Coronavírus: o governo e a insegurança jurídica das medidas provisórias

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Bolsonaro edita MP num dia e revoga artigo polêmico no outro. Especialistas avaliam como mudanças nas relações de trabalho vão impactar brasileiros.
Fecha de publicación: 23/03/2020
Etiquetas: Brasil

Depois de vários protestos, o governo federal revogou o principal artigo da Medida Provisória (MP) 927. A norma, uma das mais polêmicas até o momento nessa época de covid-19 no Brasil, foi editada no domingo (22) e faz um série de mudanças nas relações de trabalho e recolhimento de impostos.

Ela permitia que os empregadores suspendessem os contratos de trabalho dos funcionários por até quatro meses, sem pagamento de salário, por causa da pandemia.  

“Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, o contrato de trabalho poderá ser suspenso, pelo prazo de até quatro meses, para participação do empregado em curso ou programa de qualificação profissional não presencial oferecido pelo empregador, diretamente ou por meio de entidades responsáveis pela qualificação, com duração equivalente à suspensão contratual”, dizia o artigo 18 da MP.

 

Pela medida, o empregador poderia negociar individualmente “uma ajuda compensatória mensal, sem natureza salarial”.

 

Depois de ver a repercussão negativa da determinação em vários setores, o presidente Jair Bolsonaro anunciou a revogação do artigo 18, que trata dessa questão, via twitter.

 

Apesar da revogação, que ainda precisa ser oficializada, continuam valendo novas regras para o teletrabalho, uso de banco de horas e antecipação de feriados e férias individuais ou coletivas, por exemplo.

De acordo com o texto, o empregador pode alterar o regime de trabalho presencial para teletrabalho, trabalho remoto ou outro tipo de trabalho à distância. A MP permite ainda aos estabelecimentos de saúde prorrogar a jornada de trabalho dos profissionais, mesmo para as atividades insalubres.

Segundo os especialistas em Direito do Trabalho ouvidos por LexLatin, mesmo com a revogação do artigo 18, a MP causa insegurança financeira e também jurídica a vários setores da economia.

 

“Ela beira a inconstitucionalidade de ponta a ponta. Algo deveria ser feito para socorrer os empresários. Ela foi elaborada sem consultar as grandes mentes trabalhistas do país, e inclusive tem erros de português e redação e pontos em que ela é contraditória nela mesma”, analisa Leone Pereira, professor de Direito Trabalhista do Damásio Educacional.

 

Uma das questões contraditórias é em relação ao teletrabalho. Em um trecho da MP, o governo explica que, na modalidade de home office, os trabalhadores são empregados excluídos do controle da jornada e não teriam direito a hora extra e trabalho noturno. Em outro momento, fala que essa modalidade determina mais tempo em favor do trabalhador.

 

“O presidente está mal assessorado e não está fazendo política. Tem que chamar empresários e juristas a negociarem neste momento. Estamos falando do futuro da humanidade. Não tem esquerda nem direita. Não dá pra soltar uma MP dessa magnitude sem envolvimento dos setores da sociedade”, diz Pereira.

 

A MP já está valendo, mas, para tornar-se lei, precisa ser aprovada pelo Congresso em até 120 dias. O texto será analisado inicialmente por uma comissão mista de deputados e senadores. Depois, será enviado para votação pelos Plenários da Câmara e do Senado.

A medida também suspende o recolhimento do FGTS entre os meses de março e abril. Os especialistas ressaltam que essa medida não significa que os valores não serão cobrados, é apenas uma prorrogação. “As empresas terão que pagar o fundo, foi postergado para até dezembro”, afirma Caroline Marchi, advogada trabalhista do escritório Machado Meyer.

 

Outra questão importante, de acordo com os juristas, é que a medida não define qual ajuda será dada pelo governo federal. Para eles, o governo estaria “lavando as mãos”, dizendo que o problema não é dele. Pelos menos até agora. “Os sindicatos foram retirados de qualquer etapa da negociação e foram alijados dessa história”, afirma Pereira.

 

“Nós esperávamos, ao menos, que o governo indicasse que as empresas pudessem ter como alternativa o dinheiro do auxílio desemprego e do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, o FGTS. Mas isso não ocorreu”, analisa Luís Mendes, coordenador e sócio da área trabalhista do escritório Pinheiro Neto, em São Paulo.

