"Os maiores inimigos do governo, hoje, são os que defendem a Constituição"

Sessão de abertura do ano legislativo do STF/ Nelsom JR/STF
Sessão de abertura do ano legislativo do STF/ Nelsom JR/STF
Para professor Christian Edward Cyril Lynch, STF entendeu que precisa agir para não virar tribunal de chancela.
Fecha de publicación: 04/06/2020
Etiquetas: stf

Em um momento de crise entre os poderes da República, espera-se que os guardiões da Constituição tomem as rédeas da situação. Como o Congresso Nacional tem uma articulação complicada e morosa, coube ao Supremo Tribunal Federal enfrentar os ataques do governo de Jair Bolsonaro e de seus apoiadores mais radicais.

A análise é do professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), Christian Edward Cyril Lynch. Um dos mais respeitados pesquisadores da história do poder Judiciário no país, mestre em direito e doutor em ciência política, ele estuda há mais de 20 anos a história do pensamento político e constitucional brasileiro. Hoje é presidente do Instituto Brasileiro de História do Direito (IBHD).

Depois de uma década de profunda influência das decisões do poder Judiciário nas questões mais importantes da vida pública – foi o Supremo quem julgou o mensalão, chancelou o impeachment de Dilma Rousseff, colocou e depois tirou Lula da cadeia, para citar alguns eventos -  o momento, aponta Lynch, é de autodefesa. 

Christian Lynch

O professor, crítico do "ativismo judiciário", afirma que os ministros não estão se excedendo, lançando mão de um poder que não têm, mas se protegendo das intimidações do governo, que pretende doméstica-los usando milícias digitais e manifestações favoráveis a um golpe que fechasse o STF. "O Supremo entendeu que, se ele não agir, vai virar um Supremo de fachada, como o da Venezuela", argumentou o professor.

A seguir, trechos da entrevista.

O judiciário mais ativista, para você, pode ser considerado como parte da base formadora deste governo? 

Bolsonaro foi eleito por uma coalizão conservadora heterogênea formada por neoliberais, reacionários radicais e por militares de viés estatista. O choque conservador representado pela eleições de 2018 e a adesão de Moro ao governo tiveram o efeito de colocar o “judiciarismo” do Supremo de barbas de molho. Nessa coalizão, eram certamente os liberais lavajatistas que se achavam na posição mais desconfortável. Representados pelo Sérgio Moro, sempre foram mais liberais do que propriamente conservadores. 

A defesa lavajatista da lei e da ordem pressupôs sempre  a autonomia das corporações judiciárias, sem a qual a “luta contra a corrupção” governamental seria impossível. Mas Bolsonaro nunca quis realmente combater a corrupção como projeto de Estado, mas apenas explorar politicamente o tema da corrupção como estratégia política. Seu projeto político autoritário, inconstitucional de cabo a rabo, exige o desmantelamento paulatino das instituições da Nova República. Isso implica eliminar a autonomia das instituições encarregadas de fazer a defesa da Constituição.

Não admira que, a certa altura, o Moro tenha percebido a completa incompatibilidade entre os projetos. Sua saída, a título de defender a autonomia da Polícia Federal, serviu de  alarme para que as corporações judiciárias reagissem para defender a sua independência contra o projeto autoritário.

Daí a reativação do “judiciarismo” hibernado, pela reafirmação da autoridade do STF. Na sequência, foram os procuradores federais que se sublevaram contra o subserviência que Augusto Aras tem demonstrado a respeito do presidente. Esse despertar liberal das instituições a respeito de sua autonomia foi seguido pelo despertar democrático da sociedade civil, que começou a se manifestar na sequência, de uma forma elétrica. 

Sempre foi falado do Supremo como um poder "moderador". Caberá a ele moderar esta crise?

A questão do poder moderador está no imaginário da cultura política brasileira. Aquele, que existia no império, era exercido pelo imperador. Quando vem a República, Rui Barbosa, Campos Salles e outros designaram o STF como o poder moderador do novo regime, para defender a federação, os direitos fundamentais e a harmonia entre os poderes. Mas essa foi uma ideia que só vingou de vinte anos pra cá.

