Portaria do Ministério da Saúde sobre o aborto só tem o poder de criar constrangimento

O Estado tem o dever de fornecer todo o auxílio necessário às mulheres que se encontrem nas condições descritas no artigo128 do Código Penal/Pixabay
O Estado tem o dever de fornecer todo o auxílio necessário às mulheres que se encontrem nas condições descritas no artigo128 do Código Penal/Pixabay
Poder Público tem o dever de oferecer mecanismos que evitem a exposição e o constrangimento das vítimas.
Fecha de publicación: 08/09/2020

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O caso de uma menina de 10 anos de idade, grávida, que sofria abusos sexuais constantes e há vários anos - ao que se sabe praticados por um tio - ganhou repercussão na imprensa, não pela brutalidade do caso em si, mas pelos disparates ideológicos que permearam algumas manifestações. A identidade da menina e o hospital que a acolheu para a realização de um procedimento de aborto legal, cercado de cuidados em razão dos riscos decorrentes da sua pouca idade, acabaram sendo divulgados em redes sociais. A repercussão foi de tal ordem que demandou a inclusão da criança em programa de proteção, com mudança de identidade e local de residência.

Pouco tempo depois, não com o objetivo previsto em lei de acolher e amparar as vítimas de abusos sexuais - das quais, diga-se de passagem, 53% são meninas com até 13 anos de idade (Anuário da Segurança Pública 2019) - mas com o nítido e único propósito de criar constrangimento, foi editada a Portaria 2.282 MS-GM, de 27 de agosto.

Essa portaria regulamenta o procedimento de autorização da interrupção da gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do SUS, revogando expressamente a regulamentação anterior. Trata, assim, do procedimento de aborto legal, cujas hipóteses estão expressamente previstas no art. 128 do Código Penal: quando a gravidez significar risco à vida da gestante, porque a lei optou pela preservação da vida da mãe; ou quando a gravidez resultar de estupro e o aborto for precedido de consentimento da gestante, ou, se incapaz, do seu representante legal, porque não pode o Estado pretender obrigar a mulher a manter uma gestação oriunda de um crime, diante da envergadura dos danos que decorrem dessa violência.

Em qualquer das duas ocorrências, não há necessidade de autorização judicial para a prática do aborto legal. Aliás, no caso de estupro, que ora nos interessa, sequer é necessário que haja ação penal contra o autor do delito, pois a lei não impõe esse requisito: “importante é o fato e não o autor do fato”.

A primeira “alteração” introduzida pela portaria recém editada diz respeito à obrigatoriedade de notificação da autoridade policial, pelo médico e pelos responsáveis pelo estabelecimento de saúde, quando houver indícios ou confirmação do crime de estupro.

A segunda, inserida com péssima técnica no artigo 8º da Portaria 2282/2020, eis que referente à fase do procedimento constante do artigo 4º, aponta a necessidade de a equipe médica informar à mulher a possibilidade “de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia”, se assim o desejar. Por um lado, determina a obrigatoriedade no fornecimento dessa informação, de outro deixa a anuência a critério da interessada, mas em um terceiro viés, indica a necessidade de concordância expressa e de forma documentada (sic).

Essencial dizer que a edição de portarias se encontra dentro do exercício do poder normativo da administração pública, sendo o direito brasileiro bastante restritivo nesse contexto. Não há margem para regulamentos autônomos, exceção feita às hipóteses previstas a partir da EC 32/2001, que não guardam qualquer relação com a Portaria 2.282/2020.

O Estado tem o dever de fornecer todo o auxílio necessário às mulheres que se encontrem nas condições descritas no art.128 do Código Penal. Esse dever, em um primeiro plano, decorre de disposição constitucional expressa que assegura a todos o direito fundamental à saúde, por meio de políticas sociais e econômicas implementadas pelo Estado para prover condições indispensáveis ao seu exercício, nos termos da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde.

O Decreto 7.958, de 13 de março de 2013, valendo-se da Lei 8.080/90, fixou diretrizes para o atendimento humanizado às vítimas de violência sexual no âmbito da segurança pública e do SUS, priorizando o acolhimento, a observância dos princípios do respeito da dignidade da pessoa, da não discriminação, do sigilo e da privacidade.

Determinou o fornecimento de prévia informação à vítima sobre todo o procedimento a ser realizado, incluindo a importância das condutas médicas, multiprofissionais e policiais, respeitando-se a sua decisão sobre a realização de qualquer procedimento. O art. 4º desse decreto elenca os procedimentos a serem observados pelos profissionais da rede do SUS, destacando-se o acolhimento, anamnese, exames clínicos e laboratoriais, preenchimento de prontuário detalhado, com descrição minuciosa de lesões, vestígios e identificação dos profissionais que atuaram no atendimento.

Acrescente-se: o “preenchimento do Termo de Relato Circunstanciado e Termo de Consentimento Informado, assinado pela vítima ou responsável legal”; a “coleta de vestígios para, assegurada a cadeia de custódia, encaminhamento à perícia oficial, com a cópia do Termo de Consentimento Informado”; e, especificamente,  o “preenchimento da Ficha de Notificação Compulsória de violência doméstica, sexual e outras violências.

