Responsabilidade penal da pessoa jurídica: uma herança da incorporação?

Vedação de transmissão de responsabilidade pode se tornar "botão de pânico" de empresas que pretendem se esquivar de responsabilização por crimes ambientais/Canva
Vedação de transmissão de responsabilidade pode se tornar "botão de pânico" de empresas que pretendem se esquivar de responsabilização por crimes ambientais/Canva
Em um caso da Seara Alimentos, STJ entendeu que a responsabilidade penal não pode ser transferida à incorporadora.
Fecha de publicación: 22/11/2022

Pensemos no cenário em que a empresa A será incorporada pela empresa B. Como em qualquer outra operação dessa natureza, serão analisados os passivos e ativos que, ao fim e ao cabo, irão determinar a lucratividade da operação.

A empresa B passará a responder por todas as dívidas e obrigações da empresa A. Não há dúvidas de que, civil e tributariamente, há assunção integral dessas dívidas e obrigações. Não é claro, no entanto, como se daria a “transmissão” da responsabilidade criminal de uma empresa a outra.

A transmissão da responsabilidade criminal, hipótese explorada de forma muito tímida pela Academia, virou tema de importante debate no Superior Tribunal de Justiça (STJ) recentemente, em caso levado pelas empresas Seara e Jandelle. Como sempre, o Direito teve que correr para se adequar à realidade das coisas.


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Em 2020, a Seara Alimentos Ltda. impetrou mandado de segurança requerendo extinção de punibilidade da Jandelle em uma ação penal envolvendo supostos crimes de descarte irregular de resíduos. O Tribunal paranaense acolheu o pedido da Seara, entendendo que a incorporação da Jandelle extinguiria sua personalidade jurídica, o que, em analogia à morte humana, acarretaria a extinção de punibilidade por delitos praticados durante sua operação.

O caso foi encaminhado ao STJ, prevalecendo o entendimento do Ministro Relator, Ribeiro Dantas, segundo o qual a responsabilidade penal por condutas praticadas pela empresa incorporada não pode ser transferida à incorporadora.

A despeito da absoluta novidade do tema em discussão nas Cortes brasileiras, muitos tribunais estrangeiros já se depararam com essa situação, cunhando soluções variadas.

Nos Estados Unidos, por exemplo, vale a longeva doutrina conhecida como successor criminal liability, pela qual a responsabilidade penal subsiste a operações de fusão e incorporação, sendo transferida à empresa sucessora. O mesmo posicionamento tem ganhado tração na União Europeia, adotado em países como França, Espanha e Itália. Em outras jurisdições, como Reino Unido e Austrália, tal doutrina não encontra respaldo, extinguindo-se a punibilidade sobre os atos da incorporada após a operação.

Alinhando-se a esses últimos países, o Relator Ribeiro Dantas justificou seu posicionamento esclarecendo que seria não apenas incoerente, como também ilegal, que se estendesse a responsabilização penal à pessoa jurídica, sem também lhe estender a proteção das garantias fundamentais do processo penal.

Há de se refletir, no entanto, sobre os pontos levantados pelo voto divergente. Na incorporação societária, há verdadeira absorção de uma sociedade pela outra, de modo que a sociedade incorporada continua vivendo através da incorporadora. Não se trata de fato definitivo, como a morte humana.

Ainda, a vedação de transmissão da reponsabilidade criminal pode se tornar verdadeiro “botão do pânico” de empresas que pretendem se esquivar da responsabilização por crimes ambientais, como colocado pelo Ministro Paciornick, autor do voto divergente. Não por acaso, foi necessário ajustar o acórdão: ocorrendo fraude na incorporação, a transmissibilidade poderá ser aplicada, o que demonstra, em alguma medida, a fragilidade do argumento vencedor ou, ao menos, a limitação com a analogia com a morte humana.

Vale recordar que, diferentemente da responsabilidade penal, eventuais responsabilidades cíveis e administrativas não se extinguem com a incorporação, devendo a incorporadora arcar com as respectivas sanções pecuniárias e reparatórias. Parece incoerente, nesses termos, que apenas a responsabilidade penal por crimes ambientais possa ser negociada, quando suas sanções — multas, obrigações de reparação ambiental e suspensão das atividades — permanecem sendo essencialmente as mesmas.

É evidente que existe uma lacuna na lei brasileira a respeito da temática de criminalização de pessoas jurídicas, o que acarreta o surgimento de inúmeras outras questões que hão de ser abordadas e, arriscamos dizer, “legisladas” pelo Judiciário.


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Nesse sentido, e em posição que consideramos acertada, a única conclusão possível é que a controvérsia deve se resolver da maneira mais benéfica ao réu: preservando a estrita legalidade da norma penal e a segurança jurídica.

Em suma, se, por um lado, a decisão gera tranquilidade para lidar com eventuais “surpresas” no momento da aquisição, por outro, a recomendação que vale é o reforço da auditoria que precede a incorporação, bem como das medidas de governança que a sucedem, para que eventuais más práticas da incorporada não sejam absorvidas.

A despeito do resultado, a decisão deve ventilar a discussão do tema em seara judicial, sendo esperada maior atenção dos Tribunais em relação ao combate à criminalidade econômica.

REsp n.º 1.977.172

*Natalia Ikeda e João Vitor Lavagnini Menezes são, respectivamente, advogada e estagiário da área de Penal Empresarial e Compliance do escritório Duarte Garcia, Serra Netto e Terra.

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