“O crime de racismo no Brasil é o crime perfeito”

"Hoje os estudiosos não falam mais em racismo, mas em projetos raciais"/Tania Rego/ Agência Brasil
"Hoje os estudiosos não falam mais em racismo, mas em projetos raciais"/Tania Rego/ Agência Brasil
Série de reportagens de Lexlatin com especialistas do mundo jurídico analisa racismo recreativo e o mito da democracia racial brasileira.
Fecha de publicación: 17/06/2020
Etiquetas: Brasil

Ele é autor de livros como “Pensando como um negro: ensaio da hermenêutica jurídica”, “O que é discriminação” e “União homoafetiva: a construção da igualdade na jurisprudência brasileira”.

O intelectual, advogado e doutor em direito pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, Adilson José Moreira, também é conhecido por seu livro e pelo conceito de “racismo recreativo”, que explicita o viés racista da Justiça brasileira quando sentencia que produções culturais, como programas humorísticos, que reproduzem estereótipos raciais, não são discriminatórias por promoverem a descontração das pessoas.

O professor de Direito Antidiscriminatório do Mackenzie, em São Paulo, falou com LexLatin e abre a nossa série de entrevistas sobre a questão do racismo no Judiciário e na sociedade brasileira.

Como o racismo age como sistema de dominação nas diversas sociedades hoje em dia?

Adilson José Moreira: Os estudiosos sobre o tema afirmam o seguinte: o racismo é um sistema de dominação social. Ele não é apenas um problema comportamental. Ele não é simplesmente o resultado de percepções inadequadas e equivocadas sobre o outro. Como ele não existe no plano apenas comportamental, como ele não é algo meramente psicológico, o racismo também opera no plano das instituições, sejam elas públicas ou privadas.

O racismo, por ser um sistema de dominação social, tem um propósito fundamental em todas as suas manifestações: garantir acesso privilegiado ou exclusivo de pessoas brancas a recursos e oportunidades sociais.

Mas, obviamente, nós vivemos em uma sociedade que tem também uma cultura pública supostamente baseada na ideia de democracia e direitos iguais. Então, dentro dessa situação, você precisa sempre ter uma legitimação da situação de desigualdade que existe entre os diferentes grupos.

Todas as sociedades enfrentam hoje exatamente o mesmo problema: como dividir e como distribuir recursos a um grupo cada vez maior de pessoas. Então isso precisa ser legitimado primeiro no plano da cultura.

Primeiro foi a religião, porque grande parte dos grandes sistemas religiosos estabelecem critérios para a divisão social do trabalho. Daí vieram questões políticas. Numa democracia as pessoas recebem os resultados dos seus próprios esforços, uma vez que elas têm os mesmos direitos e são tratadas da mesma forma.

Outro discurso é também o racismo. Há uma coisa chamada raça, essa categoria permite que nós massifiquemos as pessoas a partir de traços fenotípicos e parte do pressuposto que as pessoas com estes traços têm características culturais, morais e intelectuais comuns que são transmitidas biologicamente. Então, por esse raciocínio, todas as pessoas que pertencessem a uma raça teriam exatamente as mesmas características.

Mas o racismo é um sistema de dominação social e isso significa que, quando ele ocorre dentro de um contexto democrático, estará sendo combatido principalmente por aquelas pessoas que sofrem as consequências desse ato, mas também por parte dos grupos dominantes, das instituições, etc. Então o racismo também precisa operar de forma encoberta.

Adilson José Moreira

Como funciona esse silenciamento?

Adilson José Moreira: Hoje nós estudiosos não falamos mais em racismo, mas em projetos raciais: os projetos de dominação que as diferentes sociedades criam nos diferentes momentos históricos.

Qual o projeto de dominação que está em vigor hoje no nosso país?

Adilson José Moreira: O projeto de dominação que nós temos no Brasil, desde as primeiras décadas do século passado, está baseado no negacionismo da relevância do racismo no Brasil. Tem origem na década de 1930, com a institucionalização da doutrina da democracia racial.

