Perdão tributário de Bolsonaro às igrejas vira batalha política

O texto toca em um complexo problema político e um vespeiro econômico: organizações de atividades religiosas devem cerca de R$ 1,5 bilhão aos cofres públicos da União/Carolina Antunes/PR
O texto toca em um complexo problema político e um vespeiro econômico: organizações de atividades religiosas devem cerca de R$ 1,5 bilhão aos cofres públicos da União/Carolina Antunes/PR
Presidente vetou o projeto que anulava as autuações da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido para o setor, mas incentivou derrubada de veto.
Fecha de publicación: 15/09/2020

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Na linguagem política, a Lei 14.057/2020, promulgada pelo presidente Jair Bolsonaro na última segunda-feira (14), contém um "jabuti", uma inserção no texto totalmente alheia à sua discussão principal. Apesar da Lei dispor sobre um acordo com credores para pagamento com desconto de precatórios federais, o penúltimo artigo altera a legislação tributária federal para permitir a anulação de multas e autuações, contra igrejas e outras instituições religiosas, pelo não recolhimento de contribuições previdenciárias.

O texto toca em um complexo problema político e um vespeiro econômico: organizações de atividades religiosas devem cerca de R$ 1,5 bilhão aos cofres públicos da União, grande parte disso relativas às contribuições previdenciárias não recolhidas por igrejas, mesquitas e templos de outras denominações nos salários de seus sacerdotes. 

A medida impacta principalmente igrejas evangélicas – cujos fiéis dão franco apoio ao presidente Bolsonaro. A Igreja Mundial do Poder de Deus, que deve R$ 91 milhões à União, terá perdoada cerca de R$ 55,5 milhões por contribuições não recolhidas. A Igreja Renascer, dos pastores Estevam e Sônia Hernandes, pode ter perdoado R$ 27,8 milhões de uma dívida total de R$ 33,4 milhões. E, no caso mais emblemático, a Igreja Internacional da Graça de Deus terá sua dívida com a União, de R$37,8 milhões, integralmente perdoada. 

O líder da Igreja Internacional, R. R. Soares, já se encontrou ao menos duas vezes com Bolsonaro em Brasília. O autor da emenda ao texto legal que promoveu o perdão tributário, o deputado federal David Soares (DEM-SP), é filho do pastor R.R.  

Desde 2015, a Lei 13.137 permite que organizações religiosas não recolham a contribuição previdenciária sobre os vencimentos de clérigos de qualquer denominação religiosa. O texto promulgado por Bolsonaro coloca um ponto final na discussão ao promover efeitos retroativos ao que foi definido cinco anos atrás. Com isso, ficam "consideradas nulas as autuações emitidas" e, por consequência, todas as multas aplicadas.

O escopo do perdão tributário às empresas pode ser ainda maior, porque Bolsonaro vetou do texto, aprovado pelo Congresso Nacional, o perdão às dívidas pela Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), no mesmo sistema da contribuição previdenciária. 

O benefício, porém, segue em suspenso: Bolsonaro foi ao Twitter, no domingo à noite, explicar o seu veto – e se mostrar pessoalmente contra a própria decisão que tomou. Considerando as multas dadas contra as igrejas como "absurdas", Bolsonaro afirmou que precisou vetar o trecho para evitar crime de responsabilidade – mas incentivou o Congresso a derrubar seu próprio veto: "Confesso, caso fosse deputado ou senador, por ocasião da análise do veto que deve ocorrer até outubro, votaria pela derrubada do mesmo", escreveu

O deputado Marco Feliciano (Republicanos/SP), um dos líderes da bancada evangélica, afirmou que o presidente tomou uma decisão "salomônica" com o veto. "Ele aprovou o que era possível e vetou o que não era, pois foi impedido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, que poderia dar, para a oposição, os argumentos de impeachment", disse o deputado. "Tenho certeza de que os líderes do governo na Câmara e no Senado apoiarão a derrubada do veto, sem que o presidente saia prejudicado."

Feliciano creditou a gestão dos governos do PT no poder (2003-2016) às cobranças. Segundo o deputado, a Receita foi instrumentalizada e "forçou uma interpretação maluca da lei contrária à própria Constituição, que dá imunidade tributária à todas as religiões". 

Respondendo ao deputado, o Sindifisco Nacional, que representa os auditores da Receita Federal, rebateu as acusações, apontando que o que chamou de "ilações" dos parlamentares seriam insustentáveis. "[As afirmações] não se sustentam à luz dos fatos e da comprovada excelência ética e técnica dos Auditores-Fiscais, fato atestado principalmente pela manutenção de tais autuações tanto nas esferas recursais administrativas quanto em âmbito judicial", afirmou a entidade em nota. 

Para a advogada e ex-juíza do TRF3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região), Cecilia Mello, embora atualmente já se tenha notícia de circunstâncias antiéticas,  ilícitas, e até mesmo de gravidade imensurável envolvendo instituições religiosas, o fato é que a origem desse benefício na Constituição não tem esse fim, "e tampouco privilegia práticas quase que comerciais que acabaram se instaurando em algumas dessas organizações", apontou a advogada. 

"A imunidade tributária constitucionalmente prevista tem como alicerce a salvaguarda de um direito fundamental que se insere na liberdade de crença, no livre exercício dos cultos religiosos", lembrou Cecília, com o objetivo de garantir proteção aos locais de cultos e liturgias, nos termos do artigo 5º  da Constituição Federal.

Para a sócia-coordenadora do núcleo do terceiro setor no escritório Nelson Wilians & Advogados Associados, Wilmara Lourenço Santos, a cobrança de CSLL sobre as igrejas aponta um dilema. "A Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido das entidades religiosas é devida, pois não se trata de imposto, o nome mesmo já diz é uma contribuição e que a imunidade não abarcaria", argumentou. "Todavia, há uma certa contradição na exigência da contribuição em tela, uma vez que as entidades religiosas são sem fins lucrativos, nesse sentido, não seria adequado haver contribuição social sobre lucro, pois as referidas instituições não visam lucro."

Mudar a Constituição para atingir os "templos de qualquer culto", como são chamadas as organizações religiosas na Constituição, é mais difícil que aprovar uma nova reforma tributária mais compreensiva às realidades do país, segundo o advogado tributarista sócio do escritório Rayes & Fagundes Advogados Associados, Bruno Henrique Coutinho de Aguiar. Uma reforma tributária, entretanto, também não poderia alcançar os templos em termos de impostos – mas deixaria uma porta aberta aos outros tipos de recolhimento.

"O conceito de impostos não incluem os conceitos e taxas e contribuições",explicou. "Contribuições sociais sobre o lucro líquido, sobre o PIS/Cofins, entre outras, têm um caráter de solidariedade e todos devem contribuir com elas. Por isso as contribuições não foram elencadas pelo artigo 150 como sujeitas à imunidade."

O conceito de imunidade tributária que o deputado Marco Feliciano afirma que organizações religiosas possuem vale apenas para imposto – que não pode ser confundido com similares. "A instituição de imposto uniforme à toda a instituição religiosa iria sim contra o previsto no artigo 150, inciso VI, alínea “b”, da Constituição", explicou Gustavo de Godoy Lefone, que é coordenador do departamento de direito tributário do BNZ Advogados.

"No entanto, os demais tributos, como contribuições, taxas, empréstimo compulsório, ou então a instituição de tributos uniformes, que não sejam impostos, não afronta diretamente o artigo", concluiu o advogado, que recomenda uma análise cautelosa da discussão para que todos os direitos das entidades eclesiásticas fiquem resguardados.

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