América Latina e a arbitragem internacional de investimentos: ¿O início de uma nova era?

Latinoamérica y el arbitraje internacional de inversiones: ¿El inicio de una nueva era?
Latinoamérica y el arbitraje internacional de inversiones: ¿El inicio de una nueva era?
Fecha de publicación: 16/01/2017
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1. No 9 de dezembro de 1902, navios de guerra da Grã-Bretanha e Alemanha bloquearam as costas venezuelanas como resposta à negativa do Governo de Cipriano Castro, então Presidente, de reconhecer certas reclamações econômicas formuladas por estrangeiro.

Este episódio refletiu a maneira na qual acostumavam resolver as controvérsias entre os estrangeiros e os países nos quais estes estavam residenciados. Refiro-me à diplomacia de navio de guerra (gunboat diplomacy).

Esse mecanismo funcionava, em termos gerais, da seguinte maneira:

Um estrangeiro formulava um reclamo econômico junto ao Estado alegando danos a suas propriedades —reclamo que geralmente era desatendido. Então, o estrangeiro pedia ao Estado de sua nacionalidade — tipicamente um país exportador de capitais — que assumisse o reclamo, no que se conhece como "proteção diplomática".

À consequência disso, o reclamo passava a ser uma controvérsia entre Estados. Se não se chegava a um acordo, o Estado exportador de capitais acudia a mecanismos de "pressão", que tipicamente se traduziam em ações militares. Ao final, o Estado contra o qual se formulava o reclamo terminava cedendo, e através de uma arbitragem se definia o montante que devia pagar.

O bloqueio das costas venezuelanas, junto a outros eventos similares, fortaleceram duas teses desenvolvidas e defendidas com rigor pelos países latino-americanos. A primeira tese, proposta por Carlos Calvo (doutrina Calvo), sustentou que as relações entre o Estado e o estrangeiro deviam estar submetidas ao Direito nacional e que qualquer conflito devia ser resolvido pelos tribunais nacionais. A segunda tese, sustentada por Luís Maria Drago (doutrina Drago), apontou que os reclamos de estrangeiro não podiam dar lugar a intervenções de outros Estados nem atos de guerra.

Desde então, os países latino-americanos têm mostrado uma posição adversa à arbitragem internacional, ao considerar que as controvérsias com investidores só podem ser resolvidas por tribunais nacionais.

2. Durante o século XX, e especialmente, logo da segunda guerra mundial, o Direito Internacional evolucionou até proibir que controvérsias com estrangeiro derivassem em atos de guerra.

Contudo, a América Latina se manteve firme na defesa da doutrina Calvo, o que impediu lograr o consenso necessário para celebrar Tratados multilaterais de proteção de investimentos.

Foi por isso que, quando em 1964 o Banco Internacional de Reconstrução e Fomento, atualmente conhecido como Banco Mundial, logrou o acordo para criar um Centro Internacional chamado a resolver disputas de investimentos estrangeiros, a América Latina manifestou sua oposição.

Assim, o representante do Chile resumiu a posição da América Latina, apontando que a criação desse Centro permitiria ao investidor privado, "pela circunstância de ser estrangeiro, reclamar contra um estado soberano fora do território nacional, prescindindo dos tribunais nacionais".

A pesar da oposição da América Latina, o Centro Internacional de Arranjo de Diferenças relativas a Investimentos (CIADI) foi criado em 1965 e entrou em funcionamento em 1966, faz cinquenta anos.

3. Na década dos noventa, o panorama mundial mudou drasticamente. A queda do muro de Berlim e o desmoronamento da URSS favoreceu às políticas globais de liberalização.

Foi então quando a América Latina desenvolveu um amplo programa de liberalização que lhe levou a assinar Tratados Bilaterais de Investimentos (TBIs). Nesses Tratados não só se reconheceram diversas garantias ao investidor estrangeiro, senão que ademais se reconheceu que qualquer controvérsia poderia ser resolvida através da arbitragem, incluso por meio do CIADI, aplicando o Direito Internacional.

Alguns opinaram, com entusiasmo, que esta mudança demonstrava que a doutrina Calvo tinha morto. Pouco depois se demonstraria que, em realidade, a essência dessa doutrina seguia vigente.

4. A começos deste século, a Argentina sofreu uma crise econômica que lhe obrigou a adotar certas medidas de emergência. Alguns investidores consideraram que essas medidas violavam as garantias estabelecidas nos TBIs subscritos pela Argentina, o que lhes levou a plantear várias arbitragens junto ao CIADI.

Isto permitiu comprovar que a arbitragem internacional de investimentos não era só um mecanismo que permite resolver controvérsias baseadas em contratos. Em realidade, essa arbitragem também permite resolver controvérsias derivadas de atos soberanos, como Leis e Decretos. Com o qual, no fundo o Tribunal Arbitral terminava processando políticas públicas.

Poucos anos depois, as políticas de intervenção econômica desenvolvidas pelos outros países latino-americanos (Bolívia, Equador e Venezuela, principalmente) levou ao incremento de casos contra América Latina junte ao CIADI.

A reação não se fez esperar. A América Latina desafiou a defesa da doutrina Calvo, questionando a legitimidade da arbitragem internacional de investimentos para valorizar políticas públicas. Sustenta-se, assim, que os Tribunais Arbitrais do CIADI tendiam a favorecer os investidores, sem proteger o interesse público presente nas medidas econômicas adotadas. Ademais, se questionou a falta de objetividade do CIADI ao considerar-se que esse Centro dependia do Banco Mundial.

O Equador, a Bolívia e a Venezuela optaram por denunciar a Convenção CIADI, deixando de formar parte desse Centro. Incluso, dentro do âmbito da UNASUR, se propôs criar um Centro alternativo ao CIADI.

