Uma vida breve, a passos lentos: a realidade das pessoas transexuais e travestis no Brasil

No Brasil, o STF reconheceu o direito de as pessoas trans retificarem seus documentos sem a necessidade de cirurgia e decidiu pela criminalização da LGBTfobia/Elineudo Meira/Fotos Publicas
No Brasil, o STF reconheceu o direito de as pessoas trans retificarem seus documentos sem a necessidade de cirurgia e decidiu pela criminalização da LGBTfobia/Elineudo Meira/Fotos Publicas
Mercado de trabalho não se mostra acessível e um dos motivos para esse obstáculo é o preconceito estrutural.
Fecha de publicación: 01/03/2021

 

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Brasil, conhecido pela pluralidade de culturas, povos e estilos vida, guarda em suas sombras o desrespeito e a violência contra pessoas transexuais e travestis. O país do carnaval aceita fantasias e renega identidades, com reflexos estruturais no acesso à educação, à saúde, ao emprego e até mesmo à vida.

A Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) publicou um dossiê no qual aponta que, somente em 2020, 175 mulheres transexuais ou travestis foram mortas no país – o suficiente para levar o Brasil para o primeiro lugar da lista de países que mais matam trans no mundo. Das vítimas identificadas no estudo – em sua totalidade, mulheres transexuais ou travestis (com expressão de gênero associada ao feminino) – 78% eram pretas, evidenciando a tripla vulnerabilidade e a potência da violência agravada por machismo, transfobia, misoginia e racismo.

O dossiê apresenta também o fator regional da violência: a maioria das mortes ocorre na região Nordeste do país, dado que nos remete ao caso de Dandara dos Santos, que, em 2017, foi linchada, apedrejada e, após as agressões, foi colocada numa carriola e desovada em um terreno, onde ainda recebeu um disparo de arma de fogo. A brutalidade ocorrida em espaço público foi filmada, registrando o silêncio e condescendência de todas as pessoas que assistiram à barbárie. O vídeo circulou por bastante tempo pelas redes e ilustra a vulnerabilidade de Dandara e de toda a comunidade transexual.


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Contra esse quadro, a luta ao longo dos anos se voltou à saúde, educação, empregabilidade e a tantos outros direitos básicos que, por questões discriminatórias, não são acessíveis às pessoas trans, que abrangem as pessoas transexuais, transgênero e travestis. O ano de 2004 tornou-se um marco após uma manifestação de pessoas trans e travestis em Brasília, com o lançamento da Campanha “Travesti e Respeito”, em razão da qual passou-se a comemorar anualmente Dia da Visibilidade Trans.

As Organizações da Sociedade Civil e demais instituições de defesa dos Direitos Humanos desempenham importante papel e esforço para melhorar as estatísticas, mas percorremos vagarosamente o caminho de conquistas de direitos.

Em âmbito internacional, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos lançou um informe denominado Reconhecimento dos Direitos das Pessoas LGBTI na América. Tal documento, publicado três anos após a divulgação do informe sobre as diferentes violências contra pessoas LGBTI+, escancara a carência de políticas públicas de proteção e a necessidade de criação de leis que abranjam pautas LGBTI+.

No Brasil, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, em 2018, o direito de as pessoas trans retificarem seus documentos sem a necessidade de cirurgia de transgenitalização e, em 2019, decidiu pela criminalização da LGBTfobia. Dando um passo para frente e dois para trás em matéria de direitos, em 2020, o governo brasileiro, por meio do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, vetou o plano de ação de Direitos Humanos do Mercosul, pois esse incluía em seu texto a expressão “crime de ódio” contra as pessoas LGBTI e citava identidade de gênero. Na contramão do entendimento do STF, entendeu que tal conduta não estaria tipificada.

É nesse contexto de violência institucional e social que a expectativa de vida das pessoas trans no Brasil é de 35 anos, em contraposição às pessoas cisgênero com expectativa de 76 anos. Pessoas trans sequer vivem o suficiente para assumir o cargo de presidente da República (para o qual há idade mínima de 35 anos). É por isso que tanto se comemoraram as recentes eleições de pessoas trans como vereadoras, em sinal do avanço da representação política do grupo.


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O mercado de trabalho tampouco se mostra acessível. Um dos motivos para esse obstáculo é o preconceito estrutural. Estrutural porque se manifesta em várias esferas (pessoal, educacional, social, financeiro) e funciona como uma avalanche: sem uma boa educação, provavelmente o acesso a um bom emprego será prejudicado. Da mesma maneira, sem uma posição social respeitada, o acesso às oportunidades profissionais também será podado. Com isso, é comum que as pessoas trans (especialmente as mulheres) e as travestis encontrem na prostituição sua única forma de sustento.

Iniciativas como TransEmpregos e Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+ contribuem para que, pouco a pouco, os corpos trans possam superar as barreiras impostas à empregabilidade. Uma das autoras deste artigo é uma mulher negra transexual, que conseguiu fugir de algumas das estatísticas acima, percorrendo o curso de Direito e conquistando espaço em um dos maiores escritórios de advocacia do país. A outra se faz aliada das causas sociais e participante ativa da defesa dos Direitos Humanos. Somos e seremos a resistência para que pessoas travestis e transexuais tenham acesso a todos os direitos, em especial o direito à vida e à dignidade.

Ainda há um longo caminho. À população transexual e travesti é dada uma vida breve, marcada por um circuito com barreiras, percorrido a passos lentos e estatísticas desanimadoras. Em um tema de tantas sombras, encerramos com luz, na esperança de uma sociedade mais empática em que pessoas trans não tenham mais que experienciar, desde novas, o dissabor da exclusão, do abandono e da falta de oportunidades.

*Clara Serva é head de empresas e direitos humanos e coordenadora pro bono do TozziniFreire Advogados. Maria Paula Bonifácio é assistente jurídica de empresas e direitos humanos do TozziniFreire Advogados.  


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