“As pessoas olhavam pra mim e não acreditavam que eu era um advogado negro representando um grande escritório”

"O momento requer um posicionamento e engajamento jurídico, político"/Unplash
"O momento requer um posicionamento e engajamento jurídico, político"/Unplash
Como o racismo é visto e trabalhado nas maiores firmas brasileiras.
Fecha de publicación: 19/06/2020
Etiquetas: Brasil

Na última entrevista da série sobre a questão racial no Brasil conversamos com dois representantes do comitê de diversidade de um dos grandes escritórios brasileiros: o Demarest Advogados.

Eles são Robson de Oliveira, integrante do Grupo D Raízes e advogado da área imobiliária, e Carlo Verona, membro do Grupo D Raízes e sócio de compliance.

Recentemente, o Demarest, que tem 700 colaboradores, foi reconhecido pelo Guia Exame de Diversidade 2020 como uma das 52 empresas mais diversas do Brasil, que atuam com objetivo de proporcionar um ambiente profissional mais plural e inclusivo.

A seguir a entrevista.

Como os grandes escritórios do país veem o baixo número de profissionais negros nos quadros de funcionários e advogados?

Robson de Oliveira: Muitos dos grandes escritórios ainda não tinham se atentado para esta questão. Esse despertar começou a ocorrer tem aproximadamente dois anos. Foi quando eles se uniram e criaram a aliança jurídica pela equidade racial, junto com as oito maiores bancas de advocacia do país e também o Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), que criou o projeto “Incluir Direito”. Nós, do Demarest, fazemos parte deste projeto.

O que muda a partir dessa aliança?

Robson de Oliveira: Começa a ter uma discussão sobre porque temos menos de 1% de profissionais negros nos nossos escritórios. A partir daí, começou uma série de estudos para identificar quais eram estes pontos. O primeiro ponto é a educação de base, que infelizmente não proporciona que o profissional negro possa competir da mesma forma que uma pessoa branca de elite, que teve todas as oportunidades da vida.

Robson de Oliveira

A partir daí, não só nosso escritório, como todos os outros, começaram a ter um olhar diferenciado. No Demarest começamos a criar um movimento para conscientizar as pessoas do quanto é importante a diversidade e o quanto ela gera riqueza. Assim, começamos a evoluir na desconstrução de alguns vieses inconscientes e ter um olhar mais inclusivo para poder trazer profissionais negros.

Há dois ou três anos tínhamos poucos profissionais negros. Hoje são poucos ainda, mas temos mais porque foi feito um trabalho de desconstrução de alguns paradigmas para que esses profissionais pudessem ingressar nestas instituições.

O que os escritórios de advocacia precisam fazer e entender para que os advogados negros possam ocupar mais lugares dentro da advocacia de elite no pais? 

Robson de Oliveira: As pessoas negras, em sua grande maioria, tem uma vulnerabilidade social e financeira muito maior do que as pessoas brancas. E aí, como essas pessoas veem que nos espaços de elite e de poder só tem pessoas brancas, elas não se sentem acolhidas de estar nesses espaços. Inconscientemente ou até conscientemente, a primeira coisa que vem à cabeça delas é tentar concurso público.

Por conta de toda essa ancestralidade, das agressões que o negro sofre todos os dias, faz com ele entenda de alguma forma que não poderia estar nesse lugar. E, principalmente, o branco deixa claro que não quer ele ocupe este espaço.

Esse olhar tem mudado, mas ainda precisa mudar muito para que a gente chegue num lugar ideal. Hoje, a partir do momento em que criamos políticas afirmativas e começamos a disseminar estas informações - que queremos contratar profissionais negros, que temos interesse nestas contratações - temos recebido muito mais currículos do que antes.

Que tipos de preconceitos as pessoas negras enfrentam no mercado de trabalho no mundo jurídico?

Robson de Oliveira: Primeiro é a questão da classe social. Eu diria que os profissionais do direito, principalmente em se tratando de grandes escritórios, são pessoas que vêm de uma classe social mais abastada, já têm um histórico familiar em que às vezes o pai já estava no mundo do direito, ou que a pessoa é diretora de empresas.

