As questões jurídicas (e políticas) da anulação das condenações contra Lula

Em fala à imprensa nesta quarta-feira (10), ex-presidente já discursa como candidato, segundo especialistas/Ricardo Stuckert/Fotos Públicas
Em fala à imprensa nesta quarta-feira (10), ex-presidente já discursa como candidato, segundo especialistas/Ricardo Stuckert/Fotos Públicas
Para especialistas, ex-presidente ganha fôlego e consegue, ao menos neste momento, retomar o protagonismo na cena política nacional
Fecha de publicación: 08/03/2021

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O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu entrevista na tarde desta quarta-feira (10) no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. No discurso que teve duração de 1h23 ele já falou como potencial candidato às eleições presidenciais de 2022.

A coletiva foi motivada pela decisão da última segunda-feira (8) do ministro Luiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), que anulou todas as decisões e condenações contra o ex-presidente na 13ª Vara Federal de Curitiba. 

"Eu sei que fui vítima da maior mentira jurídica contada em 500 anos de história. [...] A gente cansou de dizer, a inclusão do Lula e a inclusão da Petrobras na vida do Lula como criminoso era a razão pela qual a quadrilha de procuradores da Lava Jato, não o Ministério Público, a quadrilha de procuradores da força-tarefa e o Moro entendiam que a única forma de me pegar era me levar para a Lava Jato. Porque eu já tinha sido liberado em vários outros processos fora da Lava Jato, mas eles tinham como obsessão porque eles queriam criar um partido político para tentar me criminalizar", afirmou Lula. 

“Se tem um brasileiro que tem razão de ter muitas e profundas mágoas sou eu, mas não tenho. Sinceramente eu não tenho porque o sofrimento que o povo brasileiro tá passando, o sofrimento que as pessoas pobres estão passando neste país é infinitamente maior do que qualquer crime que cometeram contra mim", disse.


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As mortes de brasileiros por conta da Covid-19 foi um assunto recorrente na fala do ex-presidente. Nesta semana o Brasil ultrapassou os Estados Unidos em número de mortes diárias e se tornou o país com mais óbitos por dia no mundo por causa da doença. 

"Essa dor que a sociedade brasileira está sofrendo agora que me faz dizer pra vocês: a dor que eu sinto não é nada diante da dor que sofrem milhões e milhões de pessoas. É muito menor do que a dor que sofrem quase 270 mil pessoas que viram seus entes queridos morrer [...] Quero prestar a minha solidariedade às vítimas do coronavírus, aos familiares das vítimas do coronavírus, ao pessoal da área da saúde, de todos da saúde, privado e pública. Mas sobretudo para os heróis e heroínas do SUS que por tanto tempo foram descredenciados politicamente. Foram descredenciados no exercício de sua profissão porque só mostravam as coisas ruins que aconteciam no SUS e quando veio o coronavírus se não fosse o SUS a gente teria perdido muito mais gente do que perdeu".

Lula também falou da vacina. "Vocês sabem que a questão da vacina não é uma questão se tem dinheiro ou se não tem dinheiro. É uma questão se eu amo a vida ou amo a morte. É uma questão de saber qual é o papel de um presidente da República no cuidado do seu povo. Porque um presidente da República, ele não é eleito para falar bobagem no fake news, ele não é eleito para incentivar a compra de armas como se nós tivéssemos necessitando de armas. Quem está precisando de arma são as nossas Forças Armadas, quem está precisando de arma é a nossa polícia que muitas vezes sai pra rua para combater a violência com um 38 velho e todo enferrujado."

Em seu discurso, Lula fez outras criticas aos rumos da política econômica e em relação ao posicionamento do presidente Jair Bolsonaro. 

“Esse país está totalmente desordenado e desagregado porque não tem governo. Vou repetir: esse país não tem governo, esse país não cuida da economia, esse país não cuida do emprego, do salário, da saúde, do meio ambiente, da educação, do jovem, da meninada da periferia. Ou seja, do que eles cuidam?”, afirmou.

