Transgêneros e as dificuldades na retificação de nome

É importante que os órgãos responsáveis atuem para apurar irregularidades no funcionamento do direito assegurado aos transgêneros/Pixabay
É importante que os órgãos responsáveis atuem para apurar irregularidades no funcionamento do direito assegurado aos transgêneros/Pixabay
Direito foi assegurado em 2018 pelo STF, mas ainda esbarra na negativa de muitos cartórios, que exigem laudo médico ou psicológico.
Fecha de publicación: 11/05/2021

Ao longo dos últimos anos, as discussões sobre os direitos das pessoas LGBTQIA+ vêm ganhando relevância jurídica mundo afora e no Brasil em razão da premente necessidade de reconhecimento dessa população como cidadãos e cidadãs devidamente inseridos na sociedade. Um dos direitos que vêm sendo muito discutido, e que é fundamental para o amparo das pessoas transgênero, é o direito ao nome: o direito de ser chamado pelo nome pelo qual a pessoa se identifica e é conhecida socialmente.


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No cenário internacional, temos como parâmetro a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que é a fonte de toda norma que garante a proteção da dignidade da pessoa humana e que, em seu Artigo 2º, veda qualquer tipo de discriminação em razão de “raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”. A DUDH foi instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948, quando o Brasil já era Estado-membro. Além da DUDH, o Pacto de San José da Costa Rica e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), dos quais o Brasil é signatário, são outras normas do arcabouço legislativo internacional de direitos humanos que contribuem para o respeito ao direito ao nome enquanto expressão da dignidade.

Dentre os debates internacionais que contribuíram para o amadurecimento do respeito ao direito ao nome, merece destaque a Opinião Consultiva nº 24/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em resposta a pedido de parecer consultivo apresentado pela República da Costa Rica, que versou sobre identidade de gênero, igualdade e não-discriminação contra casais do mesmo sexo. No âmbito da referida opinião, a Corte buscou interpretar diversas garantias elencadas na CADH e como elas se aplicariam especificamente à comunidade LGBTQIA+.

Em especial, a Corte foi instada a se manifestar sobre o reconhecimento do direito à mudança de nome de acordo com a identidade de gênero de cada pessoa. Quanto ao ponto, a Opinião Consultiva nº 24/2017 recomendou que a realização da mudança do nome e do gênero deveria depender apenas da manifestação da vontade do(a) solicitante em readequá-los de acordo com a sua autopercepção (o que decorre logicamente do direito à privacidade e intimidade), sendo certo que o(a) solicitante deveria sempre ser isentado(a) de se submeter a uma cirurgia de readequação genital ou qualquer outro tipo de modificação corporal - o que, de fato, nem sempre é do interesse de todas as pessoas transgênero, tal qual disposto nos Princípios de Yogyakarta, em especial o Princípio 32 que confere a todos o direito à autonomia e autodeterminação corporal e mental, independentemente da sua identidade de gênero.

Nesse sentido, a Corte também enfatizou a necessidade de cada Estado amparar aqueles que desejam realizar essa alteração de seus nomes, assegurando que o processo possa ser feito de forma extrajudicial e que ocorra da maneira mais simples e célere possível, sem que o(a) interessado(a) tenha de adotar esforços hercúleos.

Já em âmbito nacional, a Constituição Federal elenca como direitos fundamentais os direitos à dignidade, intimidade, vida privada, honra, imagem e à igualdade, a partir dos quais se extrai como corolário necessário o respeito às identidades de pessoas transgênero e aos seus nomes sociais.

Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi instado a interpretar o artigo 58 da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/1973) conforme a Constituição Federal e a legislação internacional aplicável e pacificar a jurisprudência quanto à possibilidade de alteração do prenome e do marcador de gênero no registro civil sem a exigência de autorização judicial prévia, nem da realização de procedimento cirúrgico de redesignação sexual ou qualquer outro tipo de modificação corporal.

