As principais mudanças (e vetos) do novo Regime Jurídico Emergencial e Transitório

Os vetos deverão agora ser apreciados pelo Congresso Nacional, que poderá derrubar as determinações presidenciais e reinstalar o que foi definido pelo parlamento/ Marcelo Camargo/ Ag. Brasil
Os vetos deverão agora ser apreciados pelo Congresso Nacional, que poderá derrubar as determinações presidenciais e reinstalar o que foi definido pelo parlamento/ Marcelo Camargo/ Ag. Brasil
Vetos impedem, por exemplo, proibição de despejo e ampliação de poderes de síndicos.
Fecha de publicación: 14/06/2020
Etiquetas: Direito Contratual

O presidente Jair Bolsonaro promulgou o Projeto de Lei 1179/2020, que cria o Regime Jurídico Emergencial e Transitório (RJET) para entes de direito privado durante a pandemia do novo coronavírus. A lei, publicada na última sexta-feira (12) no Diário Oficial da União, altera diversas áreas do direito, incluindo Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e Lei do Inquilinato.

A proposta foi apresentada pelo senador Antônio Anastasia (PSDB-MG) e aprovada pelo Senado em 19 de maio, após duas rodadas de votação no Senado e uma na Câmara dos Deputados. 

Entre as principais mudanças, a Lei determina a suspensão ou o impedimento dos prazos prescricionais até o dia 30 de outubro de 2020. O artigo 5º também permitirá que assembleias gerais poderão ser realizadas de maneira virtual, independente de previsão anterior. Há mudanças em áreas como o Direito do Consumidor – a aplicação do artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor, o chamado direito de arrependimento ou a desistência em até sete dias, que passa a ser impraticável em casos de delivery de medicamentos e alimentos.

Outra mudança importante é no direito de família: até o final de outubro, devedores de pensão ou dívida alimentícia deverão cumprir pena em prisão domiciliar, sem ir a um presídio. Também foram estendidos os prazos de abertura e de conclusão de inventários e partilhas. O PL 1179, agora aprovado, também atrasa a entrada em vigor de parte da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Agora, a sanção administrativa aos agentes de tratamentos de dados pessoais passará a ter efeito a partir de agosto de 2021. 

Manutenção da área concorrencial é alvo de críticas

O texto do PL, convertido na Lei nº 14.010, manteve intactas as definições iniciais do projeto sobre o direito concorrencial. Ao alterar o funcionamento do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), o resultado da Lei, para advogados concorrenciais, é que a medida se torna letra morta, sem muita eficácia e com chance de aumentar a insegurança jurídica no setor.

Para Eric Hadmann, advogado sócio do Gico, Hadmann e Dutra Advogados e professor de direito econômico, apesar do alto número de vetos – foram 16 no total - o trecho sobre concorrência não contou com alterações. "Uma pena, pois apesar da boa intenção, a lei será pouco eficaz e possivelmente trará maior insegurança jurídica", disse Hadmann, que explica: "o artigo 14, que torna temporariamente sem eficácia alguns dispositivos da lei de defesa da concorrência, prevê, em primeiro lugar, a suspensão da obrigatoriedade de notificação de contratos associativos, consórcios ou joint ventures. Ocorre que esses tipos de contratos, se de duração inferior a dois anos, já não precisam ser notificados com base em resolução do Cade".  

Hadmann aponta ainda para o fato de que, durante a pandemia, atos de encerramento de atividades sem justificativa e prática de preços predatórios deixam de ser infrações econômicas. "A escolha das referidas condutas é peculiar, pois temos visto movimento de combate a preços abusivos e não preços predatórios. O encerramento de atividades, por sua vez, é conduta que não me recordo de o Cade ter aplicado punição uma vez sequer em sua história", afirmou.

O advogado Pedro Zanotta, sócio do WZ Advogados, ressaltou que, na parte concorrencial, o texto promulgado se trata de "verdadeira letra morta, pois o Cade nunca puniu empresas com base nessas infrações, que fazem parte de um rol exemplificativo de condutas".

Pela nova lei, as empresas não precisam apresentar ao Cade os “contratos associativos, joint ventures e consórcios”, o que é considerado igualmente ineficiente pelo advogado. "Ora, como a suspensão prevista deve, necessariamente, ser decorrente da pandemia, e no período de duração desta, não seriam atos notificáveis ao Cade, de qualquer maneira".

Para Zanotta, a melhor forma de a autoridade antitruste auxiliar a economia, em tempos de crise, é ampliando a sua atividade de investigação e controle, para evitar abusos e tentar, na medida do possível, manter equilibrados os diferentes mercados.

Os trechos da lei vetados pelo governo

O Planalto, porém, vetou 16 trechos da lei. Na mensagem de veto enviada ao Congresso, Bolsonaro aponta os motivos para vetar estes pontos. O presidente optou por rejeitar o artigo 4º, que pretendia proibir que associações, sociedades e fundações se reunissem presencialmente até o final de outubro. A medida atingiria as pessoas jurídicas definidas pelo incisos I a III artigo 44 do Código Civil – e, segundo a Presidência, não poderia abranger apenas parte do dispositivo. 

O presidente interveio na tentativa do Congresso Nacional de regular o transporte individual e de delivery por aplicativos – o texto apresentado à sanção previa que tais serviços não poderiam reter além de 15% do valor da viagem para si durante a pandemia.

"As proposituras legislativas [...] violam o princípio constitucional da livre iniciativa, fundamento da República", diz o Executivo na justificativa do veto. Haveria também uma contrariedade ao interesse público pois, segundo o Planalto, as medidas provocam efeitos nocivos sobre o livre funcionamento dos mercados afetados pelo projeto bem mais duradouros que a vigência da medida.