Então parte do pressuposto que nós desenvolvemos é uma cultura pública baseada na cordialidade racial, de que todas as divisões, de que todas as disparidades entre negros e brancos têm um caráter econômico e não racial.

Dessa forma, essa teoria nega a relevância do racismo e atribui ao problema de classe social as divisões entre negros e brancos e, consequentemente, tira a responsabilidade de pessoas brancas e de instituições controladas por pessoas brancas sobre as diferenças entre negros e brancos no Brasil.

Durante a pandemia o mundo começou a protestar contra os abusos cometidos por autoridades contra pessoas negras. O estopim foi a morte de George Floyd, sufocado por policiais americanos. O que nós temos de novo nestas manifestações que estão acontecendo nos Estados Unidos, aqui no Brasil e em várias partes do mundo?

Adilson José Moreira: O que nós observamos nos Estados Unidos ao longo do último século é uma série de conflitos raciais, de manifestações contra a opressão racial nos Estados Unidos. Elas sempre ocorrem em momentos de crise econômica ou em momentos nos quais a brutalidade racial atinge níveis insuportáveis.

Então nós tivemos uma onda de protestos em 1992 pela morte de Rodney King, brutalmente espancado pela polícia de Los Angeles, que é a práxis da polícia norte americana. Eles sempre foram o braço estatal a partir do qual o regime de segregação racial naquele país foi institucionalizado e afirmado.

Hoje nós temos algo diferente. Nós também tivemos protestos, as pessoas foram para as ruas, quebraram carros, mas há algo importante que é a conscientização de grande parte da população branca norte-americana que a relação de opressão e exclusão que os negros vivem não é um problema dos negros norte-americanos, é um problema da sociedade de uma maneira geral.

Há uma conscientização de parte das pessoas brancas norte-americanas que a luta por igualdade não é uma demanda de grupos específicos. É uma demanda democrática e consequentemente todas as pessoas devem estar empenhadas em eliminar esta situação.

Nós temos visto muitas pessoas nos canais de comunicação discutindo e debatendo a questão do racismo.

Hoje, nós temos também uma produção intelectual muito maior do que nós tínhamos há 40...30 anos. E uma produção intelectual feita por pessoas negras e, portanto, mostra o que sempre se fez no Brasil.

Nós temos uma diversificação racial nas universidades, no corpo docente, no corpo discente, e muitas dessas pessoas negras e pesquisadores negros estão interessados em pesquisar os mecanismos que produzem a desigualdade no campo do direito, no campo da medicina, educação e economia.

Quando você fala do caráter estrutural do racismo, nós estamos reconhecendo, e foi exatamente a mesma coisa que os norte-americanos reconheceram, que o racismo atua nas instituições de saúde, por exemplo. Isto está ocorrendo com o tipo de tratamento médico na crise da Covid-19: negros morrem três vezes mais que brancos, que o racismo opera no sistema de saúde e nas instituições policiais. Opera também no sistema de educação e moradia.

A sociedade norte-americana é hoje mais segregada do que no período oficial de segregação naquele país. As crianças negras, as escolas, o sistema de ensino público daquele país é hoje, durante o período democrático, mais segregado do que era antes.

Então este caráter estrutural mostra que as diferentes instituições, a saúde, os sistemas institucionais, a política, a economia, a polícia e a cultura estão atuando para manter pessoas negras em uma situação de subordinação.

E no mundo jurídico, como acontece o racismo?

Adilson José Moreira: Ele se manifesta das mais variadas formas. Em primeiro lugar, nós temos o fato de que esse não é um tema estudado nas faculdades de direito no Brasil. O mundo jurídico, o corpo docente brasileiro é formado por pessoas brancas. Hoje, 80% dos professores brasileiros de direito são homens brancos heterossexuais de classe alta. Essas pessoas nunca sofreram discriminação na vida, portanto, pelo contrário, são sistematicamente privilegiadas pelo racismo.

