 12.815/2013, que pôs fim a qualquer dúvida que pudesse haver na vigência da lei anterior”.

 

Outra alteração de destaque diz respeito ao compartilhamento de infraestrutura (das redes de serviços públicos) instrumento que já existia em outros setores regulados, como, por exemplo, no caso das telecomunicações (art. 73 da Lei nº 9.472/1997). Essa é uma solução bastante utilizada para estabelecer concorrência no mercado e foi expressamente tratada na Lei nº 12.815/2013, quando prevê, nos arts. 7º e 13, que a Antaq poderá disciplinar as condições de acesso, por qualquer interessado, em caráter excepcional, às instalações portuárias arrendadas, exploradas pela concessionária, ou autorizadas, assegurando-se a remuneração adequada ao titular da autorização estando em linha, portanto, com os objetivos divulgados pelo legislador para o marco setorial dos portos.

 

A principal alteração oriunda da Lei nº 12.815/2013, todavia, foi a extinção dos conceitos de “carga de terceiros” e “carga própria” o principal motivo de debates no setor durante a vigência da Lei de Modernização dos Portos, conforme antecipado linhas acima –,pondo fim à distinção entre terminais de uso privativo, criando a figura dos Terminais de Uso Privado – TUPs. O fator relevante para distinguir os terminais seria a sua posição geográfica, se dentro ou fora da poligonal, e não mais a titularidade da carga.

 

Com isso, estabeleceu-se uma concorrência irrestrita pela movimentação de carga de terceiros, com a adoção de regimes jurídicos díspares (assimetria regulatória) para os operadores interessados em explorar instalações portuárias. Esclareça-se que a assimetria regulatória que se observa nos portos não é uma novidade. Esse modelo de regulação também existe em outros setores da economia como, por exemplo, no setor de telecomunicações e é previsto na medida necessária para efetivar a política pública setorial.


Veja também: Ferrovias: proposta quer desburocratizar setor e aumentar participação privada


De acordo com informações divulgadas pela ANTAQ (inclusive em seus anuários estatísticos), verifica-se que houve um efetivo ingresso de capital privado nos portos (com aumento expressivo no número de outorgas de autorizações para TUPs) e incentivo à competição. Esses dados demonstram um resultado positivo quanto à regulação setorial dos portos. Entretanto, há inequívocos desafios no setor, em especial a busca pela melhor gestão dos portos públicos, eficiência produtiva e alocativa de recursos e expansão da capacidade dos portos.

 

Em 2020, na linha de um aperfeiçoamento regulatório do setor portuário, foi publicada a Lei nº 14.047/2020, a qual trouxe importantes modificações à Lei nº 12.815/2013, com o objetivo de intensificar a concorrência no setor (e aproximar os regimes jurídicos dos arrendamentos – portos públicos – e das autorizações – TUPs).

 

Destacam-se as seguintes:  contratos firmados pelas concessionárias de portos organizados com terceiros, inclusive os que tenham por objeto a exploração das instalações portuárias, terão natureza de direito privado (cf. art. 5º-A); possibilidade de os arrendamentos portuários serem realizados sem licitação quando comprovada a existência de um único interessado na exploração da área, após a realização de chamamento público pela autoridade portuária (cf. art. 5º-B); retirada da obrigatoriedade de cláusulas nos contratos de arrendamento portuário (tais como, por exemplo, tarifas praticadas, reversão de bens, garantias de execução e a forma de fiscalização – cf. art. 5º-C); e possibilidade de uso temporário de áreas e instalações portuárias inseridas na poligonal do porto organizado, dispensada a realização de licitação, cujo contrato de uso temporário terá o prazo improrrogável de 48 meses (cf. art. 5º-D).

 

Portanto, neste artigo, sem nenhuma pretensão de exaurir o tema, pretendeu-se demonstrar que a evolução legislativa do direito portuário implicou a passagem da edição de normas antes preocupadas com a soberania e a segurança nacional para um viés de atividade portuária voltada ao desenvolvimento econômico. Verificou-se que, a partir da Constituição de 1988 e a Lei nº 8.630/1993, a preocupação do regulador foi atrair o capital privado, estímulo da concorrência, modernização e expansão de estruturas, permitir a desburocratização da gestão dos portos e, recentemente, com a edição da Lei nº 14.047/2020, aproximar os regimes jurídicos de exploração dos arrendamentos portuários e das autorizações.

 

*Paulo Renato Jucá é sócio do escritório FCDG Advogados.

Add new comment

HTML Restringido

  • Allowed HTML tags: <a href hreflang> <em> <strong> <cite> <blockquote cite> <code> <ul type> <ol start type> <li> <dl> <dt> <dd> <h2 id> <h3 id> <h4 id> <h5 id> <h6 id>
  • Lines and paragraphs break automatically.
  • Web page addresses and email addresses turn into links automatically.