Cooperativas e o processo administrativo sancionador na esfera do BCB

Sede do BCB - Crédito Raphael Ribeiro/BCB
Sede do BCB - Crédito Raphael Ribeiro/BCB
Identidade cooperativa e princípios cooperativos estão umbilicalmente ligados, sendo um decorrente do outro. 
Fecha de publicación: 10/11/2019
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A análise da Lei 13.506/2017 que dispõe sobre o processo administrativo sancionador na esfera do Banco Central do Brasil não pode ser realizada sem o cotejamento com os princípios e valores cooperativos, sob pena de configurar tratamento não isonômico entre as instituições financeiras que compõem o sistema financeiro nacional; aplicando-se logicamente o mesmo critério de interpretação para as situações decorrentes do exercício de cargos estatutários em cooperativas de crédito.

As diretrizes emanadas desde os primórdios da cooperação, com os pioneiros de Rochdale que se consubstanciaram nos princípios cooperativos, em nossa legislação, previstos no artigo 4º da Lei 5764/71, delimitam as diferenças das sociedades cooperativas para as demais sociedades de natureza civil ou comercial presentes em nosso ordenamento jurídico.

Os pioneiros de Rochdale nos idos de 1844 ao evoluírem o conceito de cooperativismo já existente, trazendo para o século XIX a cooperação em sua forma atual, basearam a relação entre os associados e as cooperativas e destas para com a sociedade em geral, em sete pilares básicos hoje reconhecidos internacionalmente pela ACI – Aliança Cooperativa Internacional.

Os princípios norteadores são: 

I - adesão livre e voluntária;

II - gestão democrática;

III - participação econômica;

IV - autonomia e independência;

V - educação, formação e informação;

VI – intercooperação e,

VII – interesse pela comunidade.

Identidade cooperativa e princípios cooperativos estão umbilicalmente ligados, sendo um decorrente do outro. 

A identidade cooperativa decorre da aplicação correta dos princípios cooperativos. Mesmo estando o mundo em constante transformação, notadamente nas últimas décadas, fruto do notável e perturbador avanço tecnológico, as sociedades cooperativas mantem, integralmente, a aplicação dos princípios em seu cotidiano, já que se desviar do seu fim, as cooperativas poderão se transformar em sociedades comuns, sem a liga que lhe dá vida.

Já em 1995, em Manchester, a Aliança Cooperativa Internacional alertava para essa realidade e para as suas repercussões quando anunciou a declaração sobre identidade cooperativa baseada na definição, nos valores e nos princípios.

As cooperativas baseiam-se em valores de autoajuda e responsabilidade própria, democracia, igualdade, equidade e solidariedade. Na tradição dos seus fundadores, os membros das cooperativas acreditam nos valores éticos da honestidade, transparência, responsabilidade social e preocupação pelos outros. 

No âmbito do cooperativismo de crédito, a identidade cooperativa vem se fortalecendo ao longo dos anos, com a crescente presença das cooperativas nas comunidades rurais e urbanas, apoiando iniciativas como o dia “C de Cooperar” que se originou de uma genial ideia da OCEMG em 2009, na pessoa de seu Presidente, Ronaldo Ernesto Scucato, iniciativa inclusive reconhecida pelo Santo Padre.

Ao participar, ativamente, da vida social das comunidades estamos vendo a aplicação prática do sétimo princípio, qual seja: interesse pela comunidade. 

Ao cumprir o objetivo social previsto no estatuto social em sintonia com as disposições do artigo 2º da Lei Complementar 130/2009, regulamentado pelo artigo 17 da Resolução CMN 4434/2015, as cooperativas de crédito estão aplicando os outros seis princípios com seus associados e em prol de toda a coletividade. 

A moderna doutrina cooperativista tem conceituado princípio como valor cooperativo, como nos ensina, com peculiar propriedade, Leonardo Rafael de Souza (apud: Braga, Paulo Roberto Cardoso, Direito Cooperativo e identidade cooperativa – Curitiba: Brazil Publishing, 2019, pgs. 146 e 147)

“Não obstante essa importante evolução, o que se nota até aqui é que os valores constituem uma resposta natural às necessidades sentidas pelo sujeito a partir das qualidades a serem por si apreciadas....

Assim conceituar valor significa o considerar como uma possibilidade de escolha, isto é, “uma disciplina inteligente das escolhas, que pode conduzir a eliminar alguma delas ou declará-las irracionais ou nocivas, e poder conduzir (e conduz) a privilegiar outras, prescrevendo a sua repetição cada vez que determinadas condições se verifiquem”. (ABBAGNANO, 1982, p. 956)

As cooperativas de crédito não podem deixar de aplicar os valores e princípios sob a pena de perder a identidade cooperativa, mesmo que a custa de ter eventual crescimento de mercado em grau inferior ao da empresa correlata, porque o sentido da cooperação é a ajuda mutua sem intuito lucrativo. 

Esse é o desafio do sistema nacional de crédito cooperativo (SNCC, constituído pela LC 130/2009). Crescer, prestar excelentes serviços, atender a comunidade sem deixar de ser cooperativa.

CONCLUSÃO

A identidade cooperativa forjada pelos pioneiros de Rochdale, fruto dos princípios e valores que se cristalizam nas legislações mundo afora que regulam o direito cooperativo, em especial o artigo 4º da Lei 5.764/71, determina que o interprete e o aplicador da lei, na espécie os funcionários do Banco Central do Brasil e os integrantes do denominado popularmente “conselhinho” em sua nobre missão de julgar e aplicar o direito, o façam considerando o exposto nesse breve artigo (aqui esclarecemos que o presente trabalho está baseado no capítulo que escrevemos na obra Direito Cooperativo e identidade cooperativa – Curitiba: Brazil Publishing, 2019, pgs. 137 a 162 à qual reportamos a leitura).

Não podemos esquecer que a axiologia cooperativa, quando não prevalece sobre os demais princípios e valores do direito administrativo, deve ser observada na conduta do interprete e do julgador na situação fática posta a apreciação.

Sem a correta exegese dos princípios e valores cooperativos que consubstanciam na identidade cooperativa, não se estará dando azo e aplicando corretamente os princípios constitucionais da isonomia (tão bem definido por Ruy Barbosa, já citado anteriormente), do contraditório e da ampla defesa, apoio e estimulo a cooperação e da bagatela.

Também dada a natureza especial da sociedade cooperativa que não possui grupo controlador, deve permitir a ampla participação de seus cooperados na gestão e fiscalização da sociedade, inclusive exercendo cargos eletivos (lembrando que até 2020 por força da Resolução 4434/2015 ainda teremos cooperativas de crédito na qual não será permitida a participação na diretoria de não associados), não é justo e razoável apenar seus administradores com penas superiores aos “que exercem cargos em outras instituições financeiras, estes sim, profissionais do mercado”.

Não podemos olvidar a questão de fundamental importância que inclusive embasa com força a aplicação do princípio da insignificância no âmbito das relações oriundas da gestão cooperativa que são o não oferecimento de risco para o sistema financeiro nacional, dado o comando legal que determina o rateio dos resultados da cooperativa de crédito entre seus associados em conjunto com a presença do instituto das garantias recíprocas e da presença do fundo garantidor de créditos do cooperativismo (FGCoop).

 

Paulo Braga é sócio fundador e titular da Paulo Braga Advogados Associados especialista Direito Empresarial, Direito e Estudos Jurídicos pelo IEC-PUC-MG e graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de MG

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