No início de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o surto do novo Coronavírus configurava uma pandemia, isto é, uma doença que atinge de forma simultânea e em escala mundial um significativo número de indivíduos. De lá para cá, o crescimento da contaminação pela COVID-19, doença provocada por esse novo agente infeccioso, foi ainda mais rápido e isso, aliado à expressiva taxa de mortalidade global, revelou a necessidade de identificar fármacos capazes de tratar a doença, especialmente nos seus casos mais graves.
A premência por respostas voltou cientistas e pesquisadores de todo o mundo para medicamentos já conhecidos, que, por possuírem princípios ativos já estudados e de segurança comprovada, são capazes de atalhar o tempo de aprovação pelos órgãos sanitários competentes. Nesse cenário, assumiram protagonismo a cloroquina e a hidroxocloroquina – substâncias que têm sido apontadas por recentes, e ainda incipientes, pesquisas como úteis no combate à Covid-19.
A despeito de a eficácia não ter sido comprovada, o anúncio de uma possível valia foi suficiente para gerar um expressivo aumento da procura das substâncias pelos cidadãos comuns, o que ocorreu em diversos países, como Estados Unidos, França e também Brasil. Isso resultou em um efeito colateral nefasto: a dificuldade de aquisição de medicamentos à base de cloroquina e hidroxocloroquina por seus usuários regulares, que são portadores de doenças autoimunes (como Lúpus) e artrite, em virtude do desabastecimento das farmácias, além do possível mal uso por aqueles que adquiriram para consumo sem orientação.
Diante do duplo interesse público incidente sobre tais medicamentos – de um lado, o potencial para combater a COVID-19; do outro, sua eficácia comprovada para tratar inúmeras patologias –, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) autorizou a pesquisa em casos leves a moderados e o uso dessas substâncias para os mais graves de COVID-19, classificou-as como de controle especial e, além disso, passou a exigir receita médica específica para a compra.
Essa última medida objetiva não só garantir a regularidade do estoque no mercado nacional, mas, igualmente, impedir a eclosão de um futuro problema de saúde pública, já que tais medicamentos podem ocasionar efeitos adversos gravíssimos, como complicações cardiovasculares, insuficiência renal e hepática e alterações na visão.
Para os importadores de tais medicamentos, a ANVISA não criou novos deveres. Na realidade, atualmente, encontram-se eles beneficiados com a redução temporária, para zero por cento, da alíquota do Imposto de Importação incidente sobre os medicamentos à base cloroquina e de hidroxocloroquina, conforme a Resolução da Câmara de Comércio Exterior - CAMEX n.º 22/2020.
Outra é a situação dos exportadores: isso porque a partir da RDC n.º 352, a exportação de tais medicamentos passaram a estar sujeitas à autorização da ANVISA, concedida por seu Diretor-Presidente, em caráter temporário.
Há, ainda, um último aspecto que merece ser comentado: a legalidade das medidas adotadas pela ANVISA. É certo que a Constituição Federal de 1988 consagrou a liberdade em sua acepção máxima ao preceituar que somente por meio de lei se pode obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer algo, o que, a princípio, poderia suscitar um questionamento quanto à validade das determinações aqui mencionadas para as fármaco substâncias.
No entanto, tal raciocínio não está correto. E isso se deve ao fato de que o direito à liberdade, inclusive de livre iniciativa, não é absoluto e cede frente a outros direitos assegurados e valorados como mais importantes pela própria Constituição Federal, exatamente como o direito à vida e à saúde. Diante disso, torna-se legítimo que o Estado – de cuja estrutura a ANVISA faz parte – imponha as medidas necessárias para garantir a prevalência desses direitos.
Para tanto, entre outras ferramentas, o Estado se vale do chamado “Poder de Polícia”, que é a prerrogativa de impor limitações ou restrições aos direitos privados em prol de um interesse maior – que, nesse caso, refere-se à vida e à saúde pública, aqui entendida como sendo da sociedade como um todo.
Esse poder é exercido tanto por meio de atos concretos (como, por exemplo, aquele que nega uma licença ou autorização a um estabelecimento determinado) quanto por atos abstratos, chamados atos normativos, estes últimos, constantes em resoluções ou decretos, exatamente como a RDC n.º 651, da ANVISA, mencionada acima.
Por óbvio, tal Poder deve se ater a alguns limites relativos à competência, à forma e à finalidade: a primeira, avalia se o ente federativo (isto é, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios) é realmente capaz de regular determinado tema, conforme as regras estabelecidas pela Constituição Federal; a segunda, se foi observada a forma prevista em lei; e a terceira, se tal medida visa a um fim de interesse público. São esses os parâmetros pelos quais se avalia a regularidade (ou não) de um ato determinado pelo Estado.
Consideradas tais premissas, é lícito afirmar que as medidas adotadas pela ANVISA são absolutamente legais. Primeiramente, por derivarem do exercício do Poder de Polícia. Secundariamente, porque esse poder foi exercido de forma regular: de fato, foi observada a competência legal para legislar sobre saúde, comum entre a União, os Estados e o Distrito Federal; assim como se obedeceu à forma, na figura de um ato normativo materializado por uma resolução; e, também, à finalidade de interesse público, no caso, a proteção da vida e da saúde.
Ainda, por derivarem do escorreito exercício do Poder de Polícia, tais medidas são dotadas de auto executoriedade, o que significa que o Estado pode adotar os meios necessários para garantir a sua observância, tais como a aplicação de multa, e coercibilidade, por serem obrigatórias e independentes da vontade do particular.
Dados os objetivos que visam a atender, o fato é que, mais que legais, tais medidas são imprescindíveis ao enfrentamento do delicado momento vivenciado no Brasil, de modo a possibilitar a preservação da saúde e a vida de milhares de brasileiros.
Nairane Rabelo é sócia responsável pela área de Direito Regulatório. Loueine Barros é associada na área de Direito Regulatório. As duas trabalham no Serur Advogados.
Add new comment