Open Banking tende a mudar relação entre instituições do mercado financeiro

A advogada Cintia Falcão - Crédito Divulgação
A advogada Cintia Falcão - Crédito Divulgação
Para Cintia Falcão, proposta de norma do Banco Central permite autorregulação e traz desafios para implementação
Fecha de publicación: 04/12/2019

A abertura de dados no sistema financeiro, por meio da proposta de Open Banking apresentada pelo Banco Central, tende a mudar a forma como os integrantes do mercado se relacionam entre si, com potenciais ganhos para o consumidor de crédito, mas há desafios importantes à frente, afirma a advogada Cintia Falcão em entrevista ao LexLatin.

Especialista em relações de consumo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e em direito digital pelo Insper, Cintia Falcão possui ainda MBA em Finanças pelo Insper. Sócia da Ramos Falcão Consultoria e coordenadora de cursos na Future Law Innovation Center, ela atua há 18 anos com consultoria jurídica e regulatória no mercado financeiro. 

A partir desta experiência, ela cita entre os desafios o custo dos sistemas de implementação e sustentação para o tráfego de informações e a gestão das autorizações de consumidores para uso de seus dados. 

A proposta de um Sistema Financeiro Aberto (Open Banking), está em consulta pública no Banco Central até o fim de janeiro de 2020, em conjunto com um texto normatizando a "escrituração de duplicata escritural, sobre o sistema eletrônico de escrituração gerido por entidade autorizada a exercer essa atividade e sobre o registro e a negociação desses títulos de crédito escriturais" e outro que cria um sandbox regulatório e condições para a oferta de produtos neste ambiente.  

Leia abaixo a entrevista:

Como você vê as propostas colocadas em consulta pública pelo Banco Central sobre Open Banking?

A consulta pública é o 2º grande passo do regulador para implantação efetiva do Open Banking no Brasil, considerando como 1º passo a publicação do Comunicado 33.455 em abril/19 e tende a mudar completamente a forma como o mercado financeiro se relaciona entre si para que seja entreguem produtos e serviços mais adequados e em melhores condições ao cliente final, que será o maior beneficiado com o novo sistema.

O texto da consulta consolida as diretrizes do comunicado inicial, em especial os relacionados aos objetivos do Open Banking, que é propiciar melhores produtos e serviços financeiros à população, aumentar a eficiência do mercado de crédito e meios de pagamento e aumentar a inclusão e competição no setor financeiro, quebrando as barreiras para novos entrantes, como as fintechs.

O modelo de regulação proposto, dando ao mercado a liberdade de se autorregular através de uma convenção é bastante arrojado e traz muitos desafios, considerando os interesses heterogêneos dos participantes do sistema. Veja que, no primeiro momento, apenas os grandes bancos serão obrigados a participar do Open Banking (segmentados na regulação prudencial como S1 e S2, que hoje somam 12 instituições), mas haverá reciprocidade para aqueles que desejarem consultar os dados, ou seja, se consultar deverá compartilhar também.

Um dos maiores desafios, a meu ver, será o custeio dos sistemas de implementação e de sustentação, considerando a necessidade de uma infraestrutura que suporte o enorme tráfego de informações, garantindo a segurança e sigilo dos dados sensíveis e protegidos por sigilo que serão trocados.

Por fim, há que se estruturar uma forma inequívoca de fazer a gestão dos consentimentos fornecidos pelos clientes, já que o Open Banking está todo baseado a Lei de Proteção de Dados Pessoais e, necessariamente, dependerá do consentimento do dono da informação, ou seja, do cliente.

E sobre sandbox regulatório?

O Sandbox regulatório tende a amenizar os impactos trazidos pelo descompasso entre a inovação e a regulação. Há tempos nossas leis e regulamentações não conseguem acompanhar o ritmo exponencial das inovações e novas tecnologias, em especial no setor financeiro, que é altamente regulado. O novo sistema também permitirá inovações no sistema de pagamentos brasileiros – SPB.