Como essas pessoas nunca sofreram discriminação na vida o racismo, o sexismo e a homofobia são questões irrelevantes para estas pessoas.

Nos Estados Unidos, um dos fatores para a maior conscientização de atores jurídicos norte-americanos é que todas as faculdades de direito oferecem a disciplina de direito antidiscriminatório, o que não existe no Brasil.

Então, quando os operadores do Brasil estão analisando questões relacionadas à discriminação nos seus mais diferentes aspectos, nos diferentes grupos, essas pessoas não têm elementos intelectuais para analisar a complexidade do problema.

Então elas analisam a partir do que?

Adilson José Moreira: Do senso comum das relações raciais no Brasil. Elas vão afirmar que o policial não matou o indivíduo porque ele é racista, porque nós teríamos uma cultura de cordialidade. Este juiz branco vai dizer que o crime de injúria racial não pode ser caracterizado, porque a pessoa cometeu a injúria em tom de piada racista, mas que ela não é racista, estava apenas querendo fazer graça.

E além disso há o problema de que, como em todos os outros aspectos da sociedade, nós temos promotores racistas, juízes racistas, etc.

Como age o sistema hoje?

Adilson José Moreira: Vamos imaginar a seguinte questão. Eu fui vítima de racismo, alguém me fez uma ofensa racista. Vem um policial branco. Ele vai tentar ver primeiro se ele vai tentar me dissuadir ou descaracterizar o que ocorreu.

Na eventualidade de eu ir para a delegacia, o delegado possivelmente será um homem branco que também tentará dissuadir ou descaracterizar o caso. Então o que muitos delegados fazem é não apresentar uma denúncia de injúria racial ou racismo, mas de ameaça.

Mas suponhamos que a denúncia seja apresentada pelo delegado como injúria racial, como racismo. Aí o promotor, que possivelmente será um homem branco, também fará o possível para descaracterizar o racismo para injúria racial, da injúria racial para injúria simples e da injúria simples para ofensa. E hoje o juiz, que muito possivelmente será um homem branco, fará exatamente a mesma coisa.

Então o sr. está dizendo que o crime de racismo não é considerado pela Justiça em muitos casos?

Adilson José Moreira: Devido ao fato de que todo o sistema judiciário, de que todo esse processo é controlado por pessoas brancas, o crime de racismo no Brasil é o crime perfeito. Ele raramente, muito raramente, tem quaisquer tipos de consequências. A lei do racismo tem mais de 20 anos e poucas pessoas foram condenadas por esta lei.

O sr. tem mestrado e doutorado em Harvard em direito antidiscriminatório. O quanto que essa formação contribuiu na história do Sr. como professor, intelectual e profissional do direito no debate dessa questão do racismo hoje no país?

Adilson José Moreira: Eu fiz a minha graduação em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), fiz uma dissertação de mestrado sobre cidadania e movimentos sociais e imediatamente fui aceito no doutorado. E aquele era o momento no qual, 2002...2003, as universidades públicas brasileiras estavam começando a implementar políticas de ações afirmativas. E havia muitas, muitas decisões contrárias a isto.

Quando eu li as decisões o que eu percebia? Há uma velha argumentação baseada nessa representação do Brasil como uma democracia racial. Eu estava num programa de pós-graduação no Brasil [ele também é mestre pela UFMG] no qual não havia absolutamente nenhum professor especializado nesse assunto.

O direito antidiscriminatório não era naquele tempo ponto de pesquisa de nenhum professor em nenhum programa de pós-graduação no Brasil. Então eu fui para os Estados Unidos, porque os norte-americanos, desde a década de 1970, desenvolveram e estão pesquisando sobre o direito antidiscriminatório e, mais do que isso, eles desenvolveram uma escola de pensamento jurídico específica para analisar este tema, que é a teoria crítica racial.

