As barreiras que a Covid-19 derrubou para o desenvolvimento legaltech na América Latina

Até antes da pandemia o setor não estava convencido a investir em tecnologia jurídica / Unsplash, Shane Rounce
Até antes da pandemia o setor não estava convencido a investir em tecnologia jurídica / Unsplash, Shane Rounce
Apesar das deficiências, o ecossistema da região continua a crescer e recebeu um impulso graças à pandemia
Fecha de publicación: 23/11/2020
Etiquetas: legaltech

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Nos últimos cinco anos, antes mesmo da pandemia, a América Latina foi sede para o desenvolvimento de uma série de projetos tecnológicos jurídicos como o Prometea, na Argentina; PretorIA, na Colômbia, e Projecto VICTOR, no Brasil. Ferramentas de inteligência artificial que tornam a avaliação judicial mais eficiente nos tribunais. Certos tribunais, repartições públicas e escritórios de advocacia foram capazes de lidar com a chegada do coronavírus implementando processos digitais em seu trabalho. Muitos deles nem mesmo pararam. Além disso, algumas instituições de ensino superior já possuíam disciplinas em seus currículos vinculadas à tecnologia: seja para utilizá-la no atendimento ou para estudar sua regulamentação.

Embora a região tenha demorado a “decolar”, como diz Mayra Alejandra Ariñez Vera, fundadora da Law and Technology Society e cofundadora da Aliança Latino-Americana para a Inovação Legal, “em alguns anos estaremos falando sobre as iniciativas latinas que serão replicadas em todo o mundo".

Oito meses se passaram desde que os governos latinos tomaram medidas drásticas para evitar a disseminação da Covid-19. E enquanto o contexto apresenta a oportunidade de gerar a transição para o digital, dá a impressão de que o plano da tecnologia jurídica do setor continuou uma promessa.

Segundo Óscar Montezuma, diretor da Niubox Legal, existem mais de 400 novas iniciativas de Legislação e tecnologia jurídica na América Latina. Embora existam levantamentos e alianças para identificar desenvolvimentos tecnológicos para a prestação de serviços jurídicos, Janet Huerta Estefan, fundadora da Abogado Digital, identifica que é precisamente a falta de uma medição real do ecossistema que faz com que o seu desenvolvimento passe despercebido. “Há advogados que querem implementar softwares de tecnologia jurídica que hoje não sabem por onde começar: quais são as tecnologias que já existem e em que categorias. É uma grande área de oportunidades. Vamos desenvolver as métricas primeiro”, diz ele.

Barreira 1. Convencimento

Há alguns anos, LexLatin publicou sua primeira nota informativa sobre o assunto. Na época era apresentada uma plataforma digital para avaliação dos processos de arbitragem: o Arbitrator Intelligence.

Em uma segunda publicação, LexLatin explorou as bibliotecas digitais das firmas, processadores de texto e a questão: do que a inteligência artificial tem a ver com advogados? As respostas foram fornecidas por Rafael Mery, diretor do Mirada 360; Jorge Villalón, diretor de transformação digital da Universidade Adolfo Ibáñez; Sergio Diez, sócio da empresa chilena Cariola Díez Pérez-Cotapos; Ignacio Canals, fundador da Lemontech; Javier Mancilla, fundador da consultoria TARS, e Jorge Muñiz, sócio da banca Muñiz.

Hoje são cerca de cinquenta artigos publicados especificamente sobre tecnologia e setor jurídico e, em parte significativa das coberturas, os especialistas não pararam de instar os advogados a prestarem atenção ao assunto. Até antes da pandemia parecia que o setor não estava convencido de seu uso.

Segundo Juan Carlos Luna, fundador da Lawgistic e cofundador da Lawit, um dos aspectos a comemorar nestes tempos de tecnologia jurídica latina é a reação do setor em responder à necessidade de transformação digital: “Este problema de um ano atrás ainda estava em um nível de discussão 'seria bom considerar' ou 'fazer algo sobre isso' e agora se tornou um tópico muito mais próximo e muito mais necessário”.