Quando tem um profissional negro que conseguiu concluir a faculdade por meio de uma bolsa ou por meio de cotas, ele já chega no mercado em desvantagem total e consequentemente não consegue ficar nestes espaços, porque não teve sequer o treinamento necessário para fazer, por exemplo, uma captação de clientes.

Para o profissional negro estar hoje no mercado geral jurídico é necessário que se tenha um cuidado, entender a história daquele profissional e não pensar nele só a curto e médio prazo. É preciso pensar no longo prazo, o quanto ele vai agregar para a instituição.

E isso só vai mudar com essa leva de profissionais que está chegando agora, conseguindo se formar e concluir os cursos. Acredito que as próximas gerações já tenham um novo know-how, uma bagagem muito maior, para que estejam mais preparadas para o mercado de trabalho.

Não é que o profissional negro não esteja preparado - muito pelo contrário - se você pegar todo o histórico profissional de uma pessoa negra que entra no mercado de trabalho e que consegue concluir uma faculdade, se você comparar com uma pessoa branca, de elite, que teve todas as oportunidades na vida, se você puder ver a linha da trajetória de um e de outro, é muito mais fácil focar no profissional negro. Se ele, passando por todas as dificuldades, conseguiu se formar e estar neste espaço, imagine se ele tivesse todas as oportunidades, onde estaria hoje?

Como advogado e como cidadão brasileiro, que tipo de preconceito você já sofreu na carreira e no dia a dia?

Robson de Oliveira: O negro sofre preconceito desde o dia que ele nasce, infelizmente, porque a gente ainda vive num país racista e que não reconhece esse racismo.

Estou no escritório há mais de 12 anos. No começo da minha trajetória, as pessoas olhavam para mim e não acreditavam que eu era um advogado negro representando um grande escritório. Eu chegava na reunião, abria a porta e falava: boa tarde. Aí as pessoas diziam: boa tarde, estou esperando o Dr. Robson. Ah, tá bom, prazer, sou Dr. Robson. Na hora, as pessoas olhavam com aquela cara de espanto. Você é o Robson? E isso não foi uma, nem duas nem três vezes.

Olhavam para você e não acreditavam que você era advogado, por ser negro, é isso?

Robson de Oliveira: Exatamente. O primeiro contato que geralmente você tem com o cliente, geralmente quando você ainda não é um sócio, não está numa categoria mais elevada na cadeia da instituição, você tem contato por e-mail, por telefone, mas não tem contato visual. Provavelmente no futuro isso vai mudar, por causa das videoconferências. As pessoas às vezes sabiam quem era o Robson, enxergavam ele como excelente profissional, mas nunca visualmente imaginavam que ele seria um profissional negro.

Quando a pessoa já tinha contato comigo, sabendo que eu era profissional negro, ela já sabia de certa forma meu trabalho técnico. Quando a pessoa não tinha tido um primeiro contato comigo, sem saber qual era a qualidade do meu trabalho técnico, olhava para mim e falava:  esse é o cara que vai cuidar do meu assunto, esse é o advogado que vai cuidar do meu problema? Já olhava desacreditando mesmo.

Já pediram para trocar de advogado?

Robson de Oliveira: Se pediram, não falaram para mim. Mas eu tive a sorte de trabalhar com pessoas que têm um olhar avançado em comparação a outros. Se tivessem pedido, provavelmente estas pessoas teriam se posicionado. Ele vai fazer, está lá e eu confio nele.

O profissional negro muitas vezes precisa de alguém, de um aliado, que nesse tipo de situação se posicione e diga: é ele quem vai fazer, porque tem capacidade para isso. Porque se não tivesse capacidade nem aqui estaria. Mas eu tive muita sorte, porque as pessoas que estavam acima de mim me ratificavam perante estes olhares racistas e preconceituosos. Mas este desconforto já aconteceu muitas vezes.

Carlo, você também é responsável pelo D Raízes do escritório, como analisa essa questão do racismo no mundo jurídico?

