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Em agosto o TCU (Tribunal de Contas da União) e autoridades do governo federal assinaram ACT (Acordo de Cooperação Técnica) sobre acordos de leniência. O MPF (Ministério Público Federal) não assinou o documento. Formalmente, a finalidade da cooperação é diminuir os choques institucionais que acontecem nas negociações dos acordos. Na prática, o TCU amplia seus poderes, o que pode aumentar a insegurança jurídica nos bastidores dos acordos de leniência. Ademais, sem o MPF, fica desmobilizada a proposta de "balcão único", na qual todos os órgãos de controle atuariam lado a lado nas negociações.
Antes e depois
Afora o indesejável agigantamento do TCU na matéria, antes da celebração do ACT, o cenário era muito similar:
- A competência pela Lei Anticorrupção era da CGU (Controladoria-Geral da União) para celebração do acordo de leniência;
- A competência investigativa era partilhada;
- O TCU frequentemente se aventurava a intervir nos acordos de leniência celebrados e, por vezes, encontrava no STF um freio à sua livre atuação na matéria.
No novo sistema, já em vigor, CGU e AGU (Advocacia-Geral da União) farão investigações para apurar irregularidades praticadas contra a Administração Pública. A condução das negociações dos acordos de leniência, por sua vez, ficará a cargo exclusivo da AGU e CGU.
O TCU, por seu turno, participará das negociações, desde o seu início, a fim de calcular o dano ao erário e a consequente contrapartida a ser adimplida pela empresa leniente (multas e indenizações).
Nos novos moldes, o acordo de leniência pode ser celebrado sem a chancela do TCU, mas nesse cenário não haverá quitação do ressarcimento do dano. Um dos problemas que essa ressalva carrega é que hoje a problemática que envolve o arbitramento do prejuízo ao erário já é, por si só, um entrave à efetividade dos acordos de leniência e uma velha conhecida dos advogados e juízes em demandas ajuizadas com base na Lei Anticorrupção e na Lei de Improbidade Administrativa.
Frente às mudanças pretendidas pelo ACT, questiona-se: quais foram as mudanças concretas trazidas no que importa à celebração de acordos de leniência?
A grande mudança é que, após a celebração do acordo, sob o pretexto de ampliação da segurança jurídica aos colaboradores, o TCU tem garantia de acesso integral a todos os documentos e termos entregues pelas empresas lenientes, desde a propositura até a assinatura das leniências. O fato de a solução ter sido construída pelo presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, também traz expectativas de mudanças.
Durante a sessão do plenário do TCU, em 5 de agosto, os ministros Carreiro e Bruno Dantas destacaram que, dentre os aspectos favoráveis do acordo ao TCU, estaria o fato de a celebração da avença ser capitaneada pelo presidente do STF. Com isso, a expectativa é de que as decisões do TCU que vinham sendo reformadas no STF diminuam.
Nesse cenário, onde fica o sistema de pesos e contrapesos? Ora, realmente há um beneficiado em função da celebração do ACT. Contudo, diferentemente do quanto anunciado, não se trata das empresas lenientes, mas do TCU.
O discurso é de balcão único, de segurança jurídica, mas ao contrário de abrir mão de algum poder ou autonomia, como se esperaria de um acordo, o TCU ganhou poder, notadamente porque agora será informado pari passu e com acesso integral a todo o conteúdo juntado nos acordos, mesmo ainda na fase de proposta, podendo usar, em alguns casos, os elementos antes mesmo de assinado o acordo.
Ressalte-se que esse acesso indiscriminado a todas as informações, a começar nas fases iniciais de negociação, foi a intenção do TCU desde a edição da Instrução Normativa 74/2015-TCU, que previa a necessidade de que os acordos de leniência recebessem o aval da Corte de Contas como pré-requisito para a sua aprovação. De tão questionada, a IN-74/2015-TCU foi revogada, em 2018. Mas o Tribunal de Contas agora conseguiu, de maneira consensual, o que não obteve por iniciativa própria.
A 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, responsável por promover a integração e coordenação da atividade dos membros do MPF no enfrentamento à corrupção, manifestou-se contrária à assinatura do ACT. Destacou que o acordo reduz de forma inconstitucional a atuação do MPF no combate à corrupção, já que a legitimidade para responsabilização de pessoas jurídicas através da celebração de acordo de leniência ficaria a cargo da AGU e CGU.
A Câmara do MPF ainda afirmou que, mais eficaz do que a adoção de um balcão único para a negociação de acordos de leniência, seria o compromisso de que o acordo firmado por um dos órgãos públicos legitimados será reconhecido e respeitado pelos demais, salvo se houver ilegalidade ou se for comprovada e objetivamente lesivo ao interesse público.
O MPF chamou a atenção para o fato de o ACT ter sido capitaneado pelo presidente do STF. Órgão esse que, ao menos a princípio, deveria manter sua neutralidade na matéria para que pudesse atuar de forma imparcial no controle judicial dos acordos de leniência. Isso porque, em última instância, a palavra final sobre a matéria é do STF. Por fim, o MPF destacou o que já se percebia: o acordo não contribui para a segurança jurídica das empresas colaboradoras.
Para aumentar o imbróglio, veja-se que há outro acordo que vem sendo negociado entre MPF, Banco Central e a CVM (Comissão de Valores Imobiliários) para acordos de leniência no âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). O conceito de balcão único, nesse cenário, parece ainda mais distante.
Dessa forma, com a assinatura do ACT, a expectativa é que as empresas lenientes sigam tendo que mover custosas ações judiciais para resolver as controvérsias resultantes dos acordos de leniência. O desestímulo à autocomposição, infelizmente, é o panorama concreto posto por trás dos belos princípios encartados no ACT.
*Eduardo Stênio Silva Sousa é advogado especializado em Direito Civil e Administrativo e Julia Duprat Ruggeri é advogada especializada em Direito Administrativo e Regulatório do Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques - Sociedade de Advogados.
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