Os crimes de difamação e calúnia e o artigo 26 da Lei de Segurança Nacional

As investigações indicam a existência de um diálogo institucional mínimo entre a Presidência e Ministério da Justiça/Fotos Públicas
As investigações indicam a existência de um diálogo institucional mínimo entre a Presidência e Ministério da Justiça/Fotos Públicas
Influenciadores digitais, advogados, artistas e até ex-candidatos presidenciais estão sendo alvos dessas apurações.
Fecha de publicación: 23/03/2021

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Nas últimas semanas, a imprensa divulgou a abertura de diversos inquéritos policiais para apurar possíveis crimes de difamação e/ou calúnia contra o presidente da República. Os alvos dessas investigações e o crime nelas investigados estão sendo objeto de intenso debate público.

Desde influenciadores digitais, advogados, artistas e até ex-candidatos presidenciais estão sendo alvo dessas apurações. São personalidades conhecidas da vida pública nacional e que têm voz ativa em redes sociais e/ou na imprensa, de modo que natural que eles próprios façam sua defesa em público.

Essas investigações dependem de uma certa coordenação do Estado para serem iniciadas, na medida em que essas apurações têm sido iniciadas mediante requisição do Ministério da Justiça, conforme exigiria o artigo 141, I, c/c o parágrafo único do artigo 145, ambos do Código Penal.


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Ou seja, as requisições de investigações têm ocorrido em um contexto que pressupõe a existência de um diálogo institucional mínimo entre a Presidência e Ministério da Justiça e um comum acordo de que o assunto é de interesse do Estado brasileiro.

O crime que se investiga nessas apurações se trata do delito previsto no art. 26, da Lei de Segurança Nacional (LSN), o qual tem a seguinte redação: “Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação.”

Como se lê, o delito do art. 26 da LSN é composto por duas figuras retiradas do capítulo de Crimes Contra a Honra do Código Penal. A primeira é o ato de caluniar, que consiste em imputar a alguma pessoa fato definido como crime, sabendo ser falsa a imputação. A segunda trata-se da difamação, que é o ato imputar a alguma pessoa fato ofensivo à reputação.

A existência da criminalização de declarações que possam caluniar ou difamar terceiros é indicativo de que a liberdade de expressão possui limitações jurídicas. A própria ordem constitucional protege tanto essa liberdade como a honra das pessoas (art. 5º, X, da Constituição da República) e exige um balanço entre esses dois valores.

Os crimes de calúnia e difamação estão previstos nos artigos 138 e 139, respectivamente, do Código Penal. A aplicação do artigo 26 da LSN, portanto, deve observar os requisitos jurídicos consagrados para a configuração desses crimes.

A distinção entre calúnia e difamação é que, na primeira, exige-se que o fato imputado seja falso, que se saiba que ele é falso, e que esse fato falso seja definido como crime (ex.: “Fulano estuprou Ciclana em uma festa”). Se o fato for apenas contravenção penal, não se tem crime de calúnia (ex.: “Beltrano tem 2 bancas de jogo nessa avenida, ele é bicheiro”). Na segunda figura, não se exige que o fato seja falso, basta que seja ofensivo à reputação (“Sicrano é um ladrão, já tirou dinheiro de várias senhoras nesse bairro”).

Tanto na calúnia quanto na difamação, a declaração deve ser específica e assertiva. Desnecessário a declaração seja detalhada, mas requer-se mínimo de concretude. A mera adjetivação ou a atribuição de fato genérico não devem caracterizar esses crimes, mesmo que seja ofensivo à honra. Declarações feitas na forma condicional, hipotética, ou que expressam dúvida, não configuram esses ilícitos.

No que diz respeito ao tipo subjetivo, exige-se dolo acrescido do propósito de ofender. Isto é, além da consciência e vontade das circunstâncias típicas do delito, exige-se a necessidade de intenção de ofender a reputação da vítima, consubstanciada no animus calumniandi na calúnia e no animus diffamandi na difamação.

Nesse caso, no tocante à calúnia, se o ofensor age com animus jocandi ou se desconhece a falsidade do fato ou da autoria, não há crime. Na hipótese de difamação, se há animus jocandi ou se há intenção de informar na imputação do fato narrado, não há crime.

