Propostas de reforma do Estado são bem vindas, mas contêm inconstitucionalidades

Siqueira Castro - Crédito Divulgação
Siqueira Castro - Crédito Divulgação
Carlos Roberto Siqueira Castro analisa pacote de mudanças constitucionais
Fecha de publicación: 21/11/2019

Sócio-fundador de um dos maiores escritórios de advocacia do país, Carlos Roberto Siqueira Castro avalia o pacote de mudanças constitucionais para reforma do Estado lançado pelo governo de Jair Bolsonaro como uma peça bem-vinda na direção de reduzir desperdício de gastos públicos e aperfeiçoar a atuação do poder público no Brasil.

Graduado em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ele possui L.L.M. Master of Law pela University of Michigan e doutorado em direito público pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. 

Siqueira Castro ressalta a criação do Conselho Fiscal da República, extinção de fundos, padronização de conceitos por tribunais de contas e a revisão dos benefícios fiscais, mas aponta dificuldades para aprovar uma redução automática de municípios e a imposição de limites orçamentários nas decisões judiciais.

Leia abaixo sua conversa com o LexLatin:

Como o sr. avalia o pacote de reforma do Estado proposto pelo governo?

O ministro Paulo Guedes, que está comandando toda essa agenda reformista, levou ao Senado Federal, com a presença do presidente da República, as três PECs: 186, 187 e 188. O objetivo maior, nas grandes linhas, é exatamente a redução dos gastos públicos. Para se ter uma ideia, o Brasil tem hoje uma dívida pública acumulada de 5,6 trilhões de reais. Estamos falando de cerca de 79% do Produto Interno Bruto, é um peso enorme para o Estado e a sociedade brasileira. Em 2006 era de apenas 55%, hoje são quase 80%. Teve um crescimento vertiginoso. As três PECs pretendem criar um estado emergencial que autoriza os três níveis de governo --União, Estados e municípios-- a adotar medidas drásticas para reduzir as despesas públicas. Procura fortalecer autonomia de Estados e municípios e extinguir fundos obrigatórios. Temos cerca de 282 fundos que engessam dinheiros públicos e que não podem sequer serem direcionados para aplicações no campo da saúde, da educação, e da ciência e tecnologia. 

No conjunto, acredito que as três PECs tratam de temas muito sensíveis, alguns impopulares --quando se cuida de redução de jornada de servidor público e proporcionalmente da remuneração deles --há exceções, como a magistratura, ministério público, polícias militares. Mas, não deixa de ser impopular porque mexe com jornada de trabalho e remuneração de servidor público. Sobretudo de áreas sensíveis, pode reduzir em ate 25% a jornada de trabalho e remuneração de professoras da rede pública ou de enfermeiros e médicos, o estará desfalcando a população em 25% destes serviços, que são reconhecidamente já bastante precários.

Por outro lado, há aspectos que reputo de bastante avanço institucional na PEC do pacto federativo, na PEC da emergência fiscal e na extinção dos fundos. 

No pacto federativo cria-se o Conselho Fiscal da República, integrado por representantes de todos os Poderes, os presidentes da República, da Câmara, do Senado, e do Supremo Tribunal Federal e também Tribunal de Contas da União, prefeitos e governadores, que vão avaliar a sustentabilidade financeira da Federação. 

Há norma interessante para uniformizar conceitos orçamentários e financeiros, para evitar divergência entre tribunais de contas de Estados e municípios. Aplicação de créditos, assunção de obrigações, tudo isso vai objeto de orientação normativa pelo TCU. 

Há uma norma interessante que obriga previsão de recursos para fluxo das obras públicas. Hoje não são iniciadas ou são iniciadas e paralisadas, o que é muito ruim. Há um acervo de obras que estão paralisadas porque não há fluxo financeiro, uma das PECs já prevê a previsão de recurso, para que não falte.

As mudanças propostas seguem a filosofia de reduzir o Estado para que o setor privado assuma funções hoje desempenhadas pelo poder público… 

A filosofia de toda a reforma é mais Brasil, menos Brasília. Objetiva dar maior autonomia a Estados e municípios. Há normas que são muito sensíveis e de duvidosa constitucionalidade. Há uma norma que proíbe decisões judiciais que criam despesas, que só terão eficácia quando houver previsão no orçamento. Digo a você, com a minha experiência: dificilmente um juiz vai deixar de cumprir, de reconhecer e conceder direito social, como no plano da saúde, direito a medicamento, cirurgia, porque não está previsto no orçamento. Isso é um problema de executores orçamentários. Isso é uma norma a meu ver de difícil tramitação no congresso porque intercede com a autonomia do Poder Judiciário.

