15 anos de Lei Maria da Penha: quais os avanços e mudanças?

Lei Maria da Penha leva o nome da farmacêutica bioquímica, vítima de violência doméstica que se tornou exemplo de luta pelos direitos das mulheres/Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Lei Maria da Penha leva o nome da farmacêutica bioquímica, vítima de violência doméstica que se tornou exemplo de luta pelos direitos das mulheres/Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Especialistas avaliam mudanças que norma trouxe no enfrentamento da violência contra a mulher.
Fecha de publicación: 06/08/2021

Sancionada 15 anos atrás, em 7 de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha estabeleceu direitos e penas específicas e é considerada uma legislação avançada no combate à violência contra a mulher. Com 46 artigos, ela cria mecanismos para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher em conformidade com a Constituição Federal e os tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro.

A lei leva o nome de Maria da Penha, farmacêutica bioquímica, vítima de violência doméstica que se tornou um exemplo de luta pelos direitos das mulheres. Em 1983, Maria da Penha foi vítima de dupla tentativa de feminicídio por parte de Marco Antonio Heredia Viveros, seu marido à época. Ele deu um tiro nas suas costas enquanto ela dormia. Maria da Penha ficou paraplégica, além de outras complicações físicas e traumas psicológicos. Quatro meses depois, após duas cirurgias, internações e tratamentos, ele a manteve em cárcere privado durante 15 dias e tentou eletrocutá-la durante o banho.

Maria da Penha recorreu à justiça, mas o primeiro julgamento de Marco Antonio foi realizado oito anos depois da violência e o segundo treze anos depois. Em ambos os julgamentos a sentença não foi cumprida. No ano de 1998, o caso tomou proporções internacionais quando Maria da Penha denunciou o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA). O Estado brasileiro foi responsabilizado por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras.

A história de Maria da Penha era mais um exemplo de muitos crimes que aconteciam no Brasil e que os agressores não eram punidos. Por isso, em 2002 um consórcio de ONGs feministas se juntou para escrever uma lei de combate à violência contra a mulher. Depois de debates com o Legislativo, o Executivo e a sociedade, o Projeto de Lei n. 4.559/2004 da Câmara dos Deputados chegou ao Senado Federal (Projeto de Lei de Câmara n. 37/2006) e foi aprovado por unanimidade em ambas as casas. Em 2006 a Lei foi sancionada pelo presidente Lula e levou o nome de Maria da Penha.


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Inovações da legislação

A primeira inovação que a legislação traz é a classificação de tipos de violência doméstica. No geral, as pessoas pensam em violência doméstica apenas como violência física, mas ela pode se manifestar de diferentes maneiras. Com a conceituação de violência doméstica, a lei facilita o combate, a prevenção e a punição do crime. Os cinco tipos de violência que a lei estabelece são:

  1. Violência física: qualquer conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal da mulher.
  2. Violência psicológica: qualquer conduta que: cause dano emocional e diminuição da autoestima; prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento da mulher; ou vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões
  3. Violência sexual: qualquer conduta que constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força.
  4. Violência patrimonial: qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.
  5. Violência moral: qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
Mariângela Magalhães Gomes
Mariângela Magalhães Gomes

Para Mariângela Magalhães Gomes, professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP, o principal mecanismo de avanço são as medidas protetivas para as mulheres. Quando as mulheres sofrem violência doméstica, elas podem se dirigir a uma delegacia, fazer um B.O. e pedir uma medida protetiva que vai ser autorizada pelo juiz. 

Isso é um grande avanço porque o principal problema da violência doméstica é que ela está, em geral, dentro de casa. Se você não tem um jeito de imediatamente fazer a violência parar, é pouco provável que ela vá parar. Pode até parar por um momento, depois ela volta. Mas as medidas protetivas como, por exemplo, afastar o agressor da casa, impedir que o agressor mande mensagens por whatsapp, impedir que ele se aproxime da mulher ou ainda medidas para acolher a mulher em um abrigo, em uma casa em que ela fique protegida com os filhos, eventualmente, são exemplos de medidas que conferem uma proteção quase imediata para essa mulheres. Isso foi a Lei Maria da Penha que trouxe”, explica.

Outro aspecto importante que a Lei Maria da Penha trouxe foi a visibilidade para os direitos das mulheres. Houve uma cobertura intensa dos meios de comunicação sobre a legislação e muitas pessoas passaram a direcionar seus trabalhos para isso, nas diversas profissões. Hoje praticamente todo mundo conhece a Lei Maria da Penha, mesmo que não saiba exatamente o que ela garante, ao menos sabe que defende as mulheres vítimas de violência doméstica.

