Contratos internacionais e a responsabilidade por perdas e danos durante a pandemia

As partes devem agir visando à lealdade e à cooperação, para manutenção da relação comercial/Pixabay
As partes devem agir visando à lealdade e à cooperação, para manutenção da relação comercial/Pixabay
Em situações de crises causadas por fenômenos alheios à vontade das partes, os comportamentos adotados para solução do conflito precisam, primeiramente, estar pautados na boa-fé contratual.
Fecha de publicación: 28/05/2020

No mês de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde reconheceu como pandemia o estado da contaminação da Covid-19, em razão da rápida disseminação geográfica que tem apresentado. Em meio a esse cenário, principalmente a partir da adoção de medidas governamentais restritivas para combater a disseminação da doença, empresas têm lidado com transtornos como a paralisação de atividades produtivas e a queda da demanda e de investimentos, que põem em risco a estabilidade dos contratos firmados.

As repercussões do novo Coronavírus nas relações comerciais nacionais, principalmente as de consumo, já estão sendo largamente noticiadas e geram consequências danosas, como o rompimento antecipado de contratos ou a alteração das suas condições. Cancelamentos de voos, eventos e suspensão das atividades em estabelecimentos de esporte e lazer são apenas alguns dos exemplos.

Nesse ponto, se os efeitos dessa imprevisibilidade são desafiadores no cenário nacional, em que ambas as partes se submetem às leis brasileiras, no cenário internacional a insegurança pode ser ainda maior. Seja pela interrupção da cadeia produtiva ou pela impossibilidade de embarque da produção para importação e exportação — em razão do fechamento de portos e aeroportos —, descumprimento de prazos e entregas nas contratações internacionais são inevitáveis. Com isso, questiona-se como será considerada, no âmbito dos contratos internacionais, a responsabilidade por perdas e danos da parte que não conseguir arcar com suas obrigações.

Quanto à questão, rapidamente se imagina que a aplicação do instituto da força maior, como excludente de responsabilidade, solucionaria facilmente esses casos, rompendo o nexo causal entre a conduta e o dano e elidindo, portanto, o dever de indenizar a parte contrária. Com esse intuito, por exemplo, o governo chinês, por meio do CCPIT - Conselho da China para a Promoção do Comércio Internacional, passou a oferecer certificados de força maior (Force Majeure Certificate) relacionados à Covid-19 para auxiliar as empresas chinesas em eventuais disputas com parceiros estrangeiros decorrentes do inadimplemento dos contratos.

Contudo, a resposta parece não ser tão simples, não sendo os certificados emitidos pelo Estado chinês, muitas vezes, suficientes para afastar a responsabilidade por perdas e danos dessas empresas.

Isso porque a aplicação desse mecanismo nem sempre é a regra no cenário global, podendo a parte fazer uso dele apenas quando o contrato ou a lei que o rege assim estipularem. O modo de aplicação da força maior nos contratos não é consenso a nível internacional, bem como não é incontroverso que a pandemia causada pelo coronavírus seja, de fato, uma hipótese de força maior.

Então, para analisar a possibilidade de exclusão da responsabilidade da parte pela aplicação do instituto no caso de um contrato internacional, o primeiro aspecto a se considerar é qual a lei aplicável àquele instrumento. Algumas jurisdições, como a brasileira, já preveem regras legais de aplicação de força maior às relações comerciais. No caso do Brasil, o artigo 393 do Código Civil possibilita à parte alegar a força maior como excludente de responsabilidade, ainda que inexista previsão contratual expressa no instrumento.

Nos sistemas guiados pela Common Law, como o ordenamento jurídico americano, por outro lado, inexiste lei específica regulamentando a matéria, razão pela qual se exige cláusula contratual autorizando a aplicação do instituto para justificar o não cumprimento da obrigação.

Na tradição da Common Law, juízes e árbitros geralmente não interveem pela parte que fica impossibilitada de concluir suas obrigações em razão de um fenômeno imprevisível. Por essa razão, a propósito, as alegações como a “act of god” são pouco utilizadas pelas partes.

Portanto, pela Common Law, de maior abrangência mundial na interpretação de contratos, um simples FM certificate (certificado de força maior) não tem o condão, por si só, de eximir o contratante de cumprir o pactuado e afastar o “breach of contract” — que levará a um pedido de indenização por perdas e danos pela outra parte. Por isso, caso a lei escolhida para reger a relação contratual seja de um país adotante da Common Law, via de regra, ou que não possua previsão, em seu ordenamento jurídico, de aplicação desse instituto, o mecanismo somente poderá ser reivindicado quando expressamente autorizado em contrato.

