A briga jurídica (e política) por causa do Censo 2021

O Censo é utilizado nos repasses do Fundo de Participação dos Municípios e é fundamental na produção de políticas públicas e pesquisas/Fotos Públicas
O Censo é utilizado nos repasses do Fundo de Participação dos Municípios e é fundamental na produção de políticas públicas e pesquisas/Fotos Públicas
Por que governo cancelou e Judiciário mandou realizar? Especialistas discutem mais esse conflito de interesses.
Fecha de publicación: 29/04/2021

Primeiro, o governo cancelou por falta de verba. Depois, o Judiciário mandou realizar. Essa é a mais nova polêmica do ano: a do Censo 2021! 

O Governo federal sancionou o Orçamento de 2021 com cortes de mais de R$ 29 bilhões. Dentre eles, estão os do financiamento do Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dessa forma, o Censo que deveria acontecer esse ano não poderia ser realizado.

Mas aí veio o Supremo Tribunal Federal e a decisão do ministro Marco Aurélio. O magistrado deferiu liminar, ajuizada pelo Estado do Maranhão, e determinou à União e ao IBGE a adoção de medidas voltadas à realização da contagem populacional em 2021. 

De acordo com a ação, a falta de dados sobre a população pode abalar o pacto federativo e levar à perda de receitas tributárias, gerando a diminuição de transferências de verbas. A não realização do censo, de acordo com os representantes do Maranhão, causa desequilíbrio na viabilização de ações governamentais, em razão da dificuldade na formulação e na execução de políticas públicas, com prejuízo à autonomia dos entes federativos. “O censo permite mapear as condições socioeconômicas de cada parte do Brasil”, disse o ministro. E aí criou-se mais esse imbróglio. 

Do ponto de vista jurídico, a lei nº 8.184 de 1991 estabelece que a periodicidade do Censo Demográfico é fixada por ato do Poder Executivo, não podendo exceder a dez anos. A última contagem populacional aconteceu em 2010, portanto outra pesquisa deveria ter sido realizada em 2020, mas foi adiada por causa da pandemia para 2021. Além disso, o artigo 21, inciso XV da Constituição Federal prevê que a realização do Censo é dever da União.

Como foi dito na ação no STF, o levantamento dos dados feito pelo Censo vai além do número de habitantes por cada região. Ele possibilita ter um retrato socioeconômico da população brasileira. Os dados abrangem questões étnicas, condição de vida, faixa etária, utilização dos serviços públicos como saúde e educação, entre outros critérios. O Censo é utilizado, por exemplo, nos repasses do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), além de ser fundamental na produção de políticas públicas e pesquisas. 


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É, portanto, algo necessário e importante para os governos e toda a sociedade brasileira. 

“Pode haver um impacto na execução de normas que tratam de transferência voluntária e involuntária entre a União e demais entes federativos, já que em algumas formas de transferência leva-se em conta os critérios demográficos. Ainda que se pudesse trabalhar com os demais dados estatísticos existentes, haveria possibilidade de ocorrência de situações imprecisas”, explica Henrique Frizzo, sócio de Direito Público e Regulatório do escritório Trench Rossi Watanabe.

Na avaliação do especialista, o Brasil é um país muito diverso, com realidades regionais e locais muito distintas. Assim, sem esse instrumento, a execução de políticas já estabelecidas e o desenvolvimento de novas políticas públicas podem ser sensivelmente impactadas.

Mas, de acordo com o advogado, a decisão do STF foi de tutela de urgência. Por isso, ainda cabe recurso e análise pela Turma e Plenário.

“O próprio dispositivo constitucional apenas se refere a organizar e manter os serviços, geografia, geologia e cartografia no âmbito Federal, ou seja, de conteúdo mais amplo e não se refere ao censo propriamente dito. Assim, é cabível entendimento contrário de que somente a não realização do censo, que é uma das atividades de serviço de estatística, não deveria ser considerada como descumprimento da obrigação de manter serviços que continuam funcionando (IBGE, por exemplo)”, afirma. 

“Por outro lado, sendo um instrumento essencial e previsto em lei específica, pode-se defender, também, que o termo serviço tem uma interpretação mais restrita e que a supressão de um dos mecanismos já seria uma violação ao dispositivo, como parece ser o entendimento do ministro Marco Aurélio”, diz o advogado.

Para Thiago de Oliveira, sócio da área regulatória do escritório SiqueiraCastro, de um lado o tema envolve a recorrente judicialização da política ou politização do direito e eventuais argumentos de excesso de atuação do Judiciário. Por outro, existe uma decisão monocrática (de um juiz) que busca assegurar o dever de promover o censo demográfico e o levantamento de dados estatísticos oficiais. 

“Resta-nos aguardar o desenrolar da referida decisão judicial, de natureza ainda precária, atentos também à identificação e à comprovação de argumentos voltados à reserva orçamentária e à segurança sanitária para a realização do próximo censo demográfico no Brasil".   

Censo e pandemia

A professora Luciana Ramos, coordenadora do Núcleo de Pesquisa Jurídica Aplicada da Fundação Getúlio Vargas, destaca a necessidade do censo especialmente na situação de calamidade sanitária que estamos vivendo.

“Por exemplo, se estamos pensando em definir ou aprimorar políticas de transferência de renda, tendo em vista que a miséria aumentou bastante - mas isso sabemos porque aumentou a quantidade de pessoas nas ruas, não temos o dado, a informação precisa, capaz de dar uma noção completa e mais aprofundada. Não sei, por exemplo, se preciso estabelecer essa política pública de transferência de renda ou mesmo prever auxílio emergencial para outro perfil de pessoas que não aqueles que já têm definido”, diz Luciana.

Os recursos necessários para o Censo eram de R$ 2 bilhões. Durante a tramitação do projeto no Congresso Nacional, os parlamentares fizeram um corte de 88% do valor total. O corte foi confirmado pela sanção do presidente Jair Bolsonaro.

O presidente do IBGE, Eduardo Rios Neto, disse que o Censo “provavelmente” será realizado no ano que vem e seu o maior desafio será realizá-lo com “qualidade e boa cobertura". Ele ainda afirma que a  pesquisa dependerá das circunstâncias sanitárias e orçamentárias.


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Luciana Ramos explica que uma decisão nesse sentido é importante, porque concretiza a necessidade de cumprimento dos direitos fundamentais e do dever constitucional da União, mas que dependemos da vontade do Executivo de implementar e redefinir o orçamento para incluir o censo de 2021.

“Possivelmente o Supremo como um todo vai endossar essa decisão, mas cabe ao poder Executivo, e somente a ele, definir a questão orçamentária. Então, é uma decisão complexa de ser implementada. Você depende efetivamente da vontade do chefe do poder Executivo, que tem poder para isso, realocar verbas para efetivamente fazer. Acontece que, considerando todo o panorama, a restrição de orçamento, de recursos para pesquisa científica no país nos últimos tempos, não sei se podemos esperar que as autoridades envolvidas entendam a importância disso”, afirma.

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