Voto de qualidade no Carf é extinto

Advogados comemoram fim de prováveis abusos; entre os próprios julgadores, porém, há risco de mudanças indesejadas.
Fecha de publicación: 14/04/2020
Etiquetas: Carf

O governo promulgou, nesta terça-feira, a Lei nº 13.988, com mudanças na resolução de créditos em litígio com a Fazenda Nacional. O texto da medida, bastante elogiado como forma de resolver disputas tributárias, passou quase despercebido diante de uma alteração legislativa por ela promovida: a partir de agora, o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) deixa de ser aplicado em julgamentos, e se torna uma ferramenta extinta.

Com isso, o maior ponto de discórdia dentro do Carf, o mais importante tribunal de impostos do Brasil, é pacificado: casos onde prevalecia o voto de desempate, dado pela presidência do colegiado (sempre ocupado por um membro da Fazenda Nacional, o que poderia gerar influência no resultado), agora beneficiarão contribuintes, como há anos requerem advogados. 

A nova regra de julgamento poderá também ter influência nas teses mais controversas do tribunal, como na incidência tributária nas amortizações de ágio e participação nos lucros ou resultados, que eram decididos neste tipo voto de qualidade (contra os contribuintes) e representavam parte significativa dos mais de R$600 bilhões em créditos tributários sob julgamento.

Advogados, em sua maioria, consideram a medida extremamente positiva. "É um importante marco nas disputas no Carf, invertendo-se a perversa lógica até então vigente onde, havendo dúvida ou empate, a decisão era pró-fisco", disse o sócio do Mattos Filho, João Marcos Colussi. 

Com a extinção, segundo Colussi, se estabelece o princípio de que as dúvidas não sanadas em razão de uma decisão sem voto vencedor viciam o lançamento tributário de incerteza e iliquidez, "de modo que a questão deve ser necessariamente resolvida em favor do contribuinte".

As mudanças principais seriam duas, na visão da sócia da Lavocat Advogados, Mírian Lavocat.  "É um elemento positivo por duas razões principais: primeiro porque haverá uma redução sensível de judicializações de processos administrativos, e grande parte destes processos judicializados trazem questões de prova, onde o contribuinte junta ampla matéria probatória desprivilegiada pelo voto de qualidade – contra o princípio da verdade material", comentou. 

"A segunda é diminuir para as empresas o custo destas judicializações. No momento em que vivemos, as garantias necessárias a estes recursos têm um custo altíssimo, o que afoga seu fluxo de caixa". Lavocat, que já foi conselheira do tribunal, julgou como um "bom avanço dos contribuintes" a aprovação da medida.

"Para quem esperava o veto, inclusive eu, se surpreendeu hoje", comentou o advogado tributarista Bruno Teixeira, de TozziniFreire Advogados. Teixeira, que ressaltou os reflexos da medida nas esferas administrativa e judiciária, argumenta que a própria leitura de casos no tribunal será mudada pela sua nova forma de decidir.

"A interpretação normalmente mais conservadora e positiva dos conselheiros do Fisco abrirá espaço à leitura mais teleológica comumente vinda dos conselheiros dos contribuintes", ressaltou. "Não se quer taxar ninguém aqui, mas há de se reconhecer que essas posturas dos conselheiros são fruto de sua própria formação e experiência de vida."

O advogado da área tributária do Demarest Advogados,Marcelo Rocha, estudou a uniformização da jurisprudência do Carf como mestrado, e também vê na extinção do voto de qualidade uma possibilidade de se evitar abusos. A medida do voto de qualidade, aponta o tributarista, era essencial para definir grandes teses e discussões.

"O que a gente espera ver é uma mudança brusca de jurisprudência e posicionamento sobre temas controversos", analisou. "Assim como a Fazenda Nacional ressurgir o debate de ela, Fazenda, discutir a matéria resolvida na via judicial". 