Nota-se que o Decreto 7.958/2013, para regulamentar o atendimento às vítimas de violência sexual, lastreou-se nas disposições gerais referentes ao SUS, constantes da Lei 8.080/90.

 

Entretanto, logo em 1º de agosto do mesmo ano, especificamente em relação ao atendimento, pelo SUS, das vítimas de violência sexual foi editada a Lei 12.845/2013, disciplinando detalhadamente a matéria. Essa lei, em harmonia com o decreto então vigente, determina aos hospitais do SUS a obrigatoriedade de atendimento gratuito, imediato, integral e emergencial, inclusive multidisciplinar, para fins de tratamento dos agravos físicos e psíquicos.

 

Isso, compreende-se, desde o diagnóstico, amparo médico, social e psicológico, até a facilitação do registro da ocorrência e encaminhamento ao órgão de medicina legal e às delegacias especializadas com informações que possam ser úteis à identificação do agressor e à comprovação da violência sexual. Acrescente-se o fornecimento às vítimas de informações sobre os direitos legais e sobre todos os serviços sanitários disponíveis.

 

Adicione-se, por oportuno, as disposições da Lei 13.931/2019, que alterou o artigo 1º da Lei 10.778/2003, determinando a notificação compulsória, pelos serviços de saúde públicos e privados, no prazo de 24 horas, à autoridade policial, de casos com indícios ou confirmação de violência contra a mulher.

 

Nesse contexto legal, o que precisa ficar absolutamente claro é que as disposições contidas nas leis 12.845/2013 e 13.931/2019, pertinentes à notificação compulsória e ao procedimento que no seu entorno gravitam, dizem respeito ao crime eventualmente praticado pelo agressor e ao delito de violência sexual sofrido pela vítima. Esta poderá, inclusive e em muitos casos, não vir a necessitar do procedimento de aborto legal, mas sim do atendimento médico e multidisciplinar que lhe é assegurado.

 

A obrigatoriedade de notificação compulsória à autoridade policial pelo médico, conforme consta do art.1º da Portaria 2.282, apenas reitera aquilo que já consta da legislação, em nada melhorando ou facilitando o procedimento para as vítimas de violência sexual.

A segunda modificação introduzida pela Portaria 2.282, de péssimas intenção e técnica, aponta para a o dever de ser oferecida à vítima de violência sexual, que necessite se valer do procedimento de aborto legal, a “possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia”. Se por um lado o texto não inova, já que assente que o exame é do paciente, então por óbvio que qualquer um pode visualizar as imagens do seu ultrassom, por outro causa profunda indignação.

A medida foi introduzida no rol de procedimentos com o nítido caráter de criar mais um constrangimento à vítima de violência sexual, desafiando-a um novo teste de resistência psicológica, com o inegável intuito de coagi-la a desistir da interrupção da gravidez. Tem contorno cruel e desumano, em total descompasso com os deveres do médico e dos princípios de acolhimento, tratamento humanizado e auxílio multidisciplinar previstos na lei.

Ao médico, também não restam alternativas. O dever de sigilo profissional, guardião da intimidade e da privacidade do paciente, constitucionalmente protegidas na condição de direitos fundamentais, encontra em lei as suas exceções. O art. 154 do Código Penal - violação do segredo profissional – traz a ausência de justa causa como elemento normativo do tipo, ou seja, a revelação de segredo profissional somente se perfaz como ilícito penal se essa revelação ocorrer sem um amparo legal que a suporte.

O Código de Ética Médica, editado pelo Conselho Federal de Medicina (Resolução CFM nº 2.217/201), estabelece ser vedado ao médico “revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por justa causa, dever legal ou autorização expressa do paciente”. Assim, há situações que o médico não apenas pode, mas deve revelar segredo profissional em decorrência de determinação legal, tal como aqui ocorre.

O Ministério da Saúde traz como fundamento da portaria a Lei 13.718/2018, que altera a natureza da ação penal nos crimes de estupro, tornando-a pública incondicionada, ou seja, ação penal em que o Ministério Público tem legitimidade para agir independentemente da vontade da vítima. Embora esse fundamento não me pareça suficiente, fato é que a obrigatoriedade de notificação médica à autoridade policial tem sustentação em toda a legislação referida, não remanescendo dúvidas quanto a sua legalidade.

Por fim, a violência sexual vivenciada no país ocasiona danos físicos e psicológicos imensuráveis, e ainda traz vergonha e medo às suas vítimas. O Poder Público tem o dever, na implantação de suas políticas de saúde pública, de oferecer mecanismos que evitem a exposição e o constrangimento dessas vítimas, diminuindo-lhes o sofrimento. Infelizmente, a Portaria 2.282 MS-GM só criou constrangimento. E nada mais.

*Cecilia Mello, advogada, sócia do Cecilia Mello Advogados e desembargadora federal aposentada.

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