E sempre que falamos em inovação e novas tecnologias, logo pensamos em produtos e serviços mais adequados, melhora de eficiência e queda dos custos – com repasse ao consumidor final, além da inclusão financeira, considerando que temos mais de 30% da população brasileira desbancarizada. 

O regulador deixou claro na exposição de motivos que a lista de projetos inovadores apresentadas que poderão ser submetidos ao Sandbox Regulatório não é exaustiva, ou seja, caberá avaliação de outros negócios inovadores dentro do Sistema Financeiro Nacional ou do Sistema de Pagamentos Brasileiro.  

Pessoas jurídicas de direito privado, prestadores de serviços notariais e de registro, empresas públicas e sociedades de economia mista poderão apresentar projetos inovadores para teste, por prazo determinado (1 ano, prorrogável por mais 1 ano).

Um ponto muito importante foi a proposta de obrigatoriedade de implementação de estrutura, incluindo criação de políticas, mesmo que simplificada, para gerenciamento de riscos operacionais – aquelas decorrentes de fraudes, práticas inadequadas, contingências, entre outros – além de mecanismos de proteção à prevenção a lavagem de dinheiro e combate ao terrorismo.

Para que o sistema funcione de forma mais efetiva, necessário que o Banco Central possa trabalhar em conjunto com a CVM e a Susep quando o projeto também envolver assuntos de competência daqueles reguladores, caso contrário, o negócio inovador poderá encontrar problemas no mercado e não entregar ao consumidor final o produto ou serviço que se espera dele.

Os prazos para submissão dos projetos inovadores e para início do 1º ciclo estão bem definidos e mostram a urgência que o regulador tem em desenvolver um ambiente mais competitivo.

E a consulta sobre duplicata escritural?

A duplicata, até então, foi regulada por uma lei de 1968, quando a circulação de bens e a prestação de serviços ocorria em pequenas distâncias e a cartularidade do documento fazia sentido – até pela falta de tecnologia. As grandes distâncias tornaram ineficiente esse modelo e há alguns anos a duplicata foi substituída por listagem de créditos, os chamados borderôs, que enviados às instituições financeiras lastreiam a emissão de boletos bancários para representação das duplicatas, permitindo sua cobrança.

Não tenho dúvidas de que qualquer modernização que venha a acontecer será um grande remédio para tirar da UTI esse título de crédito e reaquecer a economia dos empresários que podem se utilizar dessa forma de crédito para capital de giro, já que amplia – indiretamente, dada a facilidade que o novo modelo impõe - o rol de garantias.

Os sistemas de escrituração, autorizados pelo Banco Central, darão a segurança necessária para emissão desse título, bem como todos os controles de emissão, aceite, recusa e pagamento, sendo esse último necessariamente dentro do Sistema de Pagamento Brasileiro - SPB.

E em breve teremos uma nova consulta sobre desmaterialização de título de crédito, já que aguardamos a conversão em lei da Medida Provisória 897/19, que trata da Cédula de Crédito Bancário, título amplamente utilizado pelo mercado financeiro nas operações de crédito.
 

Que impactos podemos ver no mercado a partir da regulamentação da proposta de open banking? O que é preciso alterar na proposta do BC e por quê?

O Open Banking trará muitos impactos, já que torna obrigatório o compartilhamento de informações que, antes, “eram de propriedade” dos bancos, reduzindo assimetrias de informação hoje existentes no mercado. 

Os novos entrantes trarão uma concorrência saudável, incentivarão os grandes a destinarem mais investimentos em inovações, o que acarretará uma maior oferta de novos produtos e serviços, com a consequente melhora na experiência do cliente.

Um dos pontos mais importantes, na minha opinião, é a possibilidade de uma maior inclusão e melhora da educação financeira da população que, através de agregadores de informações, terá acesso mais simples e claro aos produtos e serviços financeiros, customizados às suas necessidades.