Há normas financeiras interessantíssimas. Sobre isenções tributárias, estabelece que os benefícios sejam reavaliados a cada quatro anos, e que, no âmbito da União, a partir de 2026, não poderá ultrapassar 2% do PIB nacional. O que é muito bom, não podemos ter isenções que consomem parte significativa do orçamento no governo. No governo da ex-presidente Dilma houve política de concessão de benefícios setoriais que criou dificuldades orçamentárias muito grandes e não trouxeram real benefício para o país, não aumentaram o nível de emprego para aliviar a tensão social. São benefícios que tiveram apropriação privada e, sem, maior repercussão política para o conjunto da sociedade. 

Como o sr. vê a redução do Estado? 

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Considero que a redução do Estado deva objetivar o lado obeso do Estado. Essa obesidade inútil do Estado brasileiro. Os 280 fundos, por exemplo, com dinheiro carimbado que não tem a menor relevância, que poderiam ser usados para diminuição da dívida pública, que é a proposta da emenda. A extinção dos fundos públicos, com o dinheiro indo para resgatar a dívida pública, que é paga pela nação inteira. Pagamos isso com a diminuição de investimento, com juros elevados. O Estado obeso deve ser reduzido. 

Mas a redução deve ser seletiva. O Brasil tem déficit muito grande de ciência e tecnologia, estamos entrando na geração 5G no mundo inteiro. Acabei de retornar do Japão e da Coreia, fui representar a Ordem dos Advogados do Brasil na conferência da IBA. Vi o que a tecnologia 5G e a organização social daquelas sociedades, modernizaram o país. Nós gastamos muito e gastamos mal no Brasil, tem que fazer redução seletiva do Estado, prestigiando as áreas que aumentem a competitividade, o aperfeiçoamento do capital humano e coloque o Estado em condições de ser agente propulsor da economia, mas sabendo que quem gera riqueza não é o Estado, mas o capital privado. O Estado pode estabelecer políticas públicas de inclusão social e diretrizes corretas ou equivocadas. O que faz os investimentos é o capital nacional e estrangeiro desde que tenhamos segurança jurídica e políticas corretas de atração do capital estrangeiro. 

Vejam o exemplo das rodadas do pré-sal, todas as dez grandes petroleiras estrangeiras refugaram, a Petrobras, quase que num processo de reestatização, arrematou sozinha as duas bacias mais importantes. Em seguida, dois dias depois outro leilão de privatização de prospecção que também foi um fiasco. Porque o governo, numa necessidade de fazer caixa, numa estratégia financeira para pagar compromissos e o déficit público deste ano, em torno de 136 bilhões de reais, utilizou os leilões do regime de partilha não porque fosse estratégia para atrair investimentos, renda e tecnologia, mas para pagar suas contas. Um planejamento ineficiente e o próprio regime de partilha afastaram muitos investidores, além do bônus de participação muito elevado e incertezas dos investidores sobre as indenizações a serem pagas à Petrobras. O ministro Paulo Guedes admitiu que houve afogadilho e falta de planejamento estratégico. Não temos que ser diletantes, temos que atuar com muita competência, porque há excesso de liquidez no mundo, tem investimentos em todos os cantos do planeta. Quando houver segurança jurídica e oportunidades concretas e competitivas, retorna o investimento.

Como o sr. avalia a Lei de Liberdade Econômica e os novos princípios para a administração pública previstos ali? 

Acho que avançamos ao inverter o princípio. O que prevalecia antes era que o investidor é industrial e o comerciante que quer se estabelecer tinha que, para obter licenciamento – não falo de um só, mas de vários, licença de atividade do município, de construir, pelo município, ambientais nos três níveis de governo e assim por diante tinha que provar que estava correto. O investidor ficava nas mãos do administrador público e este não tinha prazo para decidir. Uma licença ambiental poderia demorar anos para ser concedida no Brasil. Todos ficavam de mãos engessadas nas mãos do administrador público que um dia vai dar atenção ao seu processo e liberar ou não o seu investimento. A Lei da Liberdade Econômica avançou muito quando deu prazo para o administrador público dar a licença e esgotado o prazo prevalece a presunção de que o empresário atendeu as exigências legais e o licenciamento está mantido. Nós que advogamos para empresários de todos os tamanhos e setores da economia, ávidos para fazer investimentos, realizar seus negócios, ficavam reféns da inépcia governamental. Essa lei deu um enfrentamento muito corajoso, muito audacioso, que vai alterar a ótica do controle da legalidade no Brasil. Presume-se que o empresário que requereu licença atendeu os requisitos legais. Se não tiver atendido, não cabe a ele provar, mas cabe à administração pública demonstrar que não houve atendimento dos requisitos legais.

O sr. mencionou inconstitucionalidade de alguns pontos das PECs, como a previsão de orçamento para sentenças terem efetividade. Poderia citar outro?

