Tributação do setor elétrico: as distribuidoras e os furtos de energia

As perdas na distribuição podem ser definidas como a diferença entre a energia elétrica adquirida pelas distribuidoras e a faturada aos seus consumidores/Pixabay
As perdas na distribuição podem ser definidas como a diferença entre a energia elétrica adquirida pelas distribuidoras e a faturada aos seus consumidores/Pixabay
Receita Federal e Carf já apresentaram entendimentos sobre o tratamento tributário conferido por essas empresas a tais eventos
Fecha de publicación: 08/02/2021

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Uma das mais recentes controvérsias da tributação do setor de energia elétrica é a reiterada lavratura, por parte da Receita Federal do Brasil (RFB), de autos de infração em face das distribuidoras para cobrança de IRPJ e CSLL sobre os valores relativos às perdas não técnicas ou comerciais de energia elétrica na atividade de distribuição.

 

Concessionárias estatais e privadas atuantes em todas as regiões do país vêm constatando o aumento das fiscalizações da RFB relacionadas ao tratamento tributário conferido pelas distribuidoras de energia elétrica às referidas perdas, no que diz respeito à dedução destas despesas da apuração do lucro real para fins de cálculo do IRPJ e da CSLL.

 

Diante dos valores astronômicos envolvidos nas autuações e face à imposição de requisitos não previstos em lei, é importante entender o contexto regulatório, os critérios de dedutibilidade, bem como o entendimento dado pela RFB e pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) ao tema.

Quais os tipos de perda na distribuição de energia elétrica?

 

As perdas na distribuição podem ser definidas como a diferença entre a energia elétrica adquirida pelas distribuidoras e a faturada aos seus consumidores. Essas perdas podem ser técnicas ou não técnicas.

 

As perdas técnicas ocorrem devido ao processo físico de transporte da energia. As perdas não técnicas ou comerciais, objeto do presente artigo, decorrem principalmente de furto (ligação clandestina, desvio direto da rede), fraudes (adulterações no medidor ou desvios), erros de leitura, medição e de faturamento.

Contexto regulatório

 

As distribuidoras de energia elétrica estão submetidas à imposição legal e regulatória de assegurar a exata quantidade de energia necessária para garantia de seus mercados.

 

Caso desconsiderem as perdas não técnicas ou comerciais do cálculo do montante de energia necessário ao atendimento da totalidade de seus consumidores, as distribuidoras estarão sujeitas à exposição financeira no Mercado de Curto Prazo sem possibilidade de repasse integral destes custos em sua tarifa. Além disso, terão que arcar com as penalidades por insuficiência de lastro impostas pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e com a penalidade administrativa a ser imposta pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), por descumprimento de suas obrigações regulatórias.

Requisitos legais para dedutibilidade de custos e despesas decorrentes de furto

 

A dedutibilidade das despesas decorrentes de furto está condicionada ao preenchimento dos requisitos elencados no artigo 47, § 3º da Lei nº 4.506/1964 (artigo 376 do RIR/18), a saber: existência de prejuízo, imputabilidade de autoria a empregado ou terceiros e a apresentação de queixa à autoridade policial.


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O entendimento da RFB sobre o tema

 

Em 9 de maio de 1973, a RFB apresentou as suas primeiras considerações sobre o tema no Parecer Normativo CST nº 50/1973, que trata das "condições específicas de dedutibilidade, como despesas, de prejuízos por furto".

 

Sob a ótica da RFB, as perdas não técnicas serão dedutíveis, caso tenha sido apresentada queixa perante a autoridade policial e ocorrido prejuízo por furto de energia – desde que o autor do furto não seja sócio ou proprietário da empresa ofendida, ainda que, posteriormente ao delito, perca sua condição de proprietário ou sócio. Também é necessário que a empresa ofendida ofereça à tributação o valor recebido em exercícios posteriores a título de indenização ou compensação pelos prejuízos suportados.

 

A primeira manifestação conferida pela RFB sobre o tratamento tributário aplicável às perdas não técnicas de energia elétrica, sob o enfoque do IRPJ e da CSLL, ocorreu em 13 de julho de 2016, por meia da Solução de Consulta Interna COSIT nº 17/2016.

 

Nessa ocasião, a RFB esclareceu que as perdas não técnicas não poderão integrar o custo dos serviços prestados para fins de apuração do IRPJ e da CSLL. Todavia, esclareceu a RFB que ditas despesas poderão ser consideradas dedutíveis na apuração do lucro tributável, se decorrentes de furto, ocasionados por empregados ou terceiros, quando apresentada queixa perante a autoridade policial.

 

É possível observar, portanto, que a RFB continua se pautando nos mesmos requisitos previstos no parágrafo 3º do artigo 47 da Lei nº 4.506/1964 e no seu Parecer Normativo CST nº 50/1973, para fins de dedutibilidade das perdas não técnicas de energia elétrica.

 

No ano seguinte, em 23 de março de 2017, a RFB exarou nova Solução de Consulta Interna COSIT nº 3/2017mantendo o entendimento firmado na Solução de Consulta Interna anterior (nº 17/2016) com relação ao IRPJ e à CSLL.

