A importância do Decreto de Revisão de Normas para o mundo jurídico

A deliberação reflete a percepção generalizada de que a regulação, no Brasil, é excessivamente complexa e extensa, segundo especialista
Fecha de publicación: 27/02/2020
Etiquetas: Brasil

Desde o início de fevereiro órgãos e entidades da administração pública federal deverão utilizar apenas portarias, resoluções e instruções normativas como atos normativos inferiores a decreto. A nova norma veio com o Decreto 10.139/2019, que também estabelece a numeração sequencial dos atos e é chamado de Decreto de Revisão de Normas.

O decreto, segundo especialistas ouvidos pela Lex Latin, reflete a percepção generalizada de que a regulação, no Brasil, é excessivamente complexa e extensa, o que frequentemente produz perplexidade aos operadores do direito ou aos empreendedores que buscam, nas agências de regulação setorial ou em qualquer dos órgãos de administração pública, as informações básicas sobre o cumprimento das normas para o desenvolvimento de uma determinada atividade civil ou empresarial.

Essa complexidade regulatória excessiva, para os advogados da área, tem muitas causas, algumas associadas com as práticas de administração pública, especialmente a fragmentação das competências. Cada órgão se ocupa do exercício de sua competência, mas não responde pelo resultado prático que justifica o serviço público. 

Uma novidade do Decreto de Revisão de Normas impacta diretamente na elaboração dos textos, que é a necessidade de indicação de uma data certa para a entrada em vigor da norma. A indicação de tempo não será mais permitida, o famoso “esta norma entra em vigor em 60 dias após a data de publicação”, por exemplo.

Além disso, a data especificada deve atender a duas condições: ser, no mínimo, uma semana após a data da publicação da norma e entrar em vigor sempre no primeiro dia do mês ou em seu primeiro dia útil.

Nossa equipe conversou com Eduardo Ramires – sócio do Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques sobre a importância do Decreto de Revisão de Normas para o mundo jurídico.

 

Que impactos práticos o sr. espera que aconteça? Uma grande revisão ou revogação?

Creio que haverá um incremento das demandas de administrados e usuários por uma consolidação e sistematização das normas que veiculam a regulação de agências e demais órgãos dotados de poder normativo, exacerbando a justa expectativa dos regulados de manejar um arcabouço normativo menos repetitivo e complexo e mais simples e coerente. Esse ímpeto, ademais, também será incrementado por iniciativa das agências e outros órgãos públicos em suas agendas de atualização da regulamentação.

Esse movimento não será exclusivamente positivo, dado que, mesmo que as inovações e consolidações normativas sejam eficientes e perfeitas – e não serão – as mudanças sempre geram um momento inicial de dúvidas e incertezas cuja superação exige um esforço de aprendizagem tanto dos reguladores como dos regulados.

 

Poderia destacar normas de áreas específicas que deveriam sofrer revisão ou serem eliminadas inteiramente durante esta revisão?

Um bom exemplo é o regulamento de fiscalização da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que já possui até mesmo uma proposta de revisão que foi submetida à consulta pública, mas segue vigorando em um texto cheio de contradições e escolhas ineficazes para a finalidade do “enforcement” das regras contratuais e da reparação dos eventuais danos sofridos pelos usuários, mas implica em altos ônus para os operadores e transforma os descumprimentos contratuais em receitas da União.

Na Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a combinação do Regulamento de Qualidade dos Serviços de Telecomunicações, recentemente alterado, com o Regulamento de Aplicação de Sanções Administrativas criou um “estoque” de multas para as empresas operadoras que, por si só, demonstra a absoluta inadequação das normas para a sua finalidade de garantir o incremento da qualidade dos serviços e o cumprimento da regulamentação e dos contratos.

Outro exemplo pode ser obtido na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), onde tive a oportunidade de desenvolver uma consultoria destinada a promover a consolidação da regulação produzida pela Agência, mas dispersa em regulamentos específicos das diversas superintendências da ANTT segundo cada modal de transporte (rodoviário, férreo, de passageiros etc.).