Um outro ponto que acho de duvidosa constitucionalidade, tem a ver com o fortalecimento da federação. A PEC diz que o município com menos de 5 mil habitantes, e arrecadação própria menor que 10% da receita total vai ser absorvido pelo município vizinho. Tivemos até, como se verifica na obra do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, A Invenção da Política no Brasil, após 1988 grande abuso da indústria de municipalização no Brasil. Tínhamos 4 mil e poucos em 1988, hoje temos 5.570 municípios, 1.253 com menos de 5 mil habitantes, o que representa 22,5% do total de municípios existentes. Esses municípios têm renda própria para desempenhar suas funções na Federação. Creio que não vivem de mesada do Fundo de Participação dos Municípios, a grande maioria representa um artificialismo para atender interesses eleitoreiros espúrios, para ter prefeito e gabinete, ter uma câmara com no mínimo 9 vereadores –a Constituição diz que até 15 mil  habitantes tem que ter não menos que nove vereadores –, cada um com seu gabinete, assessoria, quando não motorista e tudo mais. Isso é desperdício de dinheiro, os brasileiros de todos os quadrantes ficam pagando através do FPM, uma verdadeira Hollywood do serviço público. É ponderável haver fusão dos municípios. Mas isso tem problema de constitucionalidade, que estabelece requisitos para criação de municípios, lei estadual criando entes municipais. E estes municípios já existentes cumpriram a normativa constitucional. Vai ter um grande embate para saber se vamos manter os municípios. A discussão vai ser muito grande, qualquer que seja o resultado, pode levar a uma judicialização da questão perante o Supremo Tribunal Federal. 

As mudanças não deveriam privilegiar uma redução da judicialização?

Nada no Brasil é simples. O Tom Jobim já dizia que o Brasil não é para principiantes. O que eu diria é que primeiro a Constituição de 1988 é democrática, fui assessor da Constituinte, vivi aquele processo. Foi um avanço em termos de conquista democrática. Mas é muito extensiva, muitas normas constitucionais que ficariam melhor alocadas na legislação ordinária. Mas, a Constituinte foi um momento muito retumbante, depois de 20 anos de ditadura militar. Uma constituição que tem hoje 250 artigos na parte permanente e mais 114 artigos nos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias. Mais de 100 emendas à constituição de 1988 já forma promulgadas, isso faz com que o cardápio de matérias constitucionais seja muito extenso. Por isso que o Paulo Guedes apresentou 3 PECs. São temas constitucionais, mas não precisariam ser. A questão de fundos poderia estar na legislação ordinária, poderia votar um projeto de lei ordinária, mas no Brasil há dificuldades constitucionais para tanto.  

O que temos que fazer? Será preciso enviar PEC ao Congresso Nacional, votação em dois turnos, com três quintos dos membros, são 308 votos na Câmara. 

O governo, o ministro Paulo Guedes apresentou as 3 PECs no Senado que estão subscritas pelos senadores que integram a base de apoio do governo e vai tramitar primeiro pelo Senado, uma casa naturalmente mais tranquila em termos de dissenso politico. A Câmara é muito sensível, muito áspera. Começou bem, vai ter que ter muita negociação, mas isso é parte do jogo democrático. Não me preocupa a negociação, desde que as pessoas tenham competência e espírito público. O Congresso Nacional é uma casa de debate, é diferente das funções do Presidente, de governador, que decidem monocraticamente. No parlamento há sempre que negociar, como em qualquer lugar do mundo. Isso faz parte da competência política governativa. O ministro Paulo Guedes tem sido um bom interlocutor, está suprindo omissões e dificuldades políticas do próprio Presidente da República. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, também tem desempenhado um trabalho relevantíssimo, suprindo deficiências do Poder Executivo. 

Acho que as emendas representam, com as restrições das dificuldades constitucionais, um avanço do Estado brasileiro, abre perspectiva de confiança para o setor privado, para investidores nacionais e estrangeiros, que desejam um bom cenário de negócio, que ofereça segurança jurídica e oportunidades. O Brasil ainda não concluiu o ciclo dos países emergentes, por exemplo, é um cenário muito atraente para investidores estrangeiros. No setor de petróleo temos petroleiras chinesas, da Malásia, da Rússia e da Índia, se apresentando no Brasil. Isso vai acontecer como aconteceu com os aeroportos, no round anterior de privatização. A Fraport, alemã que foi assessorada pelo nosso escritório, ganhou Porto Alegre e Fortaleza. Teve empresa da França que ganhou aeroporto da Bahia, teve a AENA, da Espanha, que arrematou aeroportos no Nordeste e também no setor de rodovias, ferrovias, telefonia, e infraestrutura em geral. O Brasil é um centro de atração de investimentos. O investidor não quer ser surpreendido com marcos regulatórios inopinados, que não estavam na sua previsão de investimentos. Essas propostas do ministro Paulo Guedes, nas suas grandes linhas, são muito bem-vindas para estimular o interesse dos investidores e destravar a economia e a oportunidade de negócios. 

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