“Esse país não tem ministro da saúde, esse país não tem ministro da economia, esse país tem um fanfarrão, um fanfarrão, um presidente que por não saber de nada diz ‘é tudo por conta do Guedes’. Enquanto isso, o país está empobrecido, o PIB caiu, a massa salarial caiu, o comércio está enfraquecido, o comércio varejista caiu, a produção de comida das pessoas está ficando insustentável. E o presidente não se preocupa com isso.”

Para o cientista político André César, da Hold Assessoria Legislativa, a decisão do ministro Edson Fachin deu novo fôlego a Lula, que consegue, ao menos por ora, retomar o protagonismo na cena política nacional. "Lula voltou a ser Lula em seu discurso desta quarta-feira. As críticas ao governo Bolsonaro eram mais que esperadas. O ex-presidente tenta mais uma vez se cacicar como o nome mais consistente para enfrentar o atual titular do Planalto em 2022. Lula sabe que seu retorno ao jogo, mesmo que temporário, aumenta a pressão sobre o centro. A chamada frente ampla tem um novo adversário", avalia.

"Interessante anotar a reação de um importante nome do centro, o ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM/RJ). Em seu Twitter, ele elogiou o discurso de Lula e deixou claras as diferenças entre o petista e Bolsonaro. Nesse movimento, Maia pode estar tentando estabelecer um diálogo, uma ponte, com Lula", afirma o cientista político.

Wagner  Romão, doutor em sociologia pela USP e professor do departamento de ciência política da Unicamp, destaca dois momentos do pronunciamento do ex-presidente. 

Vimos a capacidade que ele tem e desenvolveu ao longo dos anos de vida política e pública de falar a linguagem do povo, falar de problemas reais, do que está acontecendo no país com relação à pandemia, falar do aumento de preços dos produtos e de toda a incapacidade que o governo Bolsonaro tem mostrado ao não conseguir dar conta do desafio de enfrentar essa crise. Esse primeiro aspecto o credencia como um candidato muito forte para a eleição de 2022", analisa.

Um segundo aspecto, segundo o sociólogo, foi a habilidade de fazer críticas a determinados  segmentos, como no caso dos militares (a declaração do general Villas Bôas no Twitter que fazia pressão sobre o Supremo, por exemplo) e de se dirigir ao mercado.  

"Ele questionou o apoio dos agentes econômicos ao então candidato Bolsonaro, mas ao mesmo tempo se convidou para participar de reuniões na  Febraban e Fiesp. Foi um discurso que vale para setores do centro e até da direita que são contrários a Bolsonaro, uma tentativa de criar um campo político mais amplo do que a esquerda para enfrentar Bolsonaro em 2022. Sempre com muito cuidado para dizer que nesse momento o que importa é correr o país, conversar com as pessoas e enfrentar a pandemia e os seus efeitos", afirma o professor.

A decisão do STF que mudou o jogo político

No início da semana o ministro Fachin anulou as decisões e condenações contra o ex-presidente na 13ª Vara Federal de Curitiba. O Com isso, os quatro processos em que Lula foi julgado – Triplex do Guarujá , do sítio de Atibaia, a compra de terreno para o Instituto Lula e o de doações para a entidade - deixam de valer. Agora as ações voltam à fase inicial do julgamento, mas dessa vez serão analisadas na Justiça Federal do Distrito Federal.

Com a decisão do ministro, o ex-presidente recupera seus direitos políticos e poderá disputar novas eleições, inclusive ser candidato à presidência em 2022. Lula já tinha sido condenado em dois processos: no caso de Triplex do Guarujá, no litoral de São Paulo, a 12 anos e 1 mês de prisão pelos crimes de lavagem de dinheiro e corrupção e a 12 anos e 11 meses de prisão no processo do sítio de Atibaia, no interior paulista. 

