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O modelo de política criminal brasileiro sempre privilegiou o endurecimento da repressão estatal, seja por meio do aumento das penas previstas na lei penal e da supressão dos direitos e garantias do acusado, seja por meio da tipificação de novos delitos e do enrijecimento das normas de execução da pena. Essa tendência se acentuou com o advento da Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90), motivada por uma série de casos de grande repercussão midiática.
Com a edição da Lei nº 9.099/95, houve uma quebra desse paradigma, pois se introduziu no ordenamento jurídico brasileiro os primeiros elementos de um processo penal do consenso.
Hoje, as inovações trazidas pela Lei nº 9.099/95, ao definir as infrações penais de menor potencial ofensivo e traçar as balizas para soluções consensuais alternativas às ações que versam sobre elas, estão bem assimiladas e aceitas pela comunidade jurídica do Brasil. Os aspectos mais controvertidos da Lei dos Juizados Especiais à época de sua edição eram, justamente, os que imprimiam esse caráter de consenso no nosso processo penal, até então jamais verificado entre nós e muito associado ao common law e seus bargains, guardadas as devidas proporções.
O Pacote Anticrime, como ficaram conhecidas as medidas enviadas ao Congresso Nacional pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública e que se transformariam na Lei nº 13.964/2019, despertou paixões desde que começou a ser debatido com intensidade após as Eleições Gerais de 2018.
Patrocinado pelo Poder Executivo como um conjunto de normas destinadas a alterar o ordenamento jurídico brasileiro a fim de tornar as leis penais e processuais penais mais rígidas no combate aos crimes violentos e à corrupção, o projeto parecia emergir de um contexto de clamor popular como aquele que produziu a Lei dos Crimes Hediondos três décadas antes. Esse sentimento decorre também do curioso nome pelo qual ficou conhecido – curioso porque se não se tem notícia, em nosso Estado Democrático de Direito, de diploma legal que se pretenda pró-crime.
Fato é que, após sofrer diversas alterações durante os debates parlamentares, o Pacote Anticrime entrou em vigor com medidas, de fato, mais repressivas, mas acrescentou ao ainda incipiente panorama de justiça criminal consensual no Brasil o acordo de não persecução penal (ANPP). À parte as tendências de enrijecimento da lei, portanto, vale examinar os mecanismos de consenso que nosso processo penal hoje comporta.
Criados pela Lei nº 9.099/95, os institutos despenalizadores para os casos de infrações penais com pena cominada não superior a dois anos são a composição civil e a transação penal.
A primeira, de acordo com repercussões no âmbito cível e criminal, privilegia a reparação do dano sofrido pela vítima em detrimento da persecução penal. Homologado o acordo, que se torna título executivo no juízo cível, fica também extinta a punibilidade do agente, porque se considera renunciado o direito de queixa ou representação criminal, quando se tratar de delito de ação privada ou de ação pública condicionada.
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Já a segunda permite ao Ministério Público propor ao acusado a aplicação de pena não privativa de liberdade desde logo, de modo que não sejam necessários os trâmites processuais que implicam gastos de tempo e recursos financeiros. Não se trata de hipótese de condenação, tampouco de absolvição, a aceitação da proposta, uma vez que a sentença proferida nesses casos tem caráter meramente homologatório. De todo modo, mesmo que cumprida a pena imposta, evitam-se o reconhecimento de reincidência e antecedentes criminais.
A Lei nº 9.099/95 disciplinou também a suspensão condicional do processo, aplicável a qualquer delito com pena mínima cominada igual ou inferior a um ano. Trata-se também de condições propostas pelo Ministério Público, nesse caso após o oferecimento da denúncia, que não implicam privação de liberdade e, se cumpridas regularmente, acarretam a extinção da punibilidade.
Cada uma das hipóteses de solução consensual mencionadas traz consigo requisitos, particularidades e implicações específicas, as quais não se pretende discutir nesse espaço. Igualmente, o tema da colaboração premiada, merece coluna própria. Resta apenas traçar um panorama sobre o ANPP, instituto capaz de suscitar diversas discussões que também poderão ser abordadas futuramente.
Diferentemente da transação penal e da suspensão condicional do processo, o ANPP impõe ao acusado a “confissão formal e circunstanciada” da prática do delito para se aperfeiçoar. Seus efeitos não são agravados por conta disso, uma vez que o cumprimento das condições ajustadas também não consta da certidão de antecedentes criminais e conduz à extinção da punibilidade.
É provável que essa exigência de confissão – que dá margem a muitas discussões mais complexas sobre sua pertinência e mesmo constitucionalidade – se deva precisamente pelo fato de o ANPP se destinar a crimes, em geral, mais graves que aqueles abarcados pelos mecanismos já vistos, sendo requisito que a pena mínima seja inferior a quatro anos e que a infração não envolva violência ou grave ameaça.
Sendo instituto recente, o ANPP ainda tem a maioria de seus aspectos controvertidos pendentes de pacificação da jurisprudência ou de regulação pelo próprio Poder Legislativo. A forma como pode ser associado a mecanismos de solução de controvérsia com repercussão no âmbito cível, como os termos de ajustamento de conduta, é um desses aspectos pendentes de debate mais aprofundado.
De todo modo, apesar das dúvidas surgidas em 1995 com a Lei nº 9.099, a resiliência dos mecanismos de consenso por ela criados e a introdução do ANPP em nosso ordenamento jurídico em 2019 denotam que os acordos penais vieram para ficar. O desafio continua a ser, portanto, aprimorá-los e adaptá-los à realidade da civil law e às garantias da Constituição Federal.
*Yuri Sahione é advogado, sócio da área de compliance, penal econômico e investigações do Cescon Barrieu.
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