5. As críticas da América Latina para com a arbitragem internacional de investimentos não foram isoladas. Pelo contrario, um setor acadêmico importante denunciou a "crise de legitimidade" da arbitragem internacional, negando que esse mecanismo pudesse servir para decidir controvérsias baseadas em políticas públicas.

Ademais, países que em seu momento foram exportadores de capital se viram enfrentados, como receptores de capital, a possíveis reclamos arbitrais. O caso dos Estados Unidos de Norte-américa é muito ilustrativo: a pesar de que no século passado esse país defendeu a arbitragem internacional, tem optado por modificar seu modelo de TBI, com o fim de reduzir muito mais as garantias dos investidores, garantindo uma maior deferência para com as medidas de interesse público adotadas. Os Estados Unidos, o grande defensor da arbitragem internacional, se converteu num dos principais críticos da figura.

6. Contudo, parecesse que a arbitragem internacional de investimentos está entrando numa nova etapa, na qual as críticas tradicionais da América Latina poderiam mudar.

Por um lado, de acordo com as estatísticas recentes do CIADI, a América Latina já não lidera as regiões com maiores solicitações novas de arbitragem, ainda quando ainda existem vários processos abertos em contra de Estados latino-americanos.

Ademais, essas estatísticas do CIADI demonstram um equilíbrio entre as decisões a favor e em contra dos Estados, isto é, que se aprecia que os casos nos quais o reclamo é decidido a favor do investidor são proporcionais aos casos decididos a favor do Estado.

Igualmente, recentes TBIs - como os Tratados celebrados pelo Brasil - demonstram como se têm incorporado a esses Tratados obrigações que vão além da proteção de investimentos, como é o caso de obrigações orientadas a assegurar o desenvolvimento sustentável e a responsabilidade social do investidor.  

Mas talvez o elemento que melhor permite valorizar esta mudança, é a decisão do passado 8 de julho de 2016, na qual um Tribunal Arbitral constituído no âmbito do Convenio CIADI decidiu o reclamo apresentado pela empresa Philip Morris Brands Sàrl e outros em contra do Uruguai (Caso CIADI No. ARB/10/7).

O reclamo se baseou na regulação antitabaco ditada pelo Uruguai, que tinha afetado certas marcas e produtos do investidor dedicado à fabricação e comercialização de cigarros. De acordo com o reclamo, essa regulação era desproporcionada e, ademais, tinha derivado em expropriações contrárias ao Tratado.

O Tribunal Arbitral desestimou todas as denúncias do investidor. O interessante é que para rejeitar essas denúncias, o Tribunal Arbitral insistiu em que a aplicação do TBI devia tomar em conta o interesse público presente nas medidas de intervenção econômicas adotadas pelo Estado, especialmente, as dirigidas a proteger a saúde.

Igualmente, o Tribunal Arbitral considerou que essas medidas econômicas deviam valorizar-se a partir da deferência a favor do Estado. Isto significa que o Tribunal deve considerar que as medidas econômicas do Estado não violam o Tratado, salvo quando sejam evidentemente abusivas, discriminatórias ou arbitrárias.

Com isso, o Tribunal Arbitral respondeu a uma das crescentes preocupações frente à arbitragem internacional de investimentos, isto é, a proteção do “direito a regular” do Estado.

Assim, e especialmente desde a América Latina, tem se criticado que a arbitragem internacional impede o devido exercício do “direito a regular”, isto é, da soberania do Estado para intervir na economia.

No caso comentado, o Tribunal Arbitral insistiu em que a arbitragem internacional de investimentos não pode impedir o exercício desse direito a regular, com o qual, deve manter-se a deferência a favor de toda medida de intervenção econômica orientada a atender objetivos que, para o Estado sede do investimento, são de interesse público. Tal é, precisamente, a posição tradicionalmente assumida desde a América Latina.

7. O laudo do 8 de julho de 2016 muda em algo a posição da América Latina frente à arbitragem?

Creio que há várias razões que deveriam levar a uma mudança de visão.

Assim, e em primeiro lugar, a alegada falta de objetividade do CIADI - que não encontra respaldo nas estatísticas desse Centro - não se corresponde com os critérios que o Tribunal Arbitral sustentou, de clara deferência a favor do Estado.

Ademais, e em segundo lugar, as acusações segundo as quais a arbitragem não protege o interesse público tampouco podem sustentar-se: como vimos, este laudo mantém a defesa do direito a regular e, por isso, sustenta a necessária valorização do interesse público que permite ao Estado intervir na economia.

É pelo acima exposto que o laudo ditado em 8 de julho passado pode ser o início de uma nova etapa da arbitragem internacional na América Latina.

Para isso, naturalmente, é necessário que os critérios mantidos nesse laudo sejam reiterados, de maneira tal de consolidar a tese que estabelece limites à arbitragem internacional de investimentos frente à intervenção pública na economia.

Contudo, a tendência que parece inaugurar este laudo do 8 de julho deve tomar-se com cautela. Conformar um sistema arbitral totalmente deferente a favor do Estado, que reduz as garantias ao investidor reconhecidas no Tratado, eliminará a eficiência da arbitragem como método de resolução de controvérsias Estado-investidor.

O desafio consiste, por isso, em assegurar o devido equilíbrio entre as garantias do investidor e o direito a regular do Estado. Para isto, deverá ter-se em conta que a arbitragem internacional de investimentos é, no espaço global, um mecanismo que favorece o Estado de Direito e a governança democrática.

De lograr-se estas mudanças de maneira balanceada, a arbitragem internacional de investimentos, especialmente no âmbito do CIADI, logrará consolidar-se como uma das principais ferramentas a favor do Estado de Direito no espaço global.

 

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