É nesse sentido que caminha a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. A título de exemplo, cita-se o decidido na Petição 5.735, de relatoria do Ministro Luiz Fux, que consignou: “Os crimes contra a honra pressupõem que as palavras atribuídas ao agente, além de se revelarem aptas a ofender, tenham sido proferidas exclusiva ou principalmente com essa finalidade, sob pena de criminalizar-se o exercício da crítica, manifestação do direito fundamental à liberdade de expressão”. E completou “para incidência dos tipos penais referentes à calúnia, à difamação e à injúria, o mero animus narrandi não configura o dolo imprescindível à configuração de tais delitos”.

A aplicação do art. 26 da LSN, portanto, deve observar esses requisitos básicos que foram sendo moldados pela doutrina e jurisprudência. A fim de proteger a própria integridade do direito penal, essas considerações devem ser verificadas no momento da instauração de investigações policiais para apurar o crime previsto no art. 26 da LSN.

Além desses requisitos gerais, deve ser observado o seguinte. A diferença primária entre o crime do artigo 26, da LSN, e seus congêneres no Código Penal reside que o primeiro tipificou atos contra a honra de sujeitos passivos especiais (ex. presidente da República), enquanto as formas típicas do Código Penal protegem a calúnia e a difamação contra qualquer indivíduo, inclusive funcionários públicos.

Ao proteger a honra de sujeitos ativos especiais, a LSN buscou proteger a honra objetiva do indivíduo e do cargo que ele ocupa, no entendimento de que a ofensa a honra desse indivíduo poderia afetar a integridade territorial e a soberania nacional, o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito, e as pessoas dos Chefes dos Poderes da União.

A necessidade de lesão ou potencial de lesão normativa a esses três valores estão previstas no artigo 1º da LSN e são critérios de aferição da lesividade ou potencial de lesividade da conduta para fins de configuração de quaisquer dos crimes da LSN.

Voltando olhos para situações concretas, textos de opinião e vídeos críticos, sejam eles de teor ácido ou jocoso, não deveriam configurar o crime do art. 26, da LSN. Por sua vez, um post isolado em mídia social com a simples atribuição de fato genérico não deveria em tese constituir crime contra a segurança nacional, tal como dizer/escrever “Ciclano corrupto”. Esse exemplo não constituiria calúnia ou difamação, porque é genérico demais e porque o declarante pode acreditar de fato que ciclano seja corrupto, por uma série de razões, desde que elas sejam verdadeiras.

Há sempre a inquietação se essas declarações quando postadas na internet, recebendo multiplicidade de repetições e chegando ao conhecimento de inúmeras pessoas – o que invariavelmente ocorre quando são feitas/escritas por pessoas com milhares de seguidores – teriam o potencial de ofender a honra de terceiros, ainda que absolutamente genéricas, vagas e não específicas.

Deveria haver duas correntes: a análise se a situação constitui crime deve residir apenas na declaração, verbal ou escrita, concretamente feita pelo indivíduo, sendo a repetição ou o número de receptários dela uma consequência do ato inicial. Outra linha seria defender que, mesmo que a declaração seja vaga, a capacidade de lesão dela é dada em função do número de indíviduos que a receberão. O problema da segunda linha é que qualquer ideia negativa estaria sujeita a penalização simplesmente porque ela pode ser recebida por inúmeras pessoas, com o que não se pode concordar.

Por fim, ressalta-se haver conflito aparente de normas entre o artigo 26, da LSN, e a própria existência dos crimes de calúnia ou difamação do Código Penal, porque esse código ainda prevê uma causa de aumento quando o crime contra a honra é praticado contra o Presidente da República, o que pressupõe que eles são aplicáveis para a proteção dessa autoridade.


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Diante desse conflito, vemos duas possibilidades: primeira, há crime do artigo 26, da LSN, quando a calúnia ou a difamação são realizadas em função do cargo exercido pelo chefe de Estado, enquanto que os crimes de calúnia e difamação do Código Penal permanecem sendo válidos para questões pessoais da autoridade; segunda, os crimes de calúnia e difamação contra o Presidente foram derrogados pelos crimes da LSN.

Há uma vibrante discussão acerca da aplicação do artigo 26, da LSN, e dos crimes contra a honra do Código Penal, que, em verdade e em última análise, esperamos seja arrefecida na sequência dos meses em prol de uma melhor e mais pacífica vivência nacional.

*Fernando Barboza Dias e Luiz Felipe Bordon são sócios do escritório De Paula Dias.

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