Carlo Verona: É importante colocar estes relatos do Robson numa linha do tempo. Se você traçar uma trajetória - eu e ele temos quase a mesma idade e começamos a advogar neste tipo de escritório de direito empresarial, como o Demarest, no final da década de 1990 e começo de 2000. Esses episódios ajudam a demonstrar a evolução. Primeiro, eu não sou negro, sou branco, o motivo de eu dividir com o Robson a coordenação do D Raízes é de buscar a legitimidade do movimento.  A iniciativa não se limita só ao corpo técnico do escritório, também inclui profissionais das áreas administrativas, uma legitimidade ao longo do escritório, que é uma empresa de 700 pessoas, da nossa política de inclusão, de equidade, de recrutamento, treinamento e desenvolvimento e ascensão de profissionais negros no mercado.

Carlo Verona

O Robson colocou uma questão, você tem aí uma questão da competitividade do profissional negro geralmente de origem mais carente. Existem exceções, existe uma segunda geração de filhos de afrodescendentes já bem sucedidos, que consegue competir no mercado – fala uma segunda língua, tem uma boa base educacional para galgar as melhores faculdades públicas ou privadas, têm condições de pagar por uma faculdade privada de primeira linha, conseguindo até uma faculdade pública, uma complementação de ensino de um tutor ou professor particular ou uma coisa assim. Muitos têm experiência fora do país, de vivência, de intercâmbio, de viagens, de trocas culturais. Mas são exceções, o que mostra o retrato do racismo que ainda permeia nossa sociedade.

Lá atrás, nos anos 1990, os casos de racismo acintoso e ofensivo já eram raros, mas aconteciam isoladamente. Esse racismo a que o Robson faz referência é muito verdadeiro, então num mundo que não era tão digital ainda e que as pessoas não tinham redes sociais, ter um profissional de alto rendimento reconhecido e respeitado pelo setor, reconhecido pelos seus pares, não identificado e depois apresentado pessoalmente numa reunião presencial em algumas situações, causava um espanto e denotava a questão da invisibilidade.

Nós brancos não percebemos o tanto que a gente vive numa bolha. Isso é assim nas empresas, é assim nos escritórios, nos shoppings, no varejo e nas atividades culturais.

Robson, que outros casos de preconceito você sofreu?

Robson de Oliveira:  Qualquer pessoa negra sofre preconceito todos os dias. O pior preconceito que posso sofrer é o da invisibilidade.  Você quer colocar sua voz, suas ideias, por mais que elas sejam boas, as pessoas não querem dar ouvidos porque acham que você não tem legitimidade para falar. Acham que você está ali por uma questão só de cotas, só para ser um figurante.

Obviamente que hoje, na posição que estou, isto já não acontece com tanta frequência, mas quando você está num grupo onde só tem pessoas brancas, em que elas muitas vezes não te conhecem, você tem que fazer um esforço muito maior para ser ouvido do que uma pessoa branca normalmente faria.

Esse esforço maior que você diz, quer dizer que tem de fazer melhor que outras pessoas para superar esse preconceito?

Robson de Oliveira: Essas agressões que são feitas com as pessoas negras desestabilizam e às vezes, tiram a pessoa do eixo. Eu tenho que provar muito mais que eu sei do que outras pessoas. Mesmo que eu saiba a mesma coisa que uma pessoa branca, o olhar para o negro é mais crítico.

Nas últimas semanas a sociedade começou a discutir a questão racial. Temos protestos nos EUA, no Brasil e no mundo. O slogan #blacklivesmatter, ou no caso brasileiro #vidasnegrasimportam,  está em todos os lugares. Parece que a questão não é só algo exigido pelos negros, mas por muitos brancos que querem e lutam por uma sociedade mais justa. Como você vê essa discussão neste momento?

Robson de Oliveira: Acho positiva essa discussão. Se você parar para pensar, a cada 23 minutos um jovem negro morre vítima de violência (os números são do Mapa da Violência no Brasil) e que infelizmente até hoje a gente ainda não teve este tipo de mobilização aqui no país.

