O papel da saúde suplementar e as questões jurídicas enfrentadas no combate à pandemia

Setor deve enfrentar aumento de judicializações durante e depois da pandemia/Unplash
Setor deve enfrentar aumento de judicializações durante e depois da pandemia/Unplash
Setor, que é responsável pelo atendimento de 47 milhões de brasileiros,  enfrenta pressão para apoiar políticas públicas, como o uso da cloroquina.
Fecha de publicación: 25/05/2020
Etiquetas: Saúde

O Brasil tem 721 operadoras de assistência médico-hospitalar ativas e com beneficiários utilizando os serviços. Hoje são 47.107.809 pessoas atendidas, num universo de 209,5 milhões de brasileiros, ou 22,48% do total da população do país. Por ano, são feitos 1,4 bilhão de consultas, exames, terapias, cirurgias e internações.

Os dados, atualizados em março, são da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), entidade que controla e regula o setor, que têm enfrentado dificuldades em época de pandemia, como aumento acelerado da demanda e as judicializações. Nos hospitais e clínicas das redes conveniadas, a maioria dos procedimentos de saúde foram suspensos durante esse período porque a prioridade é a questão da Covid-19.

Em entrevista a LexLatin, Ana Cândida Sammarco, responsável pelo setor regulatório de life sciences e saúde do escritório Mattos Filho, dá um panorama de como o setor vem enfrentando questões relativas à pandemia do coronavírus no Brasil.

A especialista explica que, de uma forma ou outra, a conta desse momento vai chegar para os planos de saúde. E quem vai pagar será o consumidor, que pode vir a ter reajustes acima do esperado.

Como está a regulação do setor de saúde complementar em meio à pandemia da Covid-19?

Ana Sammarco: Nós temos a falta de padronização em questões de protocolos de saúde. Hoje há uma ingerência do nosso presidente em definir estes protocolos, como o uso da cloroquina, que seria aplicável só ao SUS. Isso, de certa forma, leva uma pressão à adoção de protocolos médicos também para prestadores de serviços no setor privado. A grande maioria, tanto as operadoras de saúde quanto os hospitais, são contra, porque fere o princípio da autonomia médica, sem contar que o remédio não tem comprovação e eficácia para o tratamento da Covid-19.

Nós temos também questões de legislações estaduais, municipais e até mesmo federais com relação à requisição de leitos e equipamentos que podem ser utilizados no combate à Covid-19. Vimos, logo no começo da pandemia, uma série de ordens de requisição de respiradores acontecendo e até de brigas entre todos os entes federativos de quem seria o ente que teria direito ao equipamento, que já tinha sido comprado por um hospital privado, por exemplo.

Os hospitais privados e as operadoras de planos de saúde que atuam no ambiente complementar são atores tão importantes quanto o sistema público no combate à pandemia. Então, retirar um respirador de um hospital privado tende a sobrecarregar ainda mais o público.

Então o setor sofre por causa da indefinição de uma política pública conjunta e única, principalmente por causa de equipamentos e leitos?

Ana Sammarco: Nós tivemos todas essas questões de requisições administrativas de respiradores e agora está meio que superado, até porque o SUS, na grande maioria dos estados, está totalmente colapsado. Então não é falta de respiradores, falta tudo: respirador, profissional médico...

Ana Cândida Sammarco

Agora temos as possibilidades de requisição administrativa na parte de leitos. A grande maioria dos estados já fez contratações emergenciais ou chamamento público para ver quem são os hospitais privados que tenham interesse de oferecer e prestar serviços médicos para o governo. Em última análise, se eles não estiverem interessados, tem até uma discussão jurídica sobre a possibilidade de o estado determinar a ocupação de leitos pelo SUS.

A questão é a obrigatoriedade dos players do mercado privado em prestar serviços para o SUS. E aí a gente espera que isso leve a uma judicialização.