A ideia é reforçada por Álvaro Castro Lora, um dos três dirigentes do Sumara Hub Legal: “A princípio, o processo de transformação digital deixou de ser um tema importante para as firmas, para se tornar uma questão de necessidade”. A firma peruana acaba de lançar Restructure | Empresas y Pasivos, uma plataforma abrangente de serviços de consultoria com abordagem preventiva.

Castro Lora explica que a digitalização acabou por cruzar a ideia de ter um site ou uma aplicação e incorporou o conceito de inovação nas organizações. Isso permeia seus processos produtivos e logísticos, incluindo a concepção de produtos ou serviços e a forma de atrair clientes e executar o serviço pós-venda. “O grande pró da inovação tecnológica é a reformulação dos modelos de negócios, tendo o cliente e suas necessidades no centro do projeto que podem ser conhecidas a partir da análise dos dados. O grande desafio é a mentalidade: normalmente as pessoas querem continuar fazendo da maneira que sabem, então resistem às mudanças ”.

Todos os entrevistados reconhecem essa resistência. Por exemplo, na perspectiva de Mayra Alejandra Ariñez Vera, o contexto é, sem dúvida, um alerta para o setor jurídico, pois, de forma generalizada, tem sido composto apenas por advogados, ao mesmo tempo, eles consideram que o direito é para quem tem esta formação, quando “o direito é dos cidadãos”.

Para Michelle Carolina Azuaje Pirela, coordenadora do Projeto IA + D e pesquisadora da Faculdade de Direito da Universidade Autônoma do Chile, falar de tecnologia jurídica é exatamente falar de advogados ou escritórios que usam a tecnologia para melhorar a prestação de seus serviços e oferecer valor adicionado aos seus clientes.

Agustín Velázquez García-López, sócio-gerente do escritório mexicano AVA Firm, acrescenta que, desde a perspectiva dos escritórios, não há consenso sobre o que deve favorecer serviços de alta qualidade, como o custo acessível e o curto tempo para gerar resultados, assim como o foco no benefício para os clientes e, ao mesmo tempo, seus consumidores. A AVA Firm desenvolveu TMKonnect, legaltech internacional de propriedade intelectual; AVA Beyond Business Suite, para acompanhar o crescimento das empresas; Acri Corporativa, para cumprimento de normas e regras de funcionamento; Mercadotecnia Ética y Educativa  (ME2), para defesa do consumidor e AVA FIRM APP, que assessora negócios e empreendedores.

“No México, as firmas tradicionais estão enfrentando a necessidade de se adaptar às tecnologias que seus próprios clientes utilizam para transferir o valor de seus produtos ou serviços aos consumidores. Ou seja, são os clientes que lideram a implementação de novas tecnologias para a prestação de serviços jurídicos”, conclui Velázquez García-López.

Barreira 2. Orçamento

Michelle Carolina Azuaje Pirela explica que se não existem novas tecnologias massivas na administração da justiça é porque a sua adoção está associada “não apenas ao desinteresse ou desconhecimento das tecnologias, ou resistência à mudança, mas também riscos e custos”.

Rodrigo Moncho Stefani, sócio da firma venezuelana Araquereyna, confirma. “O desenvolvimento de soluções de tecnologia jurídica requer, em alguns casos, um grande investimento de capital. O mercado jurídico latino-americano, por seu tamanho e especificidades, pode ainda não ser atraente o suficiente para garantir os retornos necessários para ver os grandes avanços que se têm visto em outras latitudes”. Araquereyna desde 2018 desenvolve o Widú Legal, uma plataforma para gerenciar documentos jurídicos sem ter que ir ao seu escritório.

O contexto para as firmas venezuelanas é particular. A situação se agrava na conectividade, por exemplo, o que dificultou a transição para o digital para as próprias autoridades. “A Venezuela não só vive uma grave crise por conta da pandemia, mas o contexto já era caracterizado por deficiências. Os investimentos em avanços tecnológicos e não apenas em serviços jurídicos têm sido impulsionados pelas circunstâncias. Apesar disso, vimos quantas firmas têm feito um grande esforço para mover suas atividades para o mundo digital. Assistimos a uma grande proliferação de seminários e transmissões por meios eletrônicos que até a chegada da Covid-19 não existiam no país”, afirma Moncho Stefani.