O Palácio do Planalto também recusou os artigos 6º e 7º, que tratam da "resilição, resolução e revisão de contratos". Os trechos previam que as consequências contratuais relativas à pandemia não teriam efeitos retroativos, e que não se consideram como fatos imprevisíveis, para fins do Código Civil, questões inflacionárias ou monetárias.

Segundo a Casa Civil, "o ordenamento jurídico brasileiro já dispõe de mecanismos apropriados para modulação das obrigações contratuais em situação excepcionais, tais como os institutos da força maior e do caso fortuito e teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva.”

O especialista em direito civil Ulisses Sousa concorda com a avaliação presidencial. "O artigo 478 do Código Civil permite a resolução dos contratos de execução continuada ou diferida, quando a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis", comenta. O advogado considera a questão como sensível, e aponta que a solução deve ser individualizada e focada na negociação: "seria uma boa hora para pensarmos na adoção de experiências como a implantada, com sucesso, na Itália, que exige, em alguns litígios civis e comerciais, que antes do ajuizamento de uma ação a parte busque resolver o conflito através da utilização da mediação."

Síndicos

O ponto mais controverso a ser negado pelo presidente foi a ampliação dos poderes do síndico durante a pandemia. Além daquelas permitidas no artigo 1.348 do Código Civil, o representante legal dos condomínios poderia restringir a utilização de áreas comuns para evitar o contágio pela Covid-19, além de impedir qualquer tipo de aglomeração em dependências sociais ou privadas do condomínio. Isso daria ao síndico o poder de, por exemplo, desfazer festas dentro de apartamentos e casas, caso considerasse necessário. 

No Twitter, Bolsonaro buscou defender o veto. "Qualquer decisão de restrição nos condomínios devem ser tomada seguindo o desejo dos moradores nas assembleias internas", afirmou, em uma mensagem na tarde da quinta-feira (11).

O advogado André Abelha, sócio da área Imobiliária do Wald, Antunes, Vita, Longo e Blattner Advogados, questiona o argumento presidencial de que, caso o texto não tivesse sido indeferido, o síndico se transformaria em um semideus. “O artigo, é bom dizer, apenas explicitava poderes que o síndico já possuía. Pois cabe a ele, nos termos do Código Civil, praticar, em juízo ou fora dele, os atos necessários à defesa dos interesses comuns, além de cumprir e fazer cumprir a convenção e diligenciar a conservação e guarda das partes comuns”, afirma. O texto do PL não seria de alta qualidade técnica, mas  “ruim com o artigo 11, pior sem ele."

Ordens de despejo

Outro ponto atacado por Bolsonaro e elogiado por advogados é a proposta do Legislativo de impedir o despejo durante a pandemia, restringindo a possibilidade de se expedir liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo até o final de outubro. 

"A propositura legislativa, ao vedar a concessão de liminar nas ações de despejo, contraria o interesse público por suspender um dos instrumentos de coerção ao pagamento das obrigações pactuadas na avença de locação (o despejo), por um prazo substancialmente longo", apontou o veto, "dando-se, portanto, proteção excessiva ao devedor em detrimento do credor, além de promover o incentivo ao inadimplemento e em desconsideração da realidade de diversos locadores que dependem do recebimento de aluguéis como forma complementar ou, até mesmo, exclusiva de renda para o sustento próprio.”

"De fato, a permanência do dispositivo geraria uma situação de complacência com o inadimplemento contratual por parte do inquilino", aponta o presidente da Comissão Especial de Infraestrutura da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Federal, Marcos Meira.

"A legislação civil já prevê mecanismos de revisão contratual para situações anômalas como a presente. Os proprietários de imóvel, da mesma forma que os inquilinos (e toda população), já estão sofrendo os reflexos financeiros com a pandemia, notadamente com o inadimplemento contratual. Vedar a liminar para desocupação de imóvel na maioria das hipóteses previstas da Lei do Inquilinato, pelo período previsto na nova Lei, seria imputar um ônus adicional aos donos de imóveis, que sequer poderiam dispor de seu bem para uso próprio."

Para o sócio do escritório Willer Tomaz Advogados Associados, Willer Tomaz, os vetos presidenciais foram acertados porque preservam exatamente tais direitos e garantias, não se admitindo a mitigação da propriedade privada mediante carta branca para a inadimplência, ignorando-se sumariamente o pacto celebrado previamente entre as partes contratantes." 

Especialista em direito imobiliário, Alexandre Matias também enxerga a proposta de veto como positiva. "A norma jurídica estava a privilegiar o mau pagador, ao conceder de forma irrestrita a vedação a medidas liminares de despejo, o que iria trazer grave insegurança jurídica para o mercado imobiliário e onerar exclusivamente uma das partes da relação jurídica, qual seja os locadores", comentou o sócio da Advocacia Maciel. "É certo que a receita obtida com o aluguel é, por vezes, a única fonte de renda de muitos proprietários de imóveis."

Os vetos deverão agora ser apreciados pelo Congresso Nacional, que poderá derrubar as determinações presidenciais e reinstalar o que foi definido pelo parlamento. 

Add new comment

HTML Restringido

  • Allowed HTML tags: <a href hreflang> <em> <strong> <cite> <blockquote cite> <code> <ul type> <ol start type> <li> <dl> <dt> <dd> <h2 id> <h3 id> <h4 id> <h5 id> <h6 id>
  • Lines and paragraphs break automatically.
  • Web page addresses and email addresses turn into links automatically.