Em São Paulo, em especial, acho mais difícil, porque o governo do estado fez um chamamento público e ele tem sido bem sucedido. Tem alguns hospitais que já estão contratados para oferecer este tipo de serviço para o SUS.

Então, pelo que você está falando, falta clareza na definição de políticas públicas. O setor está apreensivo com o que pode acontecer?

Ana Sammarco: A gente vê que as operadoras de planos de saúde e hospitais, além da pressão operacional, estão tendo uma pressão muito grande de apoiar políticas públicas, e isso acaba afetando até a forma de operar o hospital. Tem hospitais que estão receosos com o que pode acontecer amanhã, porque não há muita visibilidade sobre o que os nossos governantes pretendem adotar, em termos de políticas públicas para o enfrentamento da Covid-19.

Quando falamos em planos de saúde é preciso abordar a questão do direito do consumidor. Como fica o usuário nessa época de pandemia?

Ana Sammarco: A regulamentação da ANS, que cuida de planos de saúde, foi alterada para proteger consumidores durante esse período da pandemia, mas nem todas as operadoras têm a obrigação de seguir essa regulamentação alterada.  

Para que uma operadora posso funcionar regularmente, a ANS exige que elas tenham uma série de ativos garantidores, que são desde aplicações financeiras até imóveis, que garantam a regular operação do plano.

Durante a pandemia, a ANS flexibilizou as exigências com relação aos ativos para desonerar as operadoras, para que elas pudessem investir mais na operação do plano de saúde e gastar na operação e não deixar esses ativos parados numa conta regulada pela ANS.

Mas em troca disso, a Agência exigiu, por exemplo, que as operadoras não rescindissem os contratos com os beneficiários desses planos durante o período da pandemia. Mesmo em casos de inadimplência, a operadora precisava manter estes contratos.

Ocorre que isto não é aplicável a todas as operadoras e sim àquelas que pediram a desoneração dos ativos garantidores. Então, do ponto de vista regulatório, não são todas as operadoras que são obrigadas a seguir esta regra. Bem poucas foram as que solicitaram essa desoneração financeira em troca desses benefícios que foram dados aos pacientes, aos usuários do planos de saúde.

Diante disso, como estão os processos na Justiça durante a pandemia no setor de saúde suplementar?

Ana Sammarco: Temos visto muita judicialização sobre esse tema. A grande maioria das decisões iniciais são no sentido de que as operadoras e planos de saúde têm que continuar a oferecer os seus serviços mesmo que o usuário/beneficiário esteja inadimplente, mesmo que perca o seu direito de permanecer no plano de saúde, como, por exemplo, o caso de um plano de saúde coletivo empresarial.

Se o usuário for mandado embora, as apólices e os contratos de seguro têm condições específicas, alguns não permitem a continuidade do plano ou por um período muito específico, que provavelmente não é o período todo da quarentena.

E o Judiciário como tem reagido em suas decisões?

Ana Sammarco: O Judiciário tem sido muito sensível a isto e, na grande maioria das vezes, tem dado decisões favoráveis aos consumidores, o que é bom sob o ponto de vista do consumidor. Mas, por outro lado, não podemos esquecer que as operadoras do planos de saúde e hospitais são entidades privadas e que estão sofrendo muito com a alta demanda.

Eles estão investindo e gastando muito para poder manter todos os serviços funcionando com qualidade e que essa conta vai chegar em alguma hora.  Seja por meio de reajustes no planos, o que também está suspenso.

Então você está dizendo que os planos de saúde do país terão dificuldade após a pandemia?

Ana Sammarco: Fica complicado do ponto de vista empresarial. Acredito que logo após a pandemia teremos um período bem complicado para as operadoras de planos de saúde, porque elas estão tendo gastos muito altos para fazer toda a prestação de serviços durante o período da pandemia. Elas estão sofrendo com judicializações que, na grande maioria das vezes, são contrárias aos interesses das operadoras. Acho que essa conta vai acabar chegando para o consumidor mais tarde, porque será preciso reajustar contratos. O plano de saúde que já é caro vai ficarr ainda mais nos próximos anos.