Ministro Edson Fachin

A decisão foi tomada depois de um pedido de habeas corpus formulado pela defesa de Lula em 3 de novembro do ano passado. Edson Fachin entendeu que a 13ª Vara Federal de Curitiba não era o juízo competente para processar e julgar o ex-presidente. O ministro avaliou que as circunstâncias dessa decisão só vieram agora. “Aplico aqui o entendimento majoritário que veio se formando e agora já se consolidou no colegiado. E o faço por respeito à maioria, sem embargo de que restei vencido em numerosos julgamentos”, disse Fachin em sua decisão.

“Com as recentes decisões proferidas no âmbito do Supremo Tribunal Federal, não há como sustentar que apenas o caso do ora paciente deva ter a jurisdição prestada pela 13ª Vara Federal de Curitiba. No contexto da macrocorrupção política, tão importante quanto ser imparcial é ser apartidário”, avaliou Fachin na sua decisão.


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Segundo o ministro, por ter relação com o esquema de desvios de dinheiro na Petrobrás, o julgamento não poderia ter acontecido em Curitiba. “A conduta atribuída ao ora paciente, qual seja, viabilizar nomeação e manutenção de agentes que aderiram aos propósitos ilícitos do grupo criminoso em cargos estratégicos na estrutura do governo federal não era restrita à Petrobras S/A, mas a extensa gama de órgãos públicos em que era possível o alcance dos objetivos políticos e financeiros espúrios.”

Agora a expectativa é de que o Plenário do STF confirme ou não a decisão de Fachin nos próximos dias.

Enquanto isso segue o julgamento sobre a suspeição de Moro, acusado de ser parcial nas suas decisões enquanto juiz quando da condenação de Lula no caso do triplex do Guarujá. Nesta terça-feira (9) o ministro Nunes Marques pediu vista (mais tempo para analisar o caso), o que deixou a discussão suspensa até que o ministro defina seu voto. LexLatin procurou a assessoria de Sérgio Moro para comentar a decisão de Fachin e o julgamento na 2ª Turma do STF, mas fomos informados que, por enquanto, ele não vai se pronunciar.

O que dizem os especialistas

Para Helena Lobo da Costa, professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP, a decisão vai ser objeto de recurso nos próximos dias e pode ser que as consequências não se efetivem. “A decisão não reconheceu a parcialidade do juiz Sergio Moro, não tem relação direta com os áudios da operação Spoofing. O que ela diz é que os fatos específicos dessas ações penais (triplex, sítio, sede do Instituto Lula, doações ao Instituto Lula) não têm relação com contratos específicos da Petrobras, e, por isso, não devem permanecer na 13ª Vara de Curitiba. Assim, para os réus dessas ações penais, todos eles, não só o Lula, vale a decisão do ministro Fachin”, diz.

De acordo com Roger Stiefelmann Leal, professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP, é prematuro concluir algo definitivo neste momento. A se confirmar a decisão, analisa o especialista, os efeitos no cenário político são imediatos.

“Primeiro, a sensação incômoda que decorre do momento em que essa decisão foi proferida, somente após o transcurso das eleições de 2018. Afinal, se a incompetência do juízo fosse reconhecida antes, as eleições presidenciais teriam cenário distinto. Com isso, facilita-se a construção de indesejáveis narrativas conspiratórias. Segundo, afasta-se a inelegibilidade do ex-presidente, permitindo cogitar de sua candidatura para o pleito de 2022”, analisa.

O professor de Processo Penal, Gustavo Badaró, também da Faculdade de Direito da USP, explica que com a declaração de incompetência, o processo envolvendo o ex-presidente volta ao início no novo julgamento em Brasília. “As condenações contra Lula até agora, portanto, foram anuladas e o processo contra ele volta praticamente à estaca zero”, diz.

Badaró explica que a decisão tem "timing jurídico", uma vez que ocorre antes de um julgamento sobre a suspeição do então juiz federal Sergio Moro na condução do caso.