Maria Cecília Mello
Maria Cecília Mello

“Não é só mais a mulher gritando pelos seus direitos, por ela ter sido agredida, pelo sofrimento dela, etc. Existe um cuidado no entorno. Às vezes o empregador vai prestar atenção se a sua funcionária foi agredida e ele vai socorrê-la. Acredito que existe uma conscientização que foi crescendo ao longo desses 15 anos de uma maneira notável. Principalmente se a gente considerar o tipo de sociedade que o Brasil tem, que é extremamente patriarcal e machista”, afirmou Maria Cecília Mello, sócia do Cecilia Mello Advogados. 

Maria Cecília argumenta que a questão da equidade na aplicação da lei é extremamente importante porque o reconhecimento não pode ter restrições, ele tem que ser um reconhecimento amplo e uniforme. Isso é algo que ainda temos muito para buscar. “Além disso, há a questão do não acolhimento em políticas públicas, principalmente neste governo que tenta boicotar tudo quanto já foi feito em termos de políticas públicas. Ainda tem muito para buscar. Em termos legais eu nem sei se há tanto, mas em termos morais e sociais tem muito ainda”, disse.

Obstáculos para a aplicação da lei

Apesar de a lei ser considerada pela Organização das Nações Unidos (ONU) como a terceira melhor lei do mundo no combate à violência contra a mulher, ela ainda sofre com alguns obstáculos para a sua aplicação. Um desses obstáculos é a dificuldade de alguns agentes do Estado de internalizar essa cultura de proteção à mulher. 

Maria Cecília afirma que houve um avanço em relação a isso. “No ano passado, a pauta de projetos de lei voltados à garantia de direitos das mulheres andou como nunca. Mas andou dessa maneira, não só por conta de um movimento feminino, mas por conta de um movimento masculino de apoio a essas medidas. Há uma tendência de se buscar uma equidade na aplicação da lei. Dentro do próprio Tribunal de Justiça paulista há diferenças significativas nesse olhar”.

Raquel Gallinati
Raquel Gallinati

Raquel Gallinati, presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo e diretora da Adepol do Brasil, explica que a lei é moderna porque prevê mecanismos de proteção, mas não há implementação de políticas públicas para acompanhar a previsão legislativa. Quando a mulher vai até a delegacia, surge uma série de situações em que o principal fator é a falta de investimento real do governo nas instituições de Estado que tem a atribuição para combater esses crimes.

"Quando a mulher chega até uma delegacia, ela encontra uma estrutura caindo as pedaços, que falta até mesmo insumos básicos como água e papel higiênico. Às vezes tem um funcionários exercendo a atribuição de cinco. Ela é revitimizada de forma secundária novamente pelo Estado quando ela é submetida a horas de espera para um pronto-atendimento, quando a gente vê as estruturas - não só da porta de entrada da polícia judiciária - mas também na morosidade do deferimento de cautelares. O deferimento das protetivas de urgência também muitas vezes soa inócuo quando não temos a proteção de servidores e policiais para que fiscalizem o cumprimento delas por parte daqueles que são os agressores", afirmou.


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Outro obstáculo que não é propriamente da lei, mas que é da violência doméstica em geral, é a dificuldade que muitas mulheres têm de denunciar, de levar o caso à polícia, ao Judiciário porque, em geral, estamos falando de violência no campo afetivo. 

“Por mais paradoxal do que possa parecer, a mulher tem uma relação de afeto com o agressor, ela não quer que o agressor seja preso. Muitas vezes o agressor é o pai dos filhos dela, então ela não quer que o pai dos filhos dela sofra algum processo. Às vezes ela pode depender economicamente do agressor. Então é muito complexa essa relação que muitas vezes está marcada na violência doméstica. Estamos falando de violência entre pessoas que nutrem uma relação de afeto”, afirmou Mariângela Gomes.

Mariângela explica também que, nesse sentido, é bom que a lei seja pouco punitiva, ela se preocupa mais em trazer mecanismos de proteção para a mulher do que propriamente a pena. “Quanto menos usarmos a força do Estado, a prisão, é melhor - claro, se houver necessidade de condenar, prender, etc, deve ser feito, mas o ideal é que em vez de condenar e prender as pessoas, ou antes disso, é que se preveja uma efetiva proteção para a mulher. A mulher quando é vítima de violência, muitas vezes, o que ela quer é que a violência pare. Ela não quer necessariamente que o agressor seja preso, seja condenado. Ela quer se ver livre da agressão. A Lei Maria da Penha é boa nesse sentido”, afirmou.

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