Ao mesmo tempo, tendo em vista que foram os militares que fizeram a República, desenvolveu-se uma doutrina completamente inconstitucional, segundo a qual seriam eles, e não o STF, os autênticos guardiões da República. Mas, diferentemente do Judiciário, a “moderação” do Exército é pensada menos como arbitragem do que como tutela. Foi por meio dessa doutrina que todos os autoritários justificaram a intervenção dos militares na política desde então.

Devido ao apoio concedido aos procedimentos marotos empregados pela Lava Jato para “salvar” a República, o STF passou a ter sua imparcialidade questionada à esquerda e à direita. Não admira que, com a recente tomada do poder pelos autoritários, eles tenham ressuscitado a doutrina fajuta do Exército como poder moderador para deslegitimar a atuação do STF como defensor da ordem que eles pretendem derrubar. 

O maior inimigo do governo, atualmente, são aqueles que defendem a Constituição, conforme os valores liberais e republicanos. O Congresso tem mecanismos morosos, porque é sujeito a cálculos eleitorais de centenas de parlamentares. Só funciona na defesa das instituições com pressão popular atrás de si.

Mas a razão de existir do Supremo é a guarda da Constituição, e ele entendeu que, se ele não agisse imediatamente, corria o risco de virar um Supremo de fachada, como o da Venezuela. Então, o STF não tem como moderar uma crise que decorre da tentativa do governo de aniquilar a sua independência. Ele vai empregar toda a sua força para defender a sua existência, que está ameaçada.

Há uma relação muito forte entre o Exército e o atual governo. Como se dá essa comunhão, nessa altura do governo? E que paralelos se pode ter com o período militar nesta relação?

Como o governo gozava de popularidade, mas desempenhava muito mal, alguns generais mais conservadores que integravam a administração vislumbraram a possibilidade de um 'casamento de conveniência'. Queriam dar viabilidade a um governo de direita, acreditando na sua necessidade para um freio de arrumação no país. Ofereceram assim seus préstimos para organizar uma administração dotada de um mínimo de coordenação e racionalidade, atributos de que o presidente é sabidamente desprovido.

Mas Bolsonaro não aceitou inicialmente a oferta, porque temia  ser tutelado. Seu negócio sempre foi somente explorar o imaginário mítico do regime militar como um tempo de ordem e progresso. Com a crise de seu governo, porém, Bolsonaro aceitou taticamente a tutela, nomeando o Braga Neto para a Casa Civil. 

O casamento funciona assim: Bolsonaro explora a imagem das forças armadas, que lhe dão o verniz de ordem que ele não tem. Ela lhe serve para ganhar tempo, intimidando as instituições da República com ameaças de golpe e evitar sua queda. Do outro lado, os generais palacianos exploram a popularidade de Bolsonaro para dar viabilidade político-administrativa a um governo popular, mas conservador, que impeça o retorno da esquerda.

Mas é casamento tenso, porque, se os militares parecem querer aquilo na sua cabeça, seria um governo moderado e constitucional, Bolsonaro quer destruir o regime fomentando a desordem, para convencer os militares da necessidade do golpe. Além disso, Bolsonaro quer um país de povo armado e milícias, no qual o Exército não teria lugar. Mas os generais preferem subestimar o presidente, achando que podem controlá-lo e que ele não oferece perigo. 

Você já se mostrou como um crítico deste ativismo da Suprema Corte. Na conjuntura atual, esse ativismo não passa a ter outro significado?

É verdade que o STF se excedeu diversas vezes no julgamento de  questões políticas. Mas o seu problema fundamental não está aí, e sim no seu desenho institucional. Ele concentra poderes demais. Além de exercer o controle de constitucionalidade, ele ainda tem de julgar criminalmente os políticos, que acusam os juízes de parcialidade, para convencer seus eleitores que são vítimas de perseguição.

Então, em períodos de crise do sistema representativo, em que o STF faz permanentemente as vezes de corte criminal, fica fácil aos prejudicados atacar a sua autoridade como um todo. 

Hoje, não devemos cair na esparrela autoritária de que o STF está sendo ativista. É preciso distinguir aqui três coisas: ativismo judiciário, que é voluntarismo político do juiz ou do promotor; a judicialização da política como resultado do desenho institucional da Carta de 1988, e o neoconstitucionalismo como doutrina de interpretação da constituição e das leis.