Na prática, embora a Agência seja um único órgão, cada superintendência maneja um arcabouço regulatório específico para cada segmento e dialoga com o mercado com uma linguagem e um conjunto de referências específico, tornando difícil agrupar as finalidades gerais (ou referências gerais) da regulação da ANTT das distinções e referências particulares de cada segmento de mercado e que são realmente incontornáveis.

A experiência da convivência com arcabouços regulatórios paralelos causa grande perplexidade aos regulados justamente por exibir discrepâncias e discriminações inconsistentes com as diferenças entre as atividades reguladas.

 

 Qual o impacto destas transformações para a prática da advocacia nos próximos anos?

A advocacia será bastante importante nesse processo de revisão e consolidação da regulamentação inferior ao Decreto, certamente. Seja atuando na formulação das demandas por racionalização ou consolidação da regulamentação ou no debate das propostas de alteração de regulamentos, seja na fase posterior em que se dá o esforço de assimilação das mudanças e orientação dos regulados na condução de seus negócios.

 

O Decreto de Revisão faz parte de um amplo conjunto de medidas adotadas pelo governo para reformulação do Estado. Como o sr. avalia as mudanças realizadas neste ano e o que esperar para o ano que vem?

De fato, a iniciativa pode ser associada à Lei n. 13.874/2019, cujo objetivo é uma Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. A referida norma reafirma princípios de liberdade que já compõem a constituição econômica, mas que, na prática, vêm sucumbindo à intensidade e irracionalidade da intervenção estatal cada vez mais ampla e mais profunda sobre as atividades privadas, com efeitos crescentemente inibidores do investimento e do desenvolvimento.

Tanto no caso da lei como do decreto, entretanto, estamos mais diante da afirmação de princípios do que de uma metodologia ou estratégia para refinar as escolhas dos reguladores para a arbitragem dessa tensão entre o incremento da fiscalização estatal sobre as atividades econômicas “de interesse público” e a liberdade de iniciativa ou seja, o direito de empreender, contratar, investir e oferecer novos serviços e novas estratégias produtivas à sociedade.

O excesso de controle estatal sobre as atividades privadas inibe as iniciativas, os investimentos, o emprego e a renda.  O custo social da intervenção e do controle precisa passar a ser comparado com os benefícios ou resultados que promove.

 

Ter normas em excesso prejudica o ambiente de negócios, mas ao mesmo tempo as mudanças frequentes de normas no Brasil criam insegurança jurídica. Neste momento, o que prevalece na visão dos investidores em sua opinião?

Não é novidade que vivemos um momento conhecido como de “economia da incerteza”. Esse fenômeno não está limitado ao Brasil, visto que o impacto da tecnologia no ambiente empresarial, por si só, representa um vetor de incerteza global e praticamente universal na sociedade contemporânea.

Entretanto, as crises institucionais que o Brasil vem vivendo incrementam esse efeito sobre o cenário econômico e, claramente, retardam os planos de investimento. Para superarmos essa percepção de insegurança será preciso que a afirmação dos princípios de respeito à livre iniciativa, ao cumprimento dos contratos e à proteção do patrimônio dos investidores seja acompanhada de experiências práticas de que as agências e demais órgãos do Estado Brasileiro, de fato, acreditem nesses fundamentos da economia de mercado.

 

O que podemos esperar de impactos no Judiciário quando o Executivo revogar dezenas de normas que atualmente justificam decisões judiciais?

É importante ter presente que já experimentamos um incremento evidente da judicialização de velhos e novos conflitos em torno de exigências regulatórias vis-à-vis com os direitos de regulados e empreendedores. Esse fenômeno reflete a crescente insegurança de reguladores e administradores, em geral, para a assunção dos riscos associados às escolhas regulatórias. As características da jurisdição e o longo tempo de tramitação dos processos, entretanto, limitam bastante a eficácia dessa medida.

Assim é natural imaginar que um amplo movimento de revisão normativa seja acompanhado do incremento do acesso ao Poder Judiciário para a arbitragem de conflitos. 

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