Com relação ao que precisa ser alterado na proposta, ainda é cedo para dizer, pois a publicação é recente e há necessidade de debate com todos os envolvidos na nova sistemática para que, juntos, cheguem a um denominador comum: a melhor experiência para o cliente.

Que aspectos da prática de direito bancário devem se modificar para trabalhar com um cliente em um case de sandbox regulatório? Quais os principais desafios?

Aqui, entendo que um grande desafio será superar as barreiras de comunicação com os clientes e com os órgãos de proteção ao consumidor, seja diante da obrigação de informar de forma clara de que se trata de produto ou serviço oferecido em ambiente de Sandbox Regulatório, o que precede da necessidade de explicar o que é um Sandbox Regulatório.

Outro desafio, ainda maior, é garantir que os advogados e órgãos de proteção ao consumidor estejam atualizados com as inovações e abertos a experimentar esse ambiente totalmente diferente de tudo o que já experimentamos até agora, em especial com a questão relacionada as dispensas regulatórias que o modelo traz e o futuro dos produtos oferecidos através dele, a fim de evitar questionamentos baseados nas normas do mercado comum.  

As propostas fazem parte da agenda BC# de promoção da concorrência no mercado financeiro. Como vê a implementação da agenda neste ano, seus principais aspectos e o que esperar para 2020?

Desde 2016, com o lançamento da agenda BC+, ficou nítido que o Banco Central debruçaria em melhorias no mercado financeiro, buscando a expansão do crédito de forma mais barata, com maior inclusão e melhora da educação financeira.

Em 2019, com a nova gestão e alterações realizadas na agenda, ficou mais claro o foco concorrencial, com redução de barreiras de entrada na busca da maior eficiência no sistema financeiro através, principalmente, da tecnologia. Tanto que em junho foi criado um departamento específico para fomentar a concorrência e a competição em todos os processos de intermediação financeira, o DECEM - Departamento de Competição e de Estrutura do Mercado Financeiro.

Para 2020 acredito muito em uma maior concessão de crédito, com queda dos juros e das tarifas e uma melhora na experiência do cliente. Outro grande foco para 2020 é o da educação financeira, que também foi objeto do Comunicado 34.201/19, o qual determinou que as instituições financeiras assumam responsabilidade pela promoção de ações efetivas de educação financeira para que seus clientes gerenciem adequadamente seus recursos, sendo que tais atividades serão acompanhadas pelo regulador. 

Ao mesmo tempo, temos uma proposta da mesma autoridade tabelando a cobrança de juros em um produto oferecido pelo mercado financeiro. Como esperar concorrência quando o governo define o preço do produto?

Eu vi a imposição do teto para os juros cobrados no cheque especial como um ato isolado e prudencial, totalmente alinhado com a Agenda BC#, com claros benefícios à população hipossuficiente.

Isto porque dados econômicos mostram que a população de baixa renda, com baixa escolaridade e sem acesso a educação financeira básica se utilizam do cheque especial, mesmo sendo o crédito com maior juro oferecido atualmente no mercado. Esse fenômeno decorre da falta de acesso a créditos mais baratos, como o crédito consignado em folha de pagamento, já que boa parte está desempregada ou na economia informal ou, ainda, empréstimos pessoais com garantias, como de veículos ou imóveis, os quais oferecem juros muito mais atrativos em decorrência da garantia oferecida. 

Se você acessar o site do Banco Central poderá verificar que dos 29 bancos que ofertam cheque especial a seus clientes, apenas 9 oferecem juros mensais abaixo de 8% ao mês. Esses valores não fazem sentido frente a uma inflação de pouco mais de 3% ao ano, mesmo se considerarmos todos os custos que compõem o spread bancário.

Mais do que limitar os juros, entendo que será uma ótima oportunidade de revisão das políticas de concessão de crédito para essa modalidade.
 

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