Almino Afonso Fernandes, advogado constitucionalista e sócio de Almino Afonso & Lisboa Advogados, também ressalta que a decisão é tardia. "Com base nos fatos apurados nestas ações penais levou-se a cárcere ilegalmente um cidadão brasileiro por mais de um ano e meio, o que é lamentável por ter ocorrido em pleno Estado Democrático de Direito. Além disso, a decisão eclode exatamente num momento em que graves revelações contra os membros da Lava Jato estão vindo a público. Portanto, me parece mais um caso de ´jeitinho brasileiro´, desta feita, protagonizado pelo ministro Fachin".

André Galvão, advogado criminalista do Bidino & Tórtima Advogados, explica que o  ministro Fachin menciona precedentes do próprio Supremo em que também se reconheceu a ausência de conexão entre fatos apurados em determinados processos e crimes envolvendo a Petrobras. “Portanto, não se trata de uma mudança inédita, mas da evolução do entendimento da Suprema Corte sobre esse tema, havendo apenas uma mudança de entendimento por parte do ministro Fachin. Esse entendimento pode vir a ser aplicado também em outros casos em que não haja a referida conexão”, analisa.

“O ministro Fachin fala em 'situações limítrofes' e em 'juízos de imbricação', o que denota uma real dificuldade para que sejam definidos parâmetros objetivos a respeito da conexão na Lava-Jato. No entanto, especificamente sobre acordos de colaboração, o ministro Fachin trouxe precedentes do próprio STF que restringem a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba, seja porque os acordos não firmam a competência do juízo, seja pela possibilidade de desmembramento”, afirma.

Para o advogado especialista em Direito Eleitoral Alberto Rollo alguns aspectos jurídicos dessa decisão são questionáveis. “O primeiro é a incompetência territorial. O ideal seria que fossem esgotadas as instâncias recursais normais até chegar no momento em que o Poder Judiciário possa decidir se a 13ª Vara Federal de Curitiba é competente ou não. Me parece que, desta maneira, houve um atalho, uma quebra das instancias do Poder Judiciário. Essa matéria deve ter sido debatida na Primeira Instância de Curitiba, também no TRF 4 em Porto Alegre e depois no STJ e ninguém disse que está errado, só um recurso no STF que pode decidir”, avalia.

“Outro aspecto é que em um habeas corpus que discutia apenas a decisão do processo do triplex do Guarujá o ministro Fachin estendeu para os outros processos do sítio de Atibaia e duas ações judiciais que falam sobre o Instituto Lula. O ministro ainda disse que as provas podem ser aproveitadas pelo novo juiz em Brasília. É uma incoerência. Ou anula tudo ou nada. Ou a 13ª Vara Federal de Curitiba é incompetente para tudo ou não é incompetente. A decisão precisa ser melhor examinada, mas hoje, o que está definido é que Lula é ficha limpa”.


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Rodrigo Faucz, professor de Processo Penal e advogado criminalista, acredita que deve ser assegurado o direito da defesa de ouvir testemunhas, inclusive os delatores, bem como o ex-presidente se defender em novo interrogatório. “O novo juiz que receber o caso terá que fazer uma reanálise sobre o recebimento da denúncia contra o ex-presidente. Isto é, terá que verificar se há elementos para iniciar a ação penal. Caso isso não aconteça, a defesa poderá recorrer pela violação ao princípio da ampla defesa e do contraditório”, explica.

Esses foram os processos anulados e que voltam a ser analisados na Justiça Federal do Distrito Federal: 5046512-94.2016.4.04.7000/PR (Triplex do Guarujá); 5021365- 32.2017.4.04.7000/PR (Sítio de Atibaia); 5063130-17.2018.4.04.7000/PR (sede do Instituto Lula); e 5044305-83.2020.4.04.7000/PR (doações ao Instituto Lula).


Leia a decisão.

Leia a  nota divulgada pelo ministro.

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