A decisão do ministro Alexandre de Morais a respeito da nomeação de Ramagem para a Polícia Federal, por exemplo, foi simplesmente baseada na aplicação da hermenêutica neoconstitucionalista internacional, que o orienta há vinte anos. Não admira que, nesse quadro, juristas autoritários tentem inventar do dia para noite um constitucionalismo fake, que faça do presidente o poder supremo da República, na condição de chefe supremo das forças armadas.

Se o governo se incomoda que as decisões que lhe são desfavoráveis sejam tomadas por liminares, deve pedir ao congresso que mude a lei para obrigar que, nesses casos, não seja um único juízo, mas o colegiado do tribunal que decida. Mas, como o governo não tem maioria do Congresso, nem quer ter, porque é destituído de espírito jurídico, acha mais cômodo intimidar e atacar o tribunal. Não é o ativismo, portanto, que o governo ataca, mas o livre exercício pelo STF de suas funções de guardião da Constituição e de seus mecanismos de freios e contrapesos. 

O inquérito sobre fake news traz esse sentimento de autodefesa?

O projeto bolsonarista se pauta pela intimidação permanente dos outros poderes, auxiliado por uma milícia digital violenta que espalha o ódio e a desinformação, boa parte da qual opera deliberadamente na clandestinidade, para garantir sua impunidade. Quando essas milícias passaram a vilipendiar e ameaçar a integridade física dos ministros do Supremo, o presidente da corte instaurou o inquérito, com base no regimento interno da casa, e designou para chefia-lo um colega traquejado, porque foi por muitos anos secretário de segurança pública de seu estado. 

A tentativa de Bolsonaro de intimidar os ministros do STF vai encontrar inúmeras dificuldades. Os ministros são uma gente poderosa, inteligente e politicamente muito cascuda. São apenas 11, quase todos ideologicamente muito homogêneos em torno do liberalismo republicano. Devem todo o seu poder à Constituição, e não vão abrir mão de suas prerrogativas para virar chancelaria de ditadores. Nenhum deles quer acabar como o ministro Adauto Cardoso, que jogou a toga no chão quando decretaram o AI-5.

O próprio presidente tentou em alguns momentos construir pontes com o presidente do STF, Dias Toffoli. Você considera uma boa estratégia, considerando aquele ditado que considera a corte como "11 ilhas incomunicáveis entre si"?

O presidente acha que representa “a vontade do povo”, mera ficção na medida em que é apoiado apenas por um quarto do eleitorado. Essa representação totalitária, pseudo-democrática, o leva a ignorar deliberadamente a dimensão institucional da vida pública. A autonomia das instituições ou de seus servidores é tratada como obstáculo, e aquele que questiona ou discorda, como inimigo.

Para ele, a submissão se consegue com ameaças e pancadas, seguidas de acenos de paz. O método serve para intimidar os presidentes da Câmara, do senado e do STF, mas também para fritar ministros, como o Moro, o Mandetta e a Regina Duarte. No caso específico do STF, a intimidação surtiu o efeito inverso: transformou as onze ilhas em um continente.

Esta conjuntura, da relação do Supremo com o presidente hoje, deve mudar até o fim do ano, já que se terá Luiz Fux como presidente, e Marco Aurélio como o decano da casa. Como pode se caracterizar essa futura relação? 

Há outras variáveis mais importantes. O ministro [Luís Roberto] Barroso vai ao TSE, o Alexandre de Moraes também. E não acho que eles queiram botar abaixo o governo. O que eles estão fazendo é defender sua autoridade institucional, recusando a intimidação e subserviência desejada por um governo  que quer tudo controlar. Isso já aconteceu na PGR, e isso os ministros não vão admitir no STF e no TSE. 

Os ministros do STF sabem que eles são a elite jurídico-política da República, uma das mais poderosas do planeta. A corte não aceitará virar uma chancelaria do Planalto, para agradar um presidente que abomina tudo o que a maioria deles aprendeu a admirar desde os bancos da faculdade: Estado de Direito, democracia, pluralismo, dignidade humana...

Eles se veem como mocinhos de um remake do clássico filme brasileiro, em que o  bacharelismo civil de Rui Barbosa enfrenta o caudilhismo militar do marechal Floriano. Só que, dessa vez, querem que o filme tenha final feliz. Adauto Cardoso, nunca mais.

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