Você tem ideia de como serão estes reajustes?

Ana Sammarco: Os contratos individuais têm reajustes fixados pela ANS. Nesse caso não acho que vamos ter uma grande alteração pelo fato de a gente estar sofrendo a pandemia ou não.

Nos contratos coletivos empresariais e aqueles por adesão, celebrados por meio de associações de classe, o reajuste é feito conforme tipo de contrato. E aí eu acredito que pra esse tipo de contrato os reajustes tendem a ser maiores por conta da pandemia.

De quanto em média?

Ana Sammarco: Eu ainda não saberia te dizer, só nos próximos meses.

O que vai acontecer no curto e médio prazo com a saúde suplementar no Brasil diante dessas demandas que estão acontecendo?

Ana Sammarco: Acredito que quebra e falência não vá acontecer, porque a própria ANS não permite que isso aconteça no caso das operadoras de planos de saúde. Para as operadoras funcionarem, elas precisam ter os ativos garantidores que permitam a saúde financeira da empresa durante a prestação do serviço.

Até pela legislação uma operadora não é passível de recuperação judicial ou falência. A própria ANS intervém na operadora e assume a gestão, até que ela se recupere financeiramente, ou então determina a extinção da operadora, até que os consumidores possam ser atendidos por uma outra que adquira a carteira. Mas, sem dúvida, é um setor que vai sofrer muito.

Por quê?

Ana Sammarco: Por um lado, as operadoras e os hospitais estão super atolados de trabalho e prestando um serviço muito relevante em relação à Covid-19, tendo gastos com isso, com a compra dos equipamentos de proteção individual e médicos.

Por outro lado, elas pararam de fazer as cirurgias eletivas, que eram as mais lucrativas para este tipo de prestador de serviço. O cenário para os próximos meses é de crise econômica para estas operadoras e hospitais, porque estão tendo um gasto muito alto e que dificilmente vão conseguir repassar na sua totalidade.

Teremos consumidores com mais dificuldades para acessar os planos depois da pandemia?

Ana Sammarco: O risco de não ser atendido ou de perder o plano não existe por conta da regulamentação da ANS.  Mas tem o risco de os leitos serem ocupados neste período pelo governo. Neste caso, o pagamento é feito com base na tabela SUS, que sem dúvida não ressarce todos os custos que são necessários para a prestação do serviço numa UTI, por exemplo, e correndo o risco de prestar um serviço para o estado que não vai ter certeza se vai ou quando será pago.

Além destas questões, quais são os aspectos legais relevantes neste momento para o setor?

Ana Sammarco: Tem uma parte muito importante que foi a possibilidade da regulação da telemedicina. Esse era um assunto que já vínhamos discutindo há bastante tempo e que o CFM estava relutando em regulamentar. Quase dois anos atrás, tivemos uma consulta pública do CFM e a publicação de uma regulamentação que acabou sendo revogada.

Agora, por conta da pandemia, a telemedicina foi regulamentada, com vigência restrita a esse período, mas eu acho que é uma renovação que veio para ficar e muitas operadoras de planos de saúde, hospitais e médicos já estão oferecendo este serviço.

Da mesma forma temos questões de prescrição médica eletrônica. Toda essa parte de saúde digital que antes não tínhamos tanto - acho que saúde era uma das principais barreiras para esta questão de inovação tecnológica. Percebemos que a pandemia permitiu a regulamentação destes assuntos e acho que isso veio para ficar.

Temos vários projetos nas câmaras, assembleias estaduais e Congresso Nacional ampliando os direitos aos consumidores. Mas é bom salientar que estas empresas são privadas. De alguma forma elas terão que ser ressarcidas por todo este custo adicional que está sendo transferido por conta de decisões judiciais e leis. Uma hora esta conta terá que chegar. Será dividida por todos os consumidores que estão pagando e que terão um reajuste muito maior do que deveria ter. Todo mundo vai acabar pagando esta conta.

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