 

Após a edição da Solução de Consulta Interna COSIT nº 17/2016, a RFB vem lavrando autos de infração para glosa das despesas decorrentes de furto com base no suposto descumprimento de requisitos novos e não previstos em lei, tais como a suposta apresentação a destempo da notícia-crime, a descrição vaga dos fatos e a falta de nomeação dos autores do furto.

 

Quanto ao descumprimento do "prazo" para apresentação da queixa à autoridade policial, entendemos que a RFB extrapolou o disposto no parágrafo 3º do artigo 47 da Lei nº 4.506/1964, na medida em que não há qualquer limite temporal na legislação tributária para a apresentação da queixa à autoridade policial.

 

Com relação à falta de nomeação dos autores do furto, o crime de furto tem como pressuposto a impossibilidade da indicação da autoria. O artigo 25 do Código Penal prevê que, diante da impossibilidade de imputar a autoria do crime, o ofendido poderá apresentar na sua queixa ou notificação à autoridade policial as razões pelas quais não foi possível a sua imputação.

 

Ainda que fosse possível, a indicação incorreta da autoria de crime para fins de instauração de investigação policial pode configurar a prática do crime de denunciação caluniosa, previsto no artigo 339 do Código Penal.

O entendimento do CARF sobre o tema

 

Os precedentes do CARF a respeito da dedutibilidade das despesas decorrentes de fraudes e furtos sempre foi pautado na verificação do cumprimento dos requisitos previstos no artigo 47, § 3º, da Lei nº 4.506/1964.

 

Quando o tema de fundo é a dedutibilidade das despesas de furtos "em geral", a verificação dos requisitos vem sendo feita com respeito aos limites estabelecidos na Lei.

 

Provocado a se manifestar sobre a dedutibilidade dos prejuízos decorrentes de furto de energia elétrica no âmbito da atividade de distribuição de energia, o CARF endossou os argumentos apresentados pela RFB nos autos de infração e, de forma inovadora, se valeu de requisitos estranhos à legislação tributária e que nunca haviam sido aventados antes, tanto pela RFB quanto pelo próprio CARF, para manter a glosa das perdas não técnicas em questão.

 

Alguns meses depois, o Carf foi novamente convocado para se manifestar sobre o tema. No novo julgamento, a Turma voltou a negar provimento ao recurso da distribuidora por voto de qualidade.

 

Neste caso, a Conselheira Relatora, Junia Roberta Gouveia Sampaio, votou favoravelmente aos contribuintes, permitindo a dedutibilidade das perdas não técnicas sob o fundamento de que estas são intrínsecas à atividade de distribuição de energia elétrica, tanto que são consideradas pela Aneel na fixação da tarifa de energia elétrica, e são impossíveis de serem evitadas, considerando a realidade socioeconômica do país.

 

Além disso, a Conselheira defendeu que a responsabilidade de investigar e reprimir os furtos de energia não é da distribuidora e sim da autoridade policial, de modo que o registro da comunicação do crime é suficiente para garantir a dedutibilidade das perdas não técnicas, eis que a sua recusa por falta de determinados elementos não encontra amparo na legislação.

 

A Conselheira também discorreu sobre a diferença entre furtos ocorridos no varejo e furtos realizados no setor de energia para concluir que "os furtos para as empresas varejistas são gerenciáveis, pois suas mercadorias são vendidas em lojas, são produtos corpóreos, estocáveis, controláveis, vigiáveis".

 

No voto vencedor, contudo, o Conselheiro Marco Rogério Borges não enfrentou os argumentos apresentados pela Conselheira Relatora, limitando-se a dizer que as perdas decorrentes de furto de energia são gerenciáveis, pois são passíveis de identificação pela distribuidora.

 

Ocorre que o voto vencedor não analisou as peculiaridades regulatórias e tributárias que envolvem o setor elétrico. No voto vencido, a Conselheira Relatora analisou essa questão ao fazer a distinção entre os furtos ocorridos no setor de varejo e energia, para concluir que as perdas não técnicas não podem ser consideradas gerenciáveis e alheias à atividade das distribuidoras.

 

Apesar do voto da relatora, os julgadores chancelaram a exigência de requisitos não previstos na legislação penal e tributária. Mesmo com as manifestações contrárias às distribuidoras, ainda não se pode dizer que este é o "entendimento do Carf" sobre tema.

 

Inicialmente porque os julgamentos não trataram a matéria com a profundidade técnica sobre as peculiaridades regulatórias e tributárias que envolvem o setor elétrico.

 

Além disso, ambos os julgamentos foram definidos por voto de qualidade, ou seja, "voto duplo" do Conselheiro Presidente da Turma, que como se sabe, é representante do Fisco. E por fim, porque os dois julgamentos ocorreram na mesma turma julgadora.

Assim, enquanto a segurança pública for um problema e houver áreas da região de concessão em que as distribuidoras sequer podem entrar para fiscalizar de maneira apropriada, por questões de segurança pública, sob pena de sujeitar seus funcionários a risco de vida, haverá furto de energia e, consequentemente, perdas não técnicas. Por essas razões, são dedutíveis tais despesas da apuração das bases do lucro tributável da empresa.

 

*Mario Prada é sócio e Felipe Graccho Pereira de Vasconcellos é associado do escritório Mattos Filho.

 


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