Brasília e seus cenários jurídicos

“Em Brasília, como no restante do planeta, os cenários jurídicos sofrerão adaptações e aceleradas evoluções tecnológicas”/Fotos Públicas
“Em Brasília, como no restante do planeta, os cenários jurídicos sofrerão adaptações e aceleradas evoluções tecnológicas”/Fotos Públicas
Poderes e instituições da capital do país estão em plena atividade, mas sofrem efeitos de um ano atípico.
Fecha de publicación: 31/08/2020

Ao completar seu primeiro ano de idade – e vão aqui, desde logo, nossos efusivos cumprimentos e desejos de vida longa e profícua! –, o portal LexLatin convida a comunidade jurídica a refletir, discutir e conhecer o cenário jurídico das principais cidades brasileiras. Coube a mim, integrante de Pinheiro Neto Advogados, um escritório de origem paulista, mas já com 46 anos de Brasília, o desafio de tentar traduzir, em breve ensaio, o momento e as perspectivas do mundo jurídico brasiliense.

 

Ao menos intuitivamente, a percepção que tenho é a de que ao se falar em Brasília e em mundo jurídico brasiliense, logo as imagens do STF vem à cabeça de todos. É possível que logo em seguida, a depender da área de atuação de cada um, também se destaquem as imagens dos demais tribunais superiores (STJ, TSE, TST), do TRF-1ª Região, cuja competência alcança boa parte do território nacional, e do TCU.

 

Ainda frequentes lembranças quanto ao CNJ, à PGR e ao CNMP, sempre do objeto dos noticiários jornalísticos. Mas certamente teremos fortes referências também, de vários de nós, à atuação jurídica perante o Poder Executivo federal, Congresso Nacional, Cade, Carf, Agências Reguladoras, Banco Central... uma infinidade de foros e espaços para atuação jurídica. E tudo isso sem falar no próprio TJDFT e no Poder Executivo local, bem assim como no Poder Legislativo, no TCDF e em outros órgãos locais da administração pública.

 

Fato é que os cenários jurídicos brasilienses – e não o (um único) cenário jurídico – estão em plena atividade e sofrendo os efeitos de um ano de 2020 absolutamente distinto de tudo o que já enfrentamos. A pandemia de Covid-19 “mudou a cara” de várias de nossas atividades.

 

No STF, no STJ e nos demais tribunais, julgamentos virtuais em número cada vez maior, sessões de julgamento por videoconferência, audiências por videoconferência ou por telefone, memoriais entregues unicamente por e-mail. Tribunais fechados para acesso do público. Nas agências reguladoras, reuniões de diretoria por videoconferência. E isso se repete nos tribunais administrativos como o Cade e o Carf.

 

É certo que essa mudança forçada e repentina causada pela pandemia se reflete em números. O STF, por exemplo, encerrou o primeiro semestre de 2020 com o menor acervo dos últimos 24 anos. Foram computados 29.285 processos em tramitação, volume 6,4% menor que o acervo de dezembro de 2019.

 

Esses números certamente representam uma boa notícia. Mas há ponderações importantes a serem realizadas no sentido de se verificar se essa produtividade recorde se mostra em linha com o princípio da colegialidade das decisões dos tribunais e com o princípio da primazia da resolução de mérito, expresso pelo Código de Processo Civil de 2015, por exemplo.

 

No Executivo federal e no Executivo distrital, uma sensível diferença advinda especificamente da postura de seus representantes máximos no que diz respeito à pandemia de Covid-19. Reuniões presenciais nunca deixaram de acontecer. E continuam a acontecer na Esplanada dos Ministérios e no Palácio do Buriti.

 

Alguma insegurança jurídica acaba por ser sentida frente aos variados decretos de calamidade pública estaduais, municipais e federais, muitas vezes divergentes entre si, e às resoluções a respeito da contagem de prazos judiciais e administrativos. Insegurança que produz preocupações também quanto ao futuro. Como o Judiciário enfrentará tais questões? E se forem muitas as discussões? Que será feito? Surgirá uma jurisprudência que impeça o conhecimento de recursos nos tribunais superiores se a peça recursal não estiver acompanhada de cópia do decreto de calamidade ou da resolução que disciplinou a contagem de prazo durante o período de pandemia?

 

São muitas as dúvidas e inumeráveis as incertezas. Como será o dia seguinte pós-pandemia? Como funcionarão as instituições em Brasília? Como se apresentará o (novo?) cenário jurídico? Brasília perderá suas vocações?

 

Como parte desse exercício de adivinhação, uma reflexão: a pandemia passará, mas seremos nós, mesma sociedade de março de 2020, a retomar as atividades e os contatos presenciais, as audiências e julgamentos presenciais, as reuniões com diretores das agências e dos conselhos administrativos. Mudaremos tanto assim?

 

Creio que não. Posso estar completamente enganado – e o bom de pensar no futuro sendo advogado é a certeza de poder encontrar dezenas de variáveis e de escusas que justifiquem os erros de previsão que certamente serão observados no futuro –, mas creio que a retomada dos trabalhos presenciais acabará restaurando ao menos boa parte de nossa cultura de “resolver pessoalmente os assuntos importantes”.

 

É claro que este momento de pandemia nos obrigou a evoluir rapidamente em diversos quesitos relacionados ao uso das tecnologias e às reuniões, audiências e julgamentos por videoconferência. Mas não vejo tantos de nós tão felizes, satisfeitos ou empolgados com a possibilidade de não mais sair de casa para ir a uma reunião ou a um tribunal; de não ter o prazer de encontrar ou rever fortuitamente amigos na ida com um cliente a uma agência ou a uma reunião no Congresso para apresentação de um projeto, por exemplo.

 

O fato é que no cenário jurídico a pandemia acelerou algo que já era previsto: o uso da tecnologia no mundo tão tradicional do direito. Mas também é fato que há de se balancear os efeitos já sentidos dessa mudança – na balança do direito! A presença física que há de voltar a existir será, ao que imagino, um importante elemento para esquentar a frieza e o distanciamento causados pela tecnologia. Nos fará lembrar que as decisões, sejam jurídicas ou políticas, afetam vidas humanas. 

 

O homem, ser gregário que é, vive de suas relações. E de relações não apenas por meio uso da tecnologia, fundamental em algumas situações, sim. Mas certamente incompleta em outras. Parece-me que não deixaremos de viver assim.

 

A lição sempre oportuna de Fernando Pessoa, nas Odes de Ricardo Reis, em “Para ser grande, sê inteiro”, não me deixa dúvida.

 

“Para ser grande, sê inteiro: nada

        Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

        No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

        Brilha, porque alta vive.”

 

Não dá para sermos inteiros apenas tecnologicamente, por videoconferência. É impossível.

 

Em Brasília, portanto, e tal como no restante do planeta, penso que os cenários jurídicos sofrerão adaptações e aceleradas evoluções tecnológicas. Mas tenho a sensação de que teremos também caminho aberto para conduzir nossas atividades de modo a aperfeiçoar nossas profissões jurídicas e a ajudar a construir e a solidificar o papel constitucionalmente estabelecido de nossos poderes e instituições.

 

*Vicente Coelho Araújo é sócio de Pinheiro Neto Advogados.

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