Todavia, caso a lei que rege o contrato não autorize a utilização da força maior e o instrumento não contenha cláusula indicando sua aplicação, a parte afetada, a depender da situação, poderá lançar mão da doutrina da “frustration”, admitida na Common Law independentemente de previsão contratual e que leva à resolução do contrato.

Contudo, ressalta-se que essa doutrina é excepcional e aplicável em hipóteses muito limitadas — por isso, pouco utilizada pelas partes. Para a teoria da “frustration”, dificuldades não são suficientes para afastar o dever de indenizar por perdas e danos a outra parte. Para que se configure a “frustration”, exige-se um evento superveniente que atinja o cerne do contrato e torne completamente impossível seu cumprimento. Ou seja, o descumprimento do fato deve ser tido como essencial, não podendo ser um inadimplemento insignificante ou um mero inadimplemento.

Mas ainda nos casos em que a lei do país prevê a possibilidade de aplicação da força maior nos contratos, como no Brasil e em alguns países da Europa, isso não basta. No caso do Brasil, para utilização do mecanismo, é necessário comprovar devidamente a relação de causa e efeito entre a pandemia (como a suspensão das atividades e a impossibilidade de produção ou de distribuição de produtos) com o descumprimento da obrigação. Ou seja, a parte deverá demonstrar que o evento de força maior foi imprevisível e impossibilitou a execução do contrato, bem como que essa adotou todos as medidas para evitar ou mitigar suas consequências (Duty to mitigate the loss).

Não se deixa de ressaltar aqui, também, a possibilidade de aplicação, às transações de comércio internacional para seus signatários, da United Nations Convention on Contracts for the International Sale of Goods (CISG) — tratado de uniformização da lei internacional de venda de mercadorias firmado em Vienna, em 1980. No art. 79 da CISG, admite-se a incidência da força maior, estipulando-se que “uma parte não é responsável pela inexecução de qualquer uma das suas obrigações, se provar que esta inexecução é devida a um impedimento independente de sua vontade e que não poderia razoavelmente dela esperar que ela o tomasse em consideração, no momento da conclusão do contrato, o prevenisse ou o ultrapassasse, ou que prevenisse ou ultrapassasse as suas consequências”.

Assim, em suma, caso o país da lei que rege o contrato possua previsão, em seu ordenamento, da possibilidade de aplicação da força maior como excludente de responsabilidade contratual ou caso ambas as partes sejam signatárias da CISG, a parte afetada pode reivindicar a utilização do mecanismo, comprovando a relação de causa e efeito entre o evento e o descumprimento contratual.

Caso a lei aplicável ao contrato não possua a referida estipulação, a força maior somente poderá ser utilizada se previamente especificada no instrumento — caso contrário, será mais difícil à parte afastar o dever de indenizar a outra por perdas e danos.

Também para os signatários da Convenção de Viena sobre Compra e Venda (CISG), há a possibilidade de aplicação da “Nachfrist” (extensão de prazo), de origem alemã, para uma conciliação entre as partes em meio a um cenário de crise mundial, a fim de mitigar os prejuízos e evitar a resolução total do contrato. No art. 47 da convenção, estipula-se que as partes, com intuito de conservar a avença, podem conceder um prazo adicional ou um período de carência para que o vendedor cumpra a obrigação; e, salvo se tiver recebido a comunicação do vendedor de que não as cumprirá no prazo fixado, o comprador não poderá exercer qualquer ação por descumprimento do contrato durante o prazo suplementar.

Todavia, esse instituto não afasta totalmente a responsabilidade de indenização da outra parte, pois esta não perderá, por este fato, o direito de exigir a reparação de perdas e danos decorrentes do atraso inicial no cumprimento do contrato que não poderão ser compensadas durante o período do “Nachfrist” — ficando impedida somente de requerer a indenização pelos danos causados pela não execução total da obrigação. Ou seja, é possível à parte lesada requerer uma indenização à outra, desde que os prejuízos estejam relacionados com o atraso na execução das obrigações, e não se eles estiverem ligados ao descumprimento final dessas.

Entretanto, sendo evidente ou não, em cada caso concreto, a possibilidade de utilização dos institutos de direito internacional ou da força maior como excludente de responsabilidade, tem-se que ressaltar que, em situações de crises causadas por fenômenos alheios à vontade das partes, os comportamentos adotados para solução do conflito precisam, primeiramente, estar pautados na boa-fé contratual — princípio fundador da nova lex mercatória — e na função social do contrato. Assim, as partes devem agir visando à lealdade e à cooperação, para manutenção da relação comercial e o alcance de meios consensuais para solucionar o conflito.

*Ana Vogado é sócia do Escritório Malta Advogados e especializada nas áreas de direito agrário e do agronegócio.

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