MP da Liberdade Econômica - Mudança legal ou cultural?

Reflexo do Congresso Nacional - Crédito Ministério da Cultura/WM
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Constituição contempla livre iniciativa, mas essa não tem sido a realidade dos agentes econômicos no Brasil
Fecha de publicación: 05/09/2019
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A Medida Provisória No. 881 de 30 de abril de 2019 instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabeleceu garantias de livre mercado e a necessidade de análise de impacto regulatório para edição e alteração de normas, entre outras questões relevantes ("MP da Liberdade Econômica"). Foi publicada e entrou em vigor na mesma data, exceto por alguns dispositivos.

Mais do que uma mudança de lei, a MP da Liberdade Econômica parece ter o objetivo de promover uma mudança cultural nas interações entre o Poder Público e os agentes privados. 

Este artigo tem por objetivo dar informações gerais sobre as novidades trazidas por essa nova Medida Provisória e que ainda deverão ser examinadas mais detalhadamente, sem a intenção de discutir situações específicas ou particulares.

Princípios e Direitos de Liberdade Econômica

A Constituição Federal já contempla expressamente, desde sua promulgação em 1988, a livre iniciativa (art. 1º), a propriedade privada, a livre concorrência e o livre exercício de atividades econômicas (art. 170), a intervenção mínima e excepcional do Estado na exploração direta de atividades econômicas (art. 173) e a função de incentivo no exercício do Estado de seu papel como agente regulador das atividades econômicas (art. 174).

Essa, contudo, não tem sido a realidade dos agentes econômicos ao empreenderem no Brasil. Não são poucas as situações em que os agentes econômicos são submetidos a incontáveis exigências para o licenciamento e aprovação de suas atividades, assim como para a obtenção de registros básicos e cadastros simples, mas essenciais ao início de qualquer atividade. Muitas vezes essas exigências são desproporcionais aos riscos inerentes às atividades pretendidas e atrasam e criam custos adicionais e ineficiência para o início das atividades, dificultando ou até mesmo inviabilizando a produção de bens e serviços, a geração de empregos e o aumento na arrecadação tributária em razão dessas novas atividades.

Nesse sentido, a MP da Liberdade Econômica estabelece expressamente que são princípios que norteiam o disposto em tal Medida Provisória: (i) a presunção de liberdade no exercício de atividades econômicas; (ii) a presunção de boa-fé do particular; e (iii) a intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas. 

Não se trata propriamente de uma mudança de lei, mas sim de uma ratificação dos princípios já contemplados na própria Constituição Federal.

A MP da Liberdade Econômica instituiu também a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, dos quais são titulares toda pessoa, natural ou jurídica, e que são classificados como essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País. Esses direitos incluem, em linhas gerais, livre iniciativa, liberdade de preços, livre concorrência e segurança jurídica quanto à conduta da administração, autonomia da vontade e boa-fé, uso de inovações tecnológicas a despeito da obsolescência das normas em vigor, desburocratização com o reconhecimento de documentos digitais, aprovação tácita de solicitações de determinados atos públicos de liberação da atividade econômica na hipótese de silêncio da autoridade competente, entre outros. 

A liberdade econômica, todavia, não será exercida sem limites. As atividades econômicas permanecerão sujeitas a limitações baseadas nas normas de proteção ao meio ambiente, legislação trabalhista, fraude, legislação da defesa da concorrência, direitos do consumidor, segurança nacional, segurança pública ou sanitária ou saúde pública, entre outras questões protegidas por lei.

Por outro lado, a MP da Liberdade Econômica estabelece o dever da administração pública e demais entes aplicáveis de evitar o abuso do poder regulatório, que possa distorcer as regras de mercado nas seguintes questões, entre outras: (i) favorecer grupo econômico, ou profissional, em prejuízo dos demais concorrentes; (ii) impedir a entrada de novos competidores nacionais ou estrangeiros no mercado; (iii) exigir especificação técnica que não seja necessária para atingir o fim desejado; (iv) aumentar os custos de transação sem demonstração de benefícios; (v) criar demanda artificial ou compulsória de produto, serviço, ou atividade profissional, inclusive de uso de cartórios, registros ou cadastros; e (vi) introduzir limites à livre formação de sociedades empresariais ou de atividades econômicas. 

Com o mesmo objetivo, as propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal (incluídas as autarquias e as fundações públicas), serão precedidas da realização de análise de impacto regulatório, que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico. Espera-se que essa medida possa trazer mais racionalidade à atividade regulatória, reduzindo a profusão de normas que são atualmente editadas diariamente, fenômeno conhecido como "inflação regulatória".

Além dessas questões mais programáticas, e que ainda dependem de regulamentação, a MP da Liberdade Econômica já realizou algumas alterações importantes à legislação brasileira. 