Hoje, a Fazenda Nacional é impedida de discutir qualquer resultado do Carf no Judiciário. O artigo com a extinção foi criticada pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), que pediu à Presidência o veto ao artigo.

O sócio do Amaral Veiga Advogados, Allan Fallet, aponta que a medida renova a segurança jurídica dentro do tribunal."Os contribuintes basearam toda a sua operação e modelagem dos negócios em posicionamentos que de uma hora para a outra foram alterados com a maciça utilização do voto de qualidade", afirmou Fallet.

"Nesse sentido, muitos contribuintes que estavam desistindo da discussão no âmbito administrativo, ou mesmo abandonando os seus processos no meio do caminho, vão sentir mais segurança para levar os seus argumentos e teses para serem debatidas no âmbito do Carf."

O tributarista também apontou problemas  neste tipo de mudança: "Esta alteração isolada quanto ao voto de qualidade, previsto desde a origem do Carf, e no meio de uma pandemia, soa de forma situacionista e fragiliza a credibilidade e legitimidade do órgão". Fallet não é o único a expressar preocupações.

O início do fim?

Da mesma maneira que aspectos positivos do fim voto de qualidade são apresentados por advogados, outros atores dentro do mundo tributário também enxergam com reservas – e mesmo pessimismo – a nova dinâmica de julgamento.

"O voto de qualidade é dado com base num pressuposto de imparcialidade do julgador", afirmou um conselheiro representante dos contribuintes da 1ª Seção que, por ainda ocupar o cargo, pediu para não ter seu nome revelado. "Acabar com o voto incorre no risco de enfraquecer o Carf. Há o medo de vários conselheiros fazendários saírem, ou mesmo da Receita Federal pedir o fim do tribunal", analisou.

A visão do conselheiro é bastante presente no tribunal – mesmo entre julgadores cujos representados seriam beneficiados com a medida. A divisão existe a ponto de a Associação dos Conselheiros dos Contribuintes (Aconcarf), não se manifestar sobre a questão.

Já pelo lado da Receita, a promulgação soou como um duro golpe. O presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco Nacional), Kleber Cabral, considerou a decisão como o "maior ataque à administração tributária da nossa história".

"Transforma o Carf, que é um órgão administrativo do Estado com participação de representantes dos contribuintes, em um lugar onde prepondere apenas o entendimento de apenas um dos lados. É a privatização do Carf, onde em caso de empate deixará de prevalecer o próprio entendimento do serviço público".

Cabral aponta que decisões tomadas pelo voto de qualidade podem impactar casos de sonegação mais estruturada, e planejamento tributário mais sofisticado. "Mais de 300 recursos sobre a Lava Jato devem subir ao Carf no futuro, envolvendo empresas, doleiros e agentes políticos", disse o auditor, citando o exemplo da operação.

"Hora que este auto de infração cair por conta de um empate pró-contribuinte, será um escândalo. E não é possível que a sociedade aceite isso, com auditores enxugando gelo. Anos de trabalho podem ser perdidos com um empate, com impactos inclusive na esfera penal".

A preocupação por uma perda de autoridade  dos julgamentos do Carf – considerado por todos como um local de excelência em direito tributário – é tangível, e pode se revelar em um futuro ainda incerto ao tribunal.

"Quem vê o fim do voto de qualidade como negativo aponta que haveria um desincentivo ao embate de ideias – que o conselheiro dos contribuintes, sem ter certeza absoluta da tese, prefere julgar favoravelmente ao contribuinte, deixando que a dúvida seja esclarecida pelo Judiciário", explicou o sócio do Manrrich e Vasconcelos, Breno Vasconcelos, durante uma roda de discussões sobre o tema promovida pelo Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getúlio Vargas (NEF/FGV).

Segundo o advogado e pesquisador, "o medo é que o Carf perca sua importância por conta desta nova regra". Vasconcelos não se posicionou, durante sua fala, a favor ou contra a medida.

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