 

O especialista acredita que a MP aborda questões que não são relevantes, como o prazo de férias coletivas e individuais. Antes, as férias teriam que ser comunicadas com antecedência de 30 dias. Pela MP 927, agora são 48 horas.

As férias devem ser superiores a cinco dias e podem ser concedidas mesmo que o período aquisitivo não esteja completo. As duas partes podem inclusive negociar a antecipação de férias de períodos futuros, e a prioridade deve ser para funcionários que pertençam ao grupo de risco do coronavírus. No caso dos profissionais de saúde, o empregador pode suspender férias ou licenças não remuneradas.

A medida provisória também autoriza o adiamento do pagamento do adicional de um terço de férias para o dia 20 de dezembro. Pela regra anterior, o beneficio deveria ser depositado até dois dias antes do início das férias. O empregado que deseja “vender” dez dias de férias, por exemplo, também pode ter o pagamento adiado para 20 de dezembro.

A MP autoriza ainda o empregador a conceder férias coletivas, desde que haja comunicação com 48 horas de antecedência. Durante o estado de calamidade, as empresas ficam desobrigadas de respeitar limites definidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que só autoriza férias coletivas em dois períodos anuais, nenhum deles inferior a dez dias corridos.

“As empresas não têm caixa para fazer isso no momento. Dar férias a vários trabalhadores implica em altos custos. Essa MP foi muito aquém, muito abaixo do esperado”, afirma Mendes.

 

No primeiro dia da nova MP valendo em todo país, os responsáveis pela área trabalhista nos escritórios de advocacia em todo Brasil tiveram mais consultas para explicar as mudanças a empregadores e empregados.

 

“Muita gente quer saber questões como compensação do regime de banco de horas, quais setores podem ter férias coletivas, o que fazer com menores aprendizes e a questão das pessoas com deficiência e férias”, afirma Caroline Marchi, do Machado Meyer Advogados.

 

Com relação à mudança e revogação do artigo 18, será preciso editar outra medida provisória para alterar a que entrou em vigor, de acordo com os especialistas. “Serão duas MPs, uma revogando um artigo da outra. Vamos ter no futuro inúmeras ações trabalhistas, discutindo os pontos polêmicos da MP 927: teletrabalho, banco de horas, férias coletivas e individuais”, analisa Leone Pereira.

 

Reação no Congresso

 

No Congresso Nacional e no Senado, diversos políticos deram entrevistas e usaram as redes sociais para se posicionar contra a MP, que, para eles, prejudica os trabalhadores. Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, afirmou que a MP é “capenga”, em uma entrevista virtual ao BTG Pactual.

 

“Mandaram uma MP capenga. Não dá para construir soluções pontuais a cada momento. Vai criar mais problema, mais estresse. Tem que construir um planejamento melhor para essas medidas.”

 

Em nota divulgada nesta segunda-feira (23), a presidência do Senado afirmou que é dever do Congresso e também do Executivo garantir os direitos dos trabalhadores e a manutenção do emprego no país, especialmente neste momento de incertezas.

 

O líder da Oposição, deputado Alessandro Molon (PSB-RJ) disse que apresentou requerimento pedindo ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre, que devolva o texto ao Executivo por inconstitucionalidade.

"Enquanto outros países garantem remuneração durante a crise, Bolsonaro mostra quem ele realmente é com a MP que permite a suspensão de salários por quatro meses", disse. 

Medidas fora do país

Enquanto no Brasil a edição de medidas é polêmica, na União Europeia países como Suécia, Alemanha, Dinamarca, Suíça, França e Espanha, entre outros, anunciaram medidas de subsídio aos trabalhadores, o que pode impedir que o desemprego suba consideravelmente.

 

Em nota, o diretor-geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Guy Ryder, disse que esta “não é somente uma crise global da saúde, é também uma grande crise do mercado de trabalho e econômica que está causando um enorme impacto nas pessoas.” 

O chefe da OIT destacou duas ferramentas que podem ajudar a mitigar os danos e a restaurar a confiança pública: o diálogo social, envolvendo os trabalhadores e os empregadores e seus representantes e as normas internacionais de trabalho. Segundo Ryder, “tudo precisa ser feito para minimizar os danos às pessoas neste momento difícil.” 

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