Brian Minutti Aguirre, sócio da empresa mexicana Chávez Vargas Minutti, explica que, embora as firmas em seu país estejam atrasadas na adoção da tecnologia, a pandemia obrigou a repensar as prioridades. “O investimento foi mínimo: nuvens remotas, salas de dados digitais e programas básicos de comparação de documentos. Na idiossincrasia do advogado latino ainda existe a ideia de que a lei é um trabalho perfeitamente artesanal, que tudo deve ser revisto fisicamente, lido de ponta a ponta, que a tecnologia pode diminuir a qualidade do trabalho. Além disso, a tecnologia não pode substituir o trabalho de um advogado”.

Chávez Vargas Minutti tem seu aplicativo fintech chamado maat. Agora trabalham na instalação de ferramentas para auditorias automatizadas, entre outros projetos.

Janet Huerta considera que é hora de desmistificar os altos custos da tecnologia, principalmente aquela que é básica na operação de qualquer firma: a gestão de documentos por meio de nuvens. “Antes, apenas as médias e grandes empresas tinham orçamentos para fazer grandes investimentos, mas de repente a nuvem chegou e surgiu o conceito de software como serviço, onde posso comprar por uma quantia modesta, bastante acessível, um espaço num servidor da Amazon".

Barreira 3. Tradição

Rodrigo Moncho Stefani comenta que uma das principais barreiras que encontra em relação à incorporação da tecnologia no mundo jurídico é “a opinião preconcebida de muitos advogados que ainda pensam que o trabalho jurídico nunca poderá ser substituído pela tecnologia. A inteligência artificial está questionando cada vez mais essas noções. "

O peso da tradição para o setor jurídico é outro elemento reconhecido por todos os entrevistados. A este respeito, Brian Minutti Aguirre comenta que “infelizmente a inovação não tem sido um impulsionador dos serviços jurídicos”. Ele vê isso de ambos os lados, tanto das empresas quanto dos clientes. “O serviço jurídico tradicional sempre foi o mais valorizado: ver o seu advogado pessoalmente em grandes escritórios e revisões manuais, isso faz parte da tradição em serviços. A Covid-19 será, sem dúvida, uma grande motivadora de mudança, não só pela necessidade de atendimento presencial, mas também pela procura de serviços com menor custo e melhor qualidade ”.

Para Álvaro Castro, os poucos avanços se devem ao fato de que os advogados costumam ser mais resistentes à mudança do que outras profissões, já que faz parte de sua formação evitar riscos e temer o erro, “algo intrinsecamente incompatível com a orientação para a inovação”. Mas o diretor da Sumara Hub Legal explica que as novas gerações de advogados - nativos digitais - estão desprovidas do medo da mudança e estão mais focadas em como fazer melhor e de forma diferente.

Cecilia Danesti, advogada e especialista em inteligência artificial, que conseguiu incorporar a disciplina de sua especialidade na Universidade de Buenos Aires, acredita que a matéria deve fazer parte da formação dos alunos e não uma aula opcional. “É algo impensável que hoje os advogados se formem sem vínculos com as novas tecnologias: existe inteligência artificial em todos os lugares e não há regulamentação sobre como ela deve ser implementada”.

Talvez no Brasil o setor seja mais desenvolvido. Segundo representantes do Demarest Advogados, durante a pandemia não houve propriamente uma ampliação das soluções voltadas para o setor jurídico, mas sim um aumento nas buscas pelos serviços existentes. Um exemplo são os aplicativos que têm a ver com assinaturas eletrônicas.

“O ambiente de tecnologia jurídica tem crescido exponencialmente nos últimos anos, cada vez mais temos visto soluções que agregam funções de inteligência artificial, aprendizado de máquina e automação de processos de robôs. Todas essas soluções estão ajudando muito os escritórios a aumentar a eficiência e a qualidade dos serviços prestados. Nos últimos anos, os escritórios de advocacia brasileiros têm trabalhado intensamente na transformação digital”.

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