O futuro da indústria do tabaco e as questões jurídicas que envolvem o mercado brasileiro

O que esperar das ações da Justiça nacional no cerco aos fumantes e no combate às doenças causadas pelo cigarro?
O que esperar das ações da Justiça nacional no cerco aos fumantes e no combate às doenças causadas pelo cigarro?
O que esperar das ações da Justiça nacional no cerco aos fumantes e no combate às doenças causadas pelo cigarro?
Fecha de publicación: 24/08/2020

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No Brasil, de acordo com um estudo do Instituto Nacional do Câncer (Inca), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Instituto de Efetividade Clínica e Sanitária (IECS) a indústria do cigarro causa,  pelas consequências do fumo,  156 mil mortes por ano, ou 428 por dia. A mesma pesquisa indica que o prejuízo anual causado pelo tabagismo aos cofres públicos com despesas no tratamento de pacientes é de R$ 56,9 bilhões, ou 1% do PIB nacional.

De olho nestes dados, foram criadas várias normas na última década contra a indústria do tabaco, como a Lei Antifumo, que proíbe o cigarro em lugares fechados e censura as propagandas de cigarros.

A última disputa entre governo e fabricantes corre há mais de um ano na Justiça Federal do Rio Grande do Sul e está paralisada por conta da pandemia. Por lá, a Advocacia Geral da União (AGU) entrou com uma ação civil pública pedindo o ressarcimento aos cofres públicos do tratamento de 26 doenças, nos últimos cinco anos, que têm direta relação com o consumo do cigarro. Também foram incluídos na ação os valores previstos para serem gastos nos próximos anos com esses tratamentos e uma indenização por danos morais coletivos.

São alvo dessa ação as empresas Souza Cruz, Philip Morris Indústria e Comércio e Philip Morris Brasil, que, segundo a ação, seriam responsáveis por 90% do mercado formal de cigarros no país. Também foram implicadas suas controladoras fora do país, a British American Tobaco e a Philip Morris Internacional. O argumento é de que elas exercem controle sobre as subsidiárias no Brasil.  

No despacho, a juíza Graziela Cristine Bündchen, da 1ª Vara Federal de Porto Alegre afirma que “as empresas estrangeiras (matrizes) coordenam e controlam as atividades das subsidiárias nacionais, que seguem um planejamento global de negócios e relações públicas como parte da política internacional daquelas”. Esse é o argumento para que a notificação das matrizes sejam realizadas pelas subsidiárias brasileiras.

No processo, os advogados do governo brasileiro alegam que as empresas são corporações transnacionais e enviam para fora do país os lucros, o que deixa a responsabilidade pelo pagamento dos danos à saúde para os órgãos responsáveis no Brasil. Os procuradores da AGU argumentam ainda que, durante vários décadas, as fabricantes de cigarros ocultaram os danos causados pelo tabaco, omitindo e manipulando informações e adotado estratégias comerciais que sugerem má-fé.

Até antes da pandemia, as duas maiores fabricantes de cigarros do Brasil e suas matrizes estrangeiras teriam até o dia 31 de março para apresentar sua defesa na ação civil pública. Na época, a 1ª Vara Federal de Porto Alegre de 30 dias para a contestação das companhias. As empresas apresentaram agravo de instrumento com pedido de efeito suspensivo junto ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), mas o relator do recurso negou o pedido e manteve o prazo para que as fabricantes se manifestem nos autos.

 

Para Vinícius Fonseca, advogado da União que atua no processo, as empresas vêm adotando táticas para protelar a ação. “Temos atuado de forma bastante técnica, apegados ao direito e à legalidade, para que a ação tenha o seu normal andamento, e é assim que a Justiça Federal do Rio Grande do Sul tem decidido até o momento”, diz o Advogado.

 

A ação vai de encontro à Convenção-Quadro da Organização Mundial de Saúde para o Controle do Tabaco (CQCT), promulgada no Brasil por meio do Decreto nº 5.658.

 

A questão nos EUA

Nos Estados Unidos há pelo menos 20 anos a Justiça começou a punir os fabricantes de cigarros. Desde então, as empresas são obrigadas a reembolsar os estados pelo tratamento que é feito com as doenças provocadas pelo tabagismo.  

O processo mais famoso, considerado um dos maiores acordos judiciários da história dos EUA, é o Master Settlement Agreement (MSA), firmado em novembro de 1998 entre os procuradores-gerais estaduais de 46 estados, cinco territórios dos EUA, o distrito de Columbia e os quatro maiores fabricantes de cigarros da América em relação à publicidade, marketing e promoção de cigarros.

Além de exigir que a indústria do tabaco pague bilhões de dólares anualmente para sempre, o MSA também impôs restrições à venda e comercialização de cigarros pelos fabricantes participantes, ao impedi-los de atingir direta ou indiretamente os jovens e impor proibições ou restrições significativas sobre programas ou atividades de publicidade e marketing e promocionais. Desde então, as empresas já pagaram quase US$ 200 milhões aos cofres públicos.