Hoje, conseguimos ter o apoio de toda a sociedade, principalmente da mídia, para poder difundir um pouco mais essa questão e abrir os olhos da nossa sociedade, mas é algo que existe há mais de 130 anos e que até hoje não teve uma solução. Vejo com um olhar de esperança, mas temos que torcer para que essas manifestações não fiquem só neste campo. Que de fato, a partir de agora, consigamos ter ações concretas e efetivas para combater o racismo em todas as suas estruturas. É necessário que toda sociedade se una e faça um pacto social no combate contra o racismo.

Você acha que esse olhar preconceituoso das pessoas brancas é um olhar que vai perdurar nas próximas décadas? 

Robson de Oliveira: Já aconteceu do manobrista ir pegar meu carro no estacionamento e perguntar se o carro era meu, como se eu não pudesse ter o carro que tenho. Assim como eu também estar parado na porta da casa da minha mãe e a polícia me abordar de forma agressiva, por achar que eu estava fazendo algo errado dentro do meu carro.

Esse olhar está longe de ser mudado, mas eu tenho esperança por conta da repercussão que tem acontecido nas últimas semanas na mídia em decorrência das manifestações que tem ocorrido nos EUA e no mundo. Que as pessoas comecem de fato a ter um olhar diferenciado. E que elas desconstruam estes estereótipos do sistema racista e comecem a enxergar a pessoa.

Eu hoje tenho que tomar alguns cuidados. Se eu estiver atrasado e quiser correr, se tiver algum policial e se eu estiver com uma roupa que não é um padrão definido pela sociedade, posso ser parado ou alvejado por um tiro.

Há dez anos, tive que ir para o Piauí a trabalho. Estava com uma colega minha e tínhamos que fazer conexão em Brasília. Percebemos que tínhamos umas duas horas, aí fomos para a livraria. De repente, percebemos que não tínhamos tanto tempo por causa do fuso horário que era diferente.

Saímos correndo pelo aeroporto de Brasília. Ela na frente e um negão correndo atrás dela dentro do aeroporto. Imagina o que aconteceu? Ninguém abordou ela porque estava correndo, quem foi abordado fui eu. Porque, infelizmente, quando as pessoas veem uma situação um pouco diferenciada, quando olham para o profissional negro dizem: alguma coisa está fazendo de errado. São criadas concepções, por conta de estereótipos racistas impostos pela sociedade.

Outra vez quando estava com um colega de trabalho no aeroporto. Quando passei pelo raio x, o segurança perguntou pra mim: você é o segurança dele? Eu disse: não entendi sua pergunta. Quando isso acontece uma, duas, três vezes, você releva.  Quando essa agressões acontecem todos os dias, chega uma hora que você explode.

Carlo, qual é a responsabilidade de um escritório do tamanho do Demarest para começar a mudar esta realidade, ainda mais num momento em que isso está sendo discutido em todo mundo?

Carlo Verona:  O escritório pode colaborar e ter um papel transformador importante por dois caminhos. Primeiro, por ser um escritório de advocacia. Como advogados, nós temos compromisso ético com a Justiça, com a defesa de garantias constitucionais e liberdades individuais. Segundo, além de todas as atividades já desenvolvidas, tanto recrutamento, seleção e integração e promoção de jovens profissionais negros no corpo jurídico e administrativo, também entendemos que o momento requer um posicionamento e engajamento jurídico, político, que vai além das nossas iniciativas de pro bono.

Temos hoje 17% de pessoas negras no nosso quadro de colaboradores. Como empresa responsável pela vida dessas pessoas, suas famílias e as comunidades que as cercam nas três capitais do Brasil em que nós temos escritórios – São Paulo, Rio de janeiro e Brasília – a gente entende que pode fazer muito mais, conscientizando as pessoas que não são tão afeitas ao tema.

Eu quando comecei a tratar desse assunto de forma institucional e organizada não tinha ideia da profundidade do debate, do alcance que ele tem em relação inclusive às origens da sociedade brasileira. E podemos fazer mais.

Temos condição de promover um trabalho de mentoria, de preparação, de qualificação técnica e de outros soft skills – domínio de uma língua estrangeira, técnicas de negociação, de persuasão para ter condições de atuar na prática de direito empresarial que nós executamos para os nossos clientes. Este é um mundo que estamos tentando montar.

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