Em 2018, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.275, o STF finalmente reconheceu que o procedimento de retificação do nome e do marcador de gênero poderia ser feito administrativamente, junto aos Cartórios de Registro de Pessoas competentes, independentemente de qualquer modificação corporal. Em seu voto, o Ministro Marco Aurélio reconheceu que “a alteração dos assentos no registro público depende apenas da livre manifestação de vontade da pessoa que visa expressar sua identidade de gênero” e afirmou ainda que “[a] pessoa não deve provar o que é e o Estado não deve condicionar a expressão da identidade a qualquer tipo de modelo, ainda que meramente procedimental”.

Para regulamentar o procedimento administrativo de retificação do nome social, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou o Provimento nº 73/2018, que regulamenta o processo de averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero e dispõe sobre os documentos que devem instruir o requerimento de alteração (a lista de documentos obrigatórios está elencada no §6º do Artigo 4º do Provimento nº 73/2018).

Esse provimento deve ser observado por todos os Cartórios de Registro de Pessoas em território nacional e o pedido de alteração poderá ser feito perante qualquer Cartório de Registro de Pessoas (e não apenas no cartório do local de registro do nascimento), cabendo ao cartório onde o requerimento foi feito encaminhar o procedimento ao cartório que registrou o nascimento, se não for o mesmo.

Na prática, contudo, a extensa relação de documentos prevista no provimento apresenta problemas que acabam se convertendo em verdadeiros obstáculos à sua principal finalidade.

É sabido que um dos grandes desafios enfrentados pela população transgênero no Brasil é exatamente o seu ingresso no mercado de trabalho. Isso significa que, em sua maioria, são cidadãos e cidadãs que não têm condições de arcar com os custos de obtenção de mais de 10 certidões exigidas de acordo com o provimento. Logo, a porta de entrada para um procedimento que foi criado para facilitar o exercício do direito à dignidade apresenta verdadeira obstacularização ao exercício desse direito. Isso se agrava sobremaneira em relação a pessoas transgênero que estejam em situação de rua ou em abrigos. Para essas, além do problema decorrente do custo das certidões, há a dificuldade de apresentar um comprovante de residência.

O provimento, em verdade, não endereçou essa questão e acaba por criar, infelizmente, regras que perpetuam a dificuldade de acesso dessa população a uma existência digna. Essa existência digna, uma vez assegurada, é que permitiria que no futuro pessoas transgênero em situação de rua ou abrigo pudessem ter um comprovante de residência.

Também há diversos relatos de oficiais de cartórios que fazem exigências descabidas de documentos – solicitando, por exemplo, a apresentação de laudo médico ou parecer psicológico, que não são mais obrigatórios –, ou negam pedidos de concessão de gratuidade na emissão das certidões necessárias, de modo a inviabilizar o processo de retificação.

Não se nega a tentativa de avanço empreendida a partir do provimento do CNJ. Entretanto, a sua efetividade e alcance precisam ser endereçados, de forma a continuar avançando e permitindo que o arcabouço legislativo que assegura à população transgênero o direito à retificação de registro asseguradora da sua dignidade seja amplamente colocado em prática.


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Nesse sentido, é imprescindível que os órgãos competentes, como a Corregedoria Nacional de Justiça e a Associação dos Notários e Registradores do Brasil – ANOREG, atuem para apurar irregularidades no funcionamento desses serviços e descumprimentos do processo estabelecido no Provimento nº 73/2018, inclusive com a fundamental colaboração do Poder Judiciário. Da mesma forma, é preciso que entidades como a Ordem dos Advogados, a Defensoria Pública e até mesmo a Polícia Civil intervenham quando acionados para combater casos de discriminação contra as pessoas transgênero em razão da sua identidade de gênero.

*Eduardo Perazza, Antonia Quintella de Azambuja, Marina Rocha dos Santos, Lucas Souza Passos e Sávio Pereira de Andrade são, respectivamente, sócio, advogadas e advogados do Machado Meyer Advogados.

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