Responsabilidade Limitada e Desconsideração da Personalidade Jurídica
 

Uma das alterações mais relevantes diz respeito à regra de responsabilidade limitada no exercício de atividades econômicas, seja por meio de sociedades ou fundos de investimento, e ao caráter excepcional de qualquer medida em sentido contrário.

O artigo 50 do Código Civil, que trata do abuso da personalidade jurídica e casos em que pode ser desconsiderada de forma a atingir bens particulares de administradores ou de sócios beneficiados por tal abuso, passa a contar com maior detalhamento. 

Importante destacar a definição de desvio de finalidade como "a utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza". Da mesma forma, devem ser mencionadas as previsões de que (i) os mesmos requisitos são aplicáveis à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica, e (ii) a mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.

Com o mesmo objetivo de reforçar a responsabilidade limitada, foram também alteradas as seguintes disposições legais:

(a) artigo 980-A do Código Civil, com a introdução de novo § 7º, para prever expressamente que somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude;

(b) o Código Civil, também para a inclusão de artigos (1.368-C, 1.368-D e 1.368-E) sobre fundos de investimentos e a limitação de responsabilidade de cotistas e prestadores de serviços fiduciários; e

(c) o artigo 82-A da Lei de Recuperação e Falências (Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005), para prever que a extensão dos efeitos da falência somente será admitida quando estiverem presentes os requisitos da desconsideração da personalidade jurídica de que trata o art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). 

Sociedade Limitada Unipessoal
 

Outra mudança legislativa imediata da MP da Liberdade Econômica diz respeito à possibilidade de constituição de sociedade limitada com sócio único, além da possibilidade já existente de utilização da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI (a qual depende de capital social mínimo de 100 salários mínimos e outros requisitos).

Autonomia da Vontade
 

A MP da Liberdade Econômica altera também artigos do Código Civil com o objetivo de reforçar a autonomia da vontade nos contratos empresariais. Assim, o artigo 421 do Código Civil passa a estabelecer que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, "observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica", e também que, nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional. O artigo 423, que trata da interpretação de contratos de adesão, também foi aprimorado.

O artigo 480-A do Código Civil, por sua vez, passa a estabelecer que nas relações interempresariais, é licito às partes contratantes estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação de requisitos de revisão ou de resolução do pacto contratual, e que deve ser presumida a simetria dos contratantes e observada a alocação de riscos por eles definida.

Outras Alterações e Revogações

A MP da Liberdade Econômica promoveu outras alterações legislativas, inclusive para fins de simplificação de regras (subscrições de ações de acordo com o artigo 85 da Lei das Sociedades por Ações) e procedimentos (utilização de meio eletrônico por registros públicos, artigo 1º da Lei No. 6015, de 31 de dezembro de 1976).

Foram também promovidas importantes alterações à Lei No. 10522, de 19 de julho de 2002, que trata de questões tributárias, inclusive para ampliar o rol de hipóteses em que fica dispensada a contestação ou interposição de recursos pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

Além de alterações legais, a MP da Liberdade Econômica revogou as seguintes normas:

(a) a Lei Delegada nº 4, de 26 de setembro de 1962, que dispõe sobre a intervenção no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo;

(b) inciso III do caput do art. 5º; e inciso X do caput do art. 32 do Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966, que tratavam de reciprocidade de tratamento a seguradoras estrangeiras; e

(c) a Lei nº 11.887, de 24 de dezembro de 2008, que criou o Fundo Soberano do Brasil - FSB.

Comentários Finais
 

Várias questões tratadas na MP da Liberdade Econômica ainda dependem de regulamentação, tanto na esfera federal, quanto na estadual, distrital ou municipal.

É o caso, por exemplo, da classificação de atividades de baixo risco para fins de dispensa e aprovação tácita de licenças e permissões, bem como regramento para o uso de documentos digitais, sua validade e os casos em que sua reprodução deverá conter código de autenticação verificável. 

Da mesma forma, o início e detalhes sobre a exigência de análise de impacto regulatório, assim como a disciplina pela Comissão de Valores Mobiliários das novas regras introduzidas no Código Civil sobre fundos de investimento e a facilitação do acesso ao mercado de capitais por companhias que definir como de pequeno e médio porte.

Será preciso verificar também a prevalência de leis especiais (por exemplo, licitações públicas, Código Tributário Nacional, Consolidação das Leis do Trabalho, entre outras).

Em qualquer caso, a mudança cultural ainda dependerá de outros passos e, no que diz respeito à legislação, outras alterações serão necessárias para fins de adequação à Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e aos princípios constitucionais e legais mencionados acima. 

 

Marcelo Portes da Silveira Lobo é sócio do Pinheiro Neto Advogados, formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e tem MBA em Energy Business pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ).

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