Eu tive a necessidade de ir para os EUA e lá adquirir uma formação bastante sólida sobre direito das relações raciais e direito antidiscriminatório. Essa bagagem teórica, todo esse aparato teórico, tem me permitido escrever sobre isso.

Que tipos de situações de racismo você enfrenta no cotidiano? Como que é esse enfrentamento diário do racismo no nosso país?

Adilson José Moreira: Em relação aos episódios de discriminação eles são vários. Eu moro num bairro de elite. Então vou ao supermercado e estou na fila do caixa, eu vejo a caixa branca atendendo uma pessoa branca e ela é toda cordial, diz bom dia, boa tarde ou boa noite e pergunta se a pessoa encontrou todos os produtos que ela estava procurando.

Quando chega a minha vez, primeiro a pessoa não olha para mim, aumenta o tom de voz, olha para o outro lado e pergunta: CPF na nota? Isso é o que nós chamamos de micro agressão.

São comportamentos que não são suficientemente graves para gerar um processo judicial como um caso de racismo, de injúria racial, mas a pessoa expressa desprezo.

Esta pessoa branca está me dizendo: eu não quero te atender, eu não acho que você tenha o mesmo valor que pessoas brancas. E é claro, obviamente, eu já participei de alguns processos de seleção para professores em instituições públicas e privadas nos quais eu já fui preterido.

Como é o racismo no mundo acadêmico?

Adilson José Moreira: Num dos últimos processos de seleção para professor eu fiquei em segundo lugar. O escolhido era um homem branco heterossexual de classe média que tinha acabado de concluir o mestrado. Esses são dois dos inúmeros exemplos do que ocorre no Brasil. E a minha experiência de discriminação no mercado de trabalho demonstra muito claramente a problemática do argumento da meritocracia sendo utilizada contra ações afirmativas.

Meritocracia não tem absolutamente nenhum valor no Brasil. Não tem, nunca teve e nós teremos que evoluir muitíssimo como sociedade para que algum dia tenha a ver. E nós olhamos isso nos concursos para professor. Então o que ocorre: é o professor branco e o candidato branco aprovado. Quando nós olhamos esse candidato, ele é sócio de um dos membros brancos da banca examinadora.

Você tem o concurso público que tem o desembargador branco que de repente aparece no almoço ao qual a banca está reunida. Ele chega com o filho dele, que é candidato ao concurso. Então são diversos mecanismos para manter o poder nas mãos do mesmo grupo racial.

O quanto a sociedade brasileira precisa evoluir nesta questão racial e o quanto nós precisamos desconstruir essa história de preconceito dos últimos 200 anos ou mais?

Adilson José Moreira: Precisamos ter um debate público, aberto, sincero, sobre a relevância do racismo. Precisamos fazer com que as pessoas, agentes públicos, agentes privados, membros do Ministério Público, do Judiciário e do Legislativo reconheçam a presença endêmica do racismo nas suas práticas pessoais, inclusive institucionais.

Temos ainda que garantir que membros de minorias raciais, negros, asiáticos e indígenas participarão dos processos decisórios. Não há como formar juristas que operarão de forma transformadora, que estarão aptos a levar o processo de formação social presente na nossa Constituição se essas pessoas não são capazes de entender como funcionam e como operam os sistemas de dominação que existem neste país.

Nós precisamos promover a diversificação racial de tudo: do Ministério Público, do sistema Judiciário, da cúpula das polícias militar e civil, promover uma maior participação de pessoas negras no Legislativo e de candidaturas negras.

Nós precisamos de maior representatividade, não podemos num país que 54% das pessoas são negras e pardas ligar a televisão e só ver pessoas brancas, loiras e de olhos azuis.

Nós não podemos ligar a televisão e ver uma novela sobre o Egito Antigo, que era um povo preto, e só ter lá homens brancos e mulheres brancas loiras de olhos azuis. Isso é um acinte à população negra, asiática e indígena.

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