O que dizem os advogados da empresas envolvidas no Brasil e exterior

Segundo os advogados das empresas citadas no processo, as mesmas questões jurídicas em disputa no caso foram extensivamente analisadas e rejeitadas pelos tribunais brasileiros ao longo de 25 anos de litígios sobre tabaco no Brasil, incluindo 24 decisões do Superior Tribunal de Justiça.

Com relação à citação das matrizes, os advogados acreditam que a decisão abre “precedente preocupante do ponto de vista da segurança jurídica, pois a legislação existente prevê que as empresas estrangeiras só devem ser atendidas diretamente no Brasil se possuírem filiais, agências ou sucursais no país - e tanto o autor quanto o tribunal reconheceram que as empresas locais neste litígio são subsidiárias das empresas mãe estrangeiras, e não suas filiais, agências ou sucursais”, diz o escritório Mattos Filho.

O argumento da defesa é de que “a decisão potencialmente prejudica o ambiente de negócios no Brasil, visto que um aspecto-chave da separação corporativa entre as empresas controladoras e locais foi desconsiderado, criando um precedente perigoso para qualquer multinacional que faça negócios no país”.

São 156 mil mortes por ano no Brasil

A análise dos advogados

Para Ulisses Sousa, sócio do Ulisses Sousa e Advogados, juridicamente falando as doenças associadas a uso do cigarro podem ter várias outras causas. “Não há como se estabelecer, com precisão, em relação a um indivíduo, uma relação de causa e efeito entre o uso do cigarro e o desenvolvimento de uma determinada enfermidade. Associar, com base em estatísticas, o câncer ao uso de cigarro não é suficiente para fazer surgir o dever de indenizar. Até mesmo porque a referida enfermidade pode ter várias outras causas, várias delas associadas a fatores internos (carga genética) e outras a fatores externos (hábitos de vida do sujeito)”.

O advogado acredita que o estudo dos institutos de responsabilidade civil e da jurisprudência sobre o assunto aponta para a pouca possibilidade de êxito em demandas desse tipo. “É preciso ver com clareza que a legislação brasileira não é igual à americana. A existência de decisões contrárias à indústria do tabaco naquele país não significa que o mesmo deve ocorrer no Brasil, onde o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem repetidamente rejeitado pedidos de indenização formulados por fumantes”.

Geraldo Wetzel Neto, sócio da área tributária e de ICMS da Bornholdt Advogados, explica que os fumantes já contribuem de forma diferenciada pelo consumo do produto que potencialmente pode gerar um gasto excepcional em saúde, já que o cigarro tem preço mínimo tabelado e que sua tributação pode variar entre 60% e 80% do valor do produto. “Sob este aspecto, importante lembrar que grande parte do cigarro consumido no Brasil é contrabandeada, o que também desequilibra a balança tributária que poderia, talvez, suprir os gastos em saúde caso essa parcela não fosse tão significativa”, afirma.

“A questão aqui é que o consumidor sabe dos benefícios e dos malefícios dos produtos que adquire. Porém, este mesmo consumidor paga tributos para receber, de forma gratuita, tratamento pelo SUS. Portanto, se a AGU for vencedora nessa ação, desdobramentos importantes seriam carreados aos tribunais brasileiros, buscando reparações similares de indústrias que vendem produtos ‘maléficos’ ao consumidor brasileiro”, diz

Wilson Sales Belchior, sócio do Rocha, Marinho E Sales Advogados, defende que a judicialização da questão contraria a lógica de livre mercado. Para ele, eventuais externalidades causadas por um setor econômico não podem ser objeto de pedidos de indenização baseados em justificativas amplas.

“No Brasil, os produtos produzidos por essa indústria específica se submetem a alíquota de IPI elevada e à regulação da Anvisa que determina, além de outras restrições, a proibição da propaganda e a obrigação de incluir imagens e advertências nos produtos e expositores. Iniciativas que pretendem a judicialização desse tipo de controvérsia representam uma negativa à eficiência da própria atividade regulatória e, por consequência, penalizar o setor econômico”, explica.

Adib Abdouni, advogado constitucionalista e criminalista, considera sedutora a pretensão da União de ressarcir os gastos do SUS com o tratamento de doenças decorrentes do fumo, mas a iniciativa não tem eficácia do ponto de vista jurídico.

“O cigarro é um produto que por sua natureza representa riscos conhecidos à saúde pública, mas, mesmo assim, é de produção e comercialização lícitas. Portanto, compete ao Poder Público gerir esses recursos, inclusive na execução de políticas públicas de saúde inerentes à periculosidade própria do consumo dos produtos derivados do tabaco”.

O debate promete ser um dos assuntos de destaque